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Roberto Acioli de Oliveira

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21 de fev. de 2011

Bertolucci e o Tango de Bacon (II)




Quando o filme de Bertolucci   explodiu
,
Pasolini disse que era
um cinema burguês




 



Ecos do Último Tango na Tela

Tonetti afirma que O Último Tango em Paris está repleto de elementos sádicos, mesmo assim ela acredita que em muitas ocasiões Paul é mais infantil do que mórbido. Como se fosse ainda o adolescente cobrando do pai que foi responsável pelo fracasso de seu primeiro encontro – o pai mergulhou os sapatos de Paul na bosta de vaca. Jeanne, por sua vez, não seria uma “vítima profissional”, mas apenas alguém buscando por algo diferente – enquanto se prepara para um casamento com um vestido de noiva quase tradicional. Contudo, Tonetti admite que em alguns casos O Último Tango possa ser considerado um precursor de O Porteiro da Noite (Il Portiere di Notte, direção Liliana Cavani, 1974), onde um ex-comandante de campo de concentração reencontra sua ex-vítima amante sado-masoquista. Neste filme também encontramos armas, botas militares e uniformes usados como fetiches. A diferença de idade entre homem e mulher também é grande nos dois filmes, com uma coloração quase incestuosa. Assim como Paul dá banho em Jeanne, o nazista arruma e alimenta sua ex-vítima (1).





A recepção negativa
de Pasolini em relação a O Último Tango seria apenas reflexo de uma rivalidade entre pai e filho





Depois de levar os tiros e antes de cair no chão, Paul tira o chiclete da boca e cola debaixo da grade da varanda. Em La Luna, filme que Bertolucci dirigirá em 1979, Douglas, o marido de Caterina, antes de morrer encontra um pedaço de chiclete colado na grade da varanda. Antes de ele cair, a câmera subjetiva nos entrega o campo de visão de Paul: os telhados à volta, como em Sob os Tetos de Paris (Sous le Toits de Paris, direção René Clair, 1930). A Noite Americana (La Nuit Américaine, direção François Truffaut, 1973) é outro filme que segundo Tonetti encontra seu germe em O Último Tango. Jean-Pierre Léaud, que era Tom no filme de Bertolucci, agora é Alphonse. Neste filme, o cinema também é visto como uma atividade apaixonante e, às vezes, “despreocupada”. Onde a confusão entre a vida real e a imagem dela na tela deixa as pessoas envolvidas em crise. Tonetti lembra também que O Último Tango está encaixado entre dois filmes de Michelangelo Antonioni, Zabriskie Point (1969) e Profissão: Repórter (Professione: Reporter, 1975), com os quais compartilha o sentimento de escapada de e ruptura com a cultura e o passado de alguém. No primeiro caso, um casal tenta abandonar a cultura materialista.



f
A rivalidade entre
Bertolucci  e  Pasolini
ficou  evidente  em  1975
. 
Quando estava filmando Salò, ele disse que o choque seria muito maior do que em
O Último Tango



No segundo caso, John Locke troca de identidade com um morto. Mais tarde, ele está dirigindo numa estrada quando sua companheira pergunta a razão dessa ruptura drástica com seu passado. Então ele pede que ela olhe para trás, com o carro em movimento o que ela vê é a estrada sumindo na no fim. Quando a esposa de Locke é chamada para reconhecer o corpo dele, ela diz que nunca o viu antes – o mesmo que Jeanne depois de matar Paul. Em tempo, Maria Schneider, interpreta o papel de Jeanne e da companheira de Locke - no filme de Antonioni ela não tem um nome. Olhando para trás, Tonetti sugere que O Último Tango radicaliza a mensagem dos filmes da Trilogia da Incomunicabilidade, de Antonioni. Em A Aventura (L’avventura, 1959), A Noite (La Notte, 1960) e O Eclipse (L’eclisse, 1962), Antonioni foca naquilo que ele chamou de “doença dos sentimentos” e na tentativa fútil de utilizar o erotismo para preencher o vazio da falta de sentimentos. Antonioni dizia que essa preocupação com o erótico não seria obsessiva se Eros estivesse com boa saúde. Quer dizer, se fosse mantido dentro das proporções humanas. Mas Eros está doente, dizia o cineasta.

Luz. Bacon. Ação 

f
“Eu queria
que Paul fosse
como as figuras que
retornam obsessivamente em Bacon
: rostos consumidos
por algo vindo

do interior”

Bertolucci  sobre
o personagem de
Marlon Brando (2)


f

Bertolucci levou Vittorio Storaro numa exposição sobre a obra do pintor irlandês Francis Bacon, explicando que ali estava sua inspiração. De acordo com o cineasta, as luzes alaranjadas no filme são influências dessa visita. O apartamento vazio foi iluminado para sublinhar o que Bertolucci chamou de estado “uterino e pré-natal”, e a imagem dominante no filme foi muito influenciada pelas pinturas de Francis Bacon expostas durante os créditos iniciais (3). Com relação ao quadro que aparece nos créditos iniciais do filme, Bertolucci disse que o elemento figurativo naturalista do retrato vai se perdendo na medida em que o observamos por mais tempo, tornando-se a expressão do que se passa nas tripas, ou no inconsciente, do autor. Então Bertolucci levou Brando na exposição, mostrou-lhe esse mesmo quadro e pediu: “Você está vendo este retrato? Bem, quero que você consiga recriar essa massa de dor”. Bertolucci afirmou que essa foi praticamente a única (pelo menos a principal) instrução que deu ao ator. Disse ainda que com freqüência trabalha desta forma (com imagens de quadros), acredita que a comunicação é mais eficaz do que com palavras (4).




Bertolucci

estava numa fase azul,
não  imaginava  o  que
viria depois





Em seus dois filmes anteriores, A Estratégia da Aranha (Strategia del Ragno, 1970) e O Conformista (Il Conformista, 1970), Bertolucci havia trabalhado com tons azulados. Trabalhando com o mesmo iluminador dos filmes anteriores, Vittorio Storaro, Bertolucci só sabia que para o próximo eles precisavam de outro tipo de emoção. Na opinião de Claretta Tonetti, os dois quadros de Bacon evocam um sentimento de falta de sentido para a existência e da inevitabilidade da decadência. Na primeira figura, Retrato Duplo de Lucien Freud e Frank Auerback (1964) (imagem acima, à esquerda), um homem se encontra deitado no que poderia ser uma cama de cor laranja, que se bifurca em duas. A pele do homem, anormalmente suave sobre músculos acentuados, como se tivesse sido raspada ou encerada, sugere flacidez e não saúde. Seus lábios estão contorcidos em nós de uma forma só possível em corpos sem vida. Em Estudo Para Um Retrato (1964) (imagem abaixo, à esquerda), o segundo quadro, Bacon nos oferece uma síntese de tons em preto, branco e rosa, convergindo para o canto de um quarto, no meio do qual uma mulher está sentada.





O público devia
estar muito preocupado
com   a   cena   da   manteiga
para sequer notar os quadros

de  Francis Bacon  logo
no início do filme






Na opinião de Tonetti, os corpos não atraentes dos quadros de Bacon remetem a um sadomasoquismo. Seja como for, isso é algo que certamente está presente na relação entre Paul e Jeanne. E muito provavelmente caracterizava a relação dele com Rosa – ela que ganhou dele em seu próprio jogo, com um suicídio que foi ao mesmo tempo punição para ela e para Paul. Uma banheira cheia de manchas de sangue (que a funcionária limpa como se estivesse lavando a cozinha), a lâmina que Rosa usou para cortar os pulsos ficando em poder de Paul, sodomia e degradação, memórias de um pai brutal (no caso de Paul), outro pai severo (no caso de Jeanne) e fotografado em uniforme militar... Elementos de um padrão sádico que muitas vezes chega ao ponto de predominar no filme até o final, quando Jeanne atira em Paul. “Como você gosta de seu herói, baby?”, são as palavras de Paul antes de levar um tiro (5).




f
O grito de Paul
no início é mais próximo
do
grito de Bacon/Inocêncio
do que de Munch









As pinturas de Bacon, Tonetti sugere, cujas cores geralmente representam doenças (ele considerava as doenças de pele artisticamente interessantes), são cinematográficas por causa de seu conteúdo intenso, chocante. Os corpos de Bacon “gritam”, mostrando a dor de maneira sadomasoquista. A primeira imagem de O Último Tango em Paris depois dos créditos é um grito de Paul: “maldito Deus” (fucking God). A alguns poderia evocar a pintura de Edvard Munch, O Grito (1893). Mas esta cena lembra a Tonetti outro quadro de Bacon, Estudo Segundo um Retrato do Papa Inocêncio X, por Velásquez (1953) (imagem acima, à direita). Enfim, as pinturas de Bacon ajudaram Bertolucci a estabelecer o padrão cromático do filme. Ricos alaranjados, cinzas claros e frescos, brancos gelados e vermelhos ocasionais, combinados com o próprio gosto do cineasta por marrons suaves, alourados pardos, e brancos delicados com sombras azuladas e rosadas. Outra cena que evoca a decadência é a da velha senhora lavando e recolocando sua dentadura.




f
As distorções de Francis
Bacon estão mais próximas
do  mundo  real  do  que geralmente   se   imagina





O grito blasfemo de Paul se origina na sua incapacidade de explicar o suicídio de Rosa, mas também em sua incapacidade de explica a própria rosa. Seu único alívio é encontrar um lugar onde a passagem do tempo não lhe pese nos ombros. A insistência dele em não saber o nome de Jeanne e seu desinteresse pelo mundo exterior parece referir-se apenas ao passado recente, já que ele começa a contar para ela detalhes de sua adolescência e procura saber detalhes sobre o primeiro orgasmo dela. Jeanne se recente de parecer estar falando com as paredes, reclama que a solidão de Paul pesa nela e o considera um egoísta. Ela conclui que se é assim poderia muito bem estar sozinha, então ela começa a se masturbar – no outro cômodo, longe dos olhos dela, Paul chora. A vida de Jeanne com Tom se passa sempre na rua. Ela sempre reclama do comportamento de Paul, mas sempre volta. Numa dessas vezes, ela entra no apartamento e o cumprimenta: “olá monstro!” (6).

Leia também:

Roma de Pasolini
Arcaísmo e Cinema no Evangelho de Pasolini
Os Auto-Retratos de Francis Bacon
O Porteiro da Noite e a Cumplicidade da Vítima
Bertolucci no Mundo da Lua
Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (I), (II), (III), (IV), (V)
Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I)

Notas:

1. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The Cinema of Ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 136-8.
2. Idem, p. 126.
3. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 310.
4. TIRARD, Laurent. Grandes Diretores de Cinema. Tradução Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. P. 155.
5. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., p. 136.
6. Idem, pp. 126-9. 


9 de jun. de 2009

Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (IV)


“Eu não sei
nem como
,
nem quando,
alguma coisa
de humano
acabou”


Pier Paolo Pasolini (1)
Revolução Sexual?

Depois de dirigir os filmes de sua Trilogia da Vida, Pier Paolo Pasolini parecia não nutrir muitas esperanças de que a Itália sobrevivesse ao bombardeio avassalador que o consumismo promovia nos corações e mentes de seus conterrâneos. Tanto é que ao ver como os filmes foram deglutidos pela lógica do consumo e transformados em pornografia ele abjurou os filmes da Trilogia. Talvez fosse tarde demais, os próprios corpos das pessoas haviam sido dominados, a sexualidade em si mesma estava a mercê e a serviço do mercado de consumo: agora sexo é bom por que vende um produto qualquer, ainda que seja a pornografia.

Na década de 70 do século passado, após o advento da pílula anticoncepcional, a liberdade sexual era uma questão aparentemente resolvida. Os corpos eram agora aparentemente livres para fazer sexo quando quisessem e com quem desejassem. As lutas das feministas em torno do aborto estavam na ordem do dia. Entretanto, do ponto de vista de Pasolini era como se o mundo estivesse acabando. Para começar, ele era contra o aborto e questionava o papel da escola, que estaria a serviço do capital e não mais se concentrava em formar pessoas, mas consumidores.

Há quem diga que a luta dele contra o aborto teria raízes em sua mãe. Ele foi muito ligado a ela e estaria vendo a legalização do aborto como uma forma de destruir os laços entre mães e filhos. Seja como for, o cineasta acreditava que era falsa a permissividade do Estado em relação à revolução sexual. Pasolini fazia uma distinção entre pornografia comercial e pornografia poética, chamando atenção para o fato de que a tolerância do Estado tendia a se voltar para as obras pornográficas vulgares e comerciais, enquanto mantinha sua intolerância em relação às obras de arte onde o elemento erótico tinha sempre um significado cultural e político (2). A falsa permissividade do Estado esconderia a censura àquelas formas de erotismo e de culto ao corpo que não estão a serviço dele e do mercado de consumo direcionado a um público massificado (estúpido).

Foi esse o motivo que levou Pasolini a abjurar sua Trilogia da Vida, pois o erotismo e os corpos nus ali presentes foram destituídos de sua carga poética e o mercado de consumo passou a enfatizar apenas o lado pornográfico, vulgar e comercializável. De acordo com ele, se o exercício da própria sexualidade liberta alguém, então o Estado e o neocapitalismo trataram de destituir o sexo dessa potência libertária e o transformaram numa espécie de rede através da qual a energia da vida poderia ser capturada e direcionada ao consumo de produtos – pornográficos ou não.

Pode-se compreender agora o ponto de vista de Pasolini: por uma censura democrática contra a permissividade do Estado. Segundo o cineasta: “(...)Tal permissividade do Estado é um dos elementos de poluição do homem, justamente porque ele é estatal, capitalista; ela é, portanto, um elemento da alienação e da neurotização dos indivíduos – um elemento de mercantilização que, em grande escala, coincide com um verdadeiro genocídio” (3)

O erotismo torna-se obsessivo, uma vez que em sua nova condição de produto, deverá ser vendido e consumido. Sim, o sexo deve ser transformado numa compulsão para que dê lucro. A frustração com essa sexualidade compulsiva adviria do fato de que fazer sexo se tornou então uma obrigação! Portanto, quanto mais se faz, menos ele satisfaz. Este seria o universo da falsa tolerância do Estado em relação à pornografia. Além disso, sempre que o Estado assim desejar voltará a fazer suas cruzadas moralistas, culpando as pessoas pela degradação engendrada por ele e se apresentando como salvador da moral pública.

“Pasolini sabia também que a revolução sexual promovida pelo fascismo do consumo era uma mistificação, que assim que a humanidade terminasse de realizar a industrialização total do planeta, um moralismo feroz ressurgiria a obrigar todos a fazer o amor dentro das normas produtivas e sociais, através da distribuição de papéis” (4)

O Novo Fascismo

“Se cinco anos de progresso
fizeram
dos italianos um povo
de
neuróticos idiotas, cinco anos de
miséria podem restituir-lhes
a humanidade (...)

Pier Paolo Pasolini (5)

Salò, os 120 Dias de Sodoma
(Salò o le 120 Giornate di Sodoma) é uma metáfora do poder totalitária que se metamorfoseia. Dos dias de Mussolini até a fase do Milagre Econômico na Itália do pós-guerra, existe uma linha que leva direto ao coração do “totalitarismo tolerante” que Pasolini combatia. Eis porque, seu filme foi proibido tão veementemente, eis porque apenas se enfatizam as perversões sadomasoquistas que se pode assistir ali. A bestialidade, que Pasolini desejava fazer ver nos desejos dos Patrões fascistas do filme, foi transformada em fetiche pornô, neutralizando a perspectiva crítica em relação ao momento que a Itália estava vivendo nas décadas do pós-guerra. Pasolini não viveu para ver como ele estava certo, entretanto se Salò foi concebido como a forma mais violenta possível para se mostrar o absurdo da situação política e social da Itália de então, hoje em dia tudo que se pode ver ali passaria quase despercebido aos sadomasoquistas de hoje. Se naquela época, teríamos que conseguir uma cópia pirata do filme de Pasolini para vislumbrar jogos sadomasoquistas, hoje basta comparecer a banca de jornais mais próxima.

Pasolini distinguia entre clérico-fascismo e novo fascismo. O primeiro correspondia a aliança entre o Estado capitalista e a Igreja. Daqui nascia um totalitarismo agrário, artesanal e conservador. Talvez equivalente ao coronelismo no Brasil, esse fascismo era “superficial”, no sentido de que ainda manteria intacta a estrutura psíquica do povo e suas tradições. Exemplos de clérico-fascismo seriam as ditaduras de Salazar em Portugal, de Franco na Espanha e o regime de Mussolini na Itália. O novo fascismo corresponde a aliança entre a Empresa totalitária com o Estado. Mais profundo que o anterior, esse novo fascismo penetra os indivíduos até a alma, roubando-lhes a humanidade. Exemplos desse tipo de fascismo seriam todos os “milagres econômicos” – a Itália atravessou dois até a década de 80 do século passado e o Brasil atravessou um na década de 70, justamente durante a última ditadura. Se antes o italiano seria capaz de interiorizar a pureza da natureza e da humanidade, com o advento do novo fascismo o indivíduo só consegue interiorizar um carro, um refrigerador, um fim de semana na praia (6). O novo fascismo se apresenta com a roupagem da democracia, entretanto a sociedade de consumo transforma radicalmente os jovens.

É isso que está por trás de Salò, os 120 Dias de Sodoma. Ali podemos encontrar assassinato, corpos nus, homossexualismo, sadismo e masoquismo, travestismo e masturbação, além das repugnantes cenas de coprofagia. Entretanto, somente as mentes puritanas e/ou aquelas afogadas na cloaca da estupidez totalitária-consumista-hipócrita serão incapazes de perceber que não se trata de pornografia barata, mas de uma representação do Poder que as fez andar de quatro sem que se dêem conta disso.

Notas:

1. NAZÁRIO, Luiz. Todos os Corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007. P. 107.
2. Idem, p. 103.
3. Pour une censure démocratique contre la permissivité d’État, Écran nº42; Le génocide, Écrits Corsaires, pp.239-301. Citado em NAZÁRIO, Luiz. Op. Cit., p. 103.
4. NAZÁRIO, Luiz. Op. Cit., p. 102.
5. Idem, p. 107.
6. La première vraie révolution de droite, Écrits Corsaires, p. 50. Citado em NAZÁRIO, Luiz. Op. Cit., p. 104.

22 de dez. de 2008

O Porteiro da Noite e a Cumplicidade da Vítima



Sinopse 

O Porteiro da Noite (Il Portiere di Notte, 1974) conta a estória da relação de amor sadomasoquista entre Max e Lucia, que começou quando ela foi internada no campo de concentração onde ele era um dos oficiais nazistas no comando. Doze anos após o fim da guerra, ele é o porteiro de um hotel e ela uma hóspede, eles se reencontram e recomeçam a relação. Para irritação dos ex-oficiais nazistas que formam um grupo do qual Max faz parte. Esse grupo faz uma terapia para esquecer os horrores que perpetraram. Entretanto, “esquecer” aqui quer dizer eliminar as testemunhas que por acaso sobreviveram.

Essa terapia funciona como um julgamento, onde todas as provas contra eles são procuradas e eliminadas. Lucia chega quando Max está para ser julgado. Um de seus companheiros diz que ele não precisa se preocupar, pois não há testemunhas (sobreviventes conhecidos) contra ele. Por enquanto só Max sabe que alguém que poderia incriminá-lo acaba de chegar. Entretanto, em pouco tempo a existência de Lucia já não é um segredo para o grupo. Eles têm até uma fotografia dela, tirada durante a época do campo de concentração pelo próprio Max. O problema é que Max não só trouxe Lucia de volta, com quer protegê-la do bando. No final, o casal será assassinado.

O Que é Isso e de Onde Veio 



No que diz respeito ao Holocausto, em meados da década de 70 do século 20 alguns filmes italianos mudaram o ponto de vista, passando das narrativas sentimentais das primeiras produções para a sexualidade explícita e violenta. O Porteiro da Noite é um desses exemplos. A cineasta Liliana Cavani começou sua trajetória profissional na área dos documentários sobre temas da Segunda Guerra Mundial. E foi aí que ela encontrou um elemento discordante em relação discurso até certo ponto confortável que separa claramente mocinhos e bandidos. Não parece haver dúvida sobre quem são os mocinhos e quem são os bandidos quando falamos sobre a relação explosiva entre judeus e nazistas.

Cavani foi muito atacada por sugerir que poderia haver algo mais entre pelo menos alguns judeus e alguns nazistas. Entretanto, ela afirma que não inventou nada, não se trata de uma obra de ficção ou de horror envolvendo sexo. A cineasta conta que, durante suas pesquisas para os tais documentários sobre a guerra, entrevistou uma sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. Millicent Marcus lembra que, “nas palavras de Cavani, a mulher ‘começou a se sentir culpada por ter sobrevivido ao inferno, por tornar-se testemunha viva e, portanto, [guardar] a amarga lembrança de algo embaraçoso que todo mundo queria esquecer o mais rápido possível’” (1).

Peter Bondanella lembra também que a sobrevivente dizia odiar os Nazistas porque eles revelaram a ela a profundidade do mal de que todo ser humano é capaz. Ela teria inclusive aconselhado Cavani a não considerar inocentes todas as vítimas. Porque, como seus captores, elas eram humanas também. O mal, conclui Bondanella, não era apenas praticado nos campos de concentração. Era também ensinado, e as lições aprendidas assombrariam os sobreviventes e colocado uma sela (como se põe num cavalo de carga) de culpa neles pelo resto de suas vidas (2). Além dos judeus, muitos outros seres humanos encontraram seu fim nos campos de concentração nazistas. Lucia não é caracterizada como judia, mas pode-se dizer que existe certa ambigüidade, já que a maior parte das vítimas foram realmente os judeus. De fato, nas cenas que mostram a chegada de Lucia, várias pessoas em volta usam a estrela amarela, menos ela.

Memória Histórica e Memória Visual 



Thomas Elsaesser insere O Porteiro da Noite numa onda de produções do cinema de arte europeu que se seguiram ao final da guerra e onde a história da Alemanha durante o conflito deveria ser contada, mas os cineastas alemães ou não sabiam por onde começar ou ainda eram proibidos de fazê-lo. Antes que cineastas como Hans-Jürgen Syberberg, Helma Sanders-Brahms e Rainer Werner Fassbinder surgissem com suas respostas, o caminho foi consolidado na Itália por filmes como Roma, Cidade Aberta (Roma, Città aperta, 1945), Paisà (1946) e Alemanha, Ano Zero (Germania Anno Zero, 1948) dirigidos por Roberto Rossellini; Os Deuses Malditos (La Caduta Degli Dei, direção de Luchino Visconti, 1969), O Porteiro da Noite, Pasqualino Sete Belezas (Pasqualino Settebellezze, direção de Lina Wertmüller, 1976). Na França por Noite e Neblina (Nuit et Brouillard, direção de Alain Resnais, 1956) O Último Metrô (Le Dernier Metro, direção de François Truffaut, 1980). Na Suécia, por O Ovo da Serpente (Örmens Ägg, direção de Ingmar Bergman, 1977) (3). Talvez o mais conhecido venha de Hollywood, com Cabaré (Cabaret, direção de Bob Fosse, 1972) e a série de televisão Holocausto (Holocaust, direção de Marvin J. Chomski, 1978).

Anton Kaes levanta a questão de como a Alemanha é representada nos filmes, especialmente dos que se passam durante o regime Nazista. Não é que os filmes mintam, o problema é a quantidade de clichês que filtra nossa visão e nosso entendimento em relação ao assunto (4). Kaes argumenta que se criou certa iconografia Nazista que passou a ser reproduzida rotineiramente. Filmes como Os Deuses Malditos, O Porteiro da Noite, O Último Metrô e Lacombe Lucien (1974), de Louis Malle, criaram imagens tão poderosas do Fascismo que influenciaram a maioria dos filmes posteriores sobre o Terceiro Reich.




Seu estilo visual tornou-se uma convenção para filmes históricos que tratassem do Nazismo. O Terceiro Reich foi frequentemente reduzido a sinais: uniformes das SS, suásticas, nucas raspadas, cintos e botas de couro preto, corredores intimidantes e escadas de mármore. Tudo isso sinalizando: “fascismo”. Sinais que servem de pano de fundo sugestivo que dá peso e conseqüência aos acontecimentos históricos. Karsten Witte também atacou esses clichês, afirmando que em nada eles contribuem para criar novas perspectivas de análise. De fato, completa Kaes, a questão é exatamente esta. Filmes tocantes, mas inócuos produtos de massa, onde o passado é apresentado como algo resolvido - portanto ninguém será afetado por ele.

Em 1974, estes filmes representavam o que ficou conhecido como “Nazi-Retrô”, provocando intensa discussão no Cahiers du Cinéma a respeito de filme, memória popular e reescrever a história. A propósito disso, Michel Foucault argumentou que existe uma batalha pelo domínio da memória coletiva, a memória popular. Segundo Foucault, aquele que controlar a memória do povo também controlará sua experiência e conhecimento do passado. Ele reclama que não existem mais filmes sobre o papel dos grupos que formavam a Resistência Francesa ao Nazismo porque alguém deseja que a Resistência seja esquecida.

Mantêm-se os filmes sobre o Fascismo (cheios de clichês) para o espectador introjetar o temor em relação a ele, ao mesmo tempo em que os poderes dominantes se apresentam como única alternativa legítima de resistência (já que os filmes sobre os movimentos populares de resistência sumiram). De acordo com Foucault, os filmes derrotistas sobre o Fascismo, direcionados a provar que ninguém está imune a ele (implicando que nada pode ser feito sobre o Fascismo), inconscientemente jogam nas mãos dos poderes dominantes (5). Nem será necessário nos estendermos muito além de lembrar dos ataques sofridos pelo filme de Cavani na época do lançamento e o ostracismo no qual considero que foi mergulhado, o que fez dele pouco mais que uma referência em alguns poucos compêndios mais aprofundados sobre o cinema italiano.

Luto e Silêncio 



Na opinião de Millicent Marcus, filmes como O Porteiro da Noite radicalizaram e desmistificaram predecessores como Roma, Cidade Aberta, Paisà, Alemanha Ano Zero e Os Deuses Malditos, por trazer para frente do palco as correntes sexuais antes sublimadas e negar a redenção coletiva que o sacrifício das protagonistas femininas prometia antes. Agora é o próprio corpo dessas mulheres que se torna o palco para a luta entre dominação e submissão. E o resultado desta luta não oferece esperança para o tipo de humanismo transcendente contido nos outros filmes (6).

O Porteiro da Noite seria o maior expoente do cinema italiano em torno dessa sexualização do Holocausto. Neste contexto, o filme levanta sérias questões a respeito da cumplicidade da vítima em relação a sua própria escravização, sua identificação com o opressor e a dependência mútua entre dominador e dominado. Para Marcus, quase que se poderia dizer que o cenário do campo de concentração nos flahbacks e onde tudo teria começado poderia até ser um mero pretexto, um laboratório Para o estudo da sexualidade humana quando levada ao limite. Como Cavani mesma disse, ela sentiu “a necessidade de analisar os limites da natureza humana no limite da confiança, levar as coisas ao extremo”.

Marcus interpreta O Porteiro da Noite também como um estudo da relação que uma sociedade pode estabelecer com um passado profundamente traumático e perturbador. O silêncio da sobrevivente de Auschwitz que Cavani entrevistou e que deu origem ao filme demonstra a reserva e o silêncio de décadas da cultura italiana em relação à realidade dos campos de concentração e extermínio. Gaetana Marrone considera a necessidade de Cavani revisitar esse trauma histórico como uma forma de trabalho de luto (Trauerarbeit) que a sociedade como um todo se recusou a tomar para si. Segundo Marrone, “um retorno obsessivo como esse ao lugar de morte e horror, pode ser relacionado aos processos simbólicos de um rito funerário. O campo de concentração se torna algo que freqüenta o inconsciente do sobrevivente, sua jornada representando seu próprio ritual de luto” (7).




Com relação à terapia que os ex-nazistas fazem com o objetivo de livrar-se da culpa, o que vemos é que eles redefinem a culpa como algo externo a eles e, portanto, facilmente apagável. Entretanto, o que eles apagam são as provas vivas de suas ações. Matando os sobreviventes eles pretendem matar sua culpa. No mesmo de Foucault quando se referiu a tendência de apagar o passado ao evitar que certos filmes falem sobre certos assuntos. Como disse Klaus, o líder do grupo de criminosos de guerra, a “memória não é feita de vagas sombras, mas de olhos que tem olham direto na cara e dedos que apontam acusando você”. Segundo esse ponto de vista, uma vez que a evidência concreta é destruída, estes homens estão “curados” (é a famosa queima de arquivo).

O problema é Max, “um caso especial”. Em função do restabelecimento de sua relação com Lucia, um elo com o passado é refeito: o porteiro da noite, aquele que está no limiar entre a escuridão da noite e a luz do dia, entre o passado nazista e o presente pós-guerra, e que se recusa a fechar a porta entre eles. O impulso de Max e Lucia para refazer seu relacionamento e recuperar seu passado funciona como antídoto contra a intenção dos ex-nazistas de apagar a história. Para o casal, o Holocausto acaba servindo como objeto do desejo, e a lembrança dele, sua marca na memória, é o que os seduz.

O Preço da Normalidade 



A espetacularização e estetização do Holocausto feita por Cavani está explicita na própria espetacularização feita por Max ao filmar a dança de Lucia no campo de concentração para uma platéia de oficiais das SS. Além disso, quando Max afirma que sua relação com Lucia é bíblica e não tem nada de romântico, podemos entender o presente que ela recebe depois da dança. Ela recebe a cabeça de um outro prisioneiro que ele dizia que a incomodava. O elemento bíblico aqui é Salomé, apontada no novo Testamento como responsável pela morte de João Batista. É dele a cabeça com a qual a arte Ocidental a retrata. Salomé dançava para seu tio, que lhe promete dar o presente que ela desejar. A mão de Salomé diz a ela que peça a cabeça de João Batista. Só que as semelhanças param por aí, pois Lucia diz que só queria que o prisioneiro fosse transferido para outro lugar.

A dança de Lucia parece ser a seqüência mais lembrada deste filme. Numa paródia a Marlene Dietrich, Lucia veste um uniforme das SS, sem a camisa e o paletó. Dança e canta de forma sedutora. Com os seios a mostra, ela circula pela sala como modos provocantes. Quando termina sua apresentação, ela se acomoda numa cadeira na mesa de Max. Segundos antes de Max levantar o pano da caixa para que ela veja o presente que ganhou, ele dá uma risada contida. Ela vê a cabeça do prisioneiro judeu e fica visivelmente atormentada, mas sem reação. Agora, além da memória de sua relação com um carniceiro nazista de campo de concentração (enquanto dia e noite outros judeus eram mortos nas câmaras de gás ali mesmo), Lucia leva agora mais uma lembrança (ela é a responsável direta pela morte de um judeu como ela). Levando em consideração o relato que a sobrevivente de um campo de concentração deu a Cavani, podem-se imaginar quantos segredos alguns sobreviventes têm que carregar!




Segundo Marguerite Waller, O Porteiro da Noite demonstra como Cavani subverte as posições convencionais entre homem e mulher, desestabilizando as oposições binárias nas quais se baseiam as relações de poder Fascistas. Se a lógica binária se mantiver, judeus e nazistas, mulheres e homens, continuaram sobrecarregados com a tarefa de representar suas posições como estáveis, coerentes e corretas. Uma tarefa que as envolverá em mais representações da diferença enquanto oposição e ameaça. Millicent Marcus conclui que o mesmo esforço que as pessoas fariam para reprimir os impulsos sexuais assumidos por Max e Lucia é análogo ao esforço que o conjunto de instituições políticas de um país faria para reprimir um passado traumático (ela se refere a Itália e Alemanha, mas poderíamos pensar no caso do Brasil em relação às ditaduras desde a proclamação da República).

Entretanto, completa Marcus, quando a espetacularização e estetização dos hábitos do casal nos transforma (a nós espectadores) em testemunhas libidinosas, Cavani nos estaria forçando a conhecer os sombrios e secretos esconderijos de nossas próprias fantasias sexuais e nossa necessidade simultânea de reprimi-las - em defesa da manutenção da ordem psíquica e do funcionamento social. Nas palavras de Marcus, “nada podemos senão reconhecer nossa cumplicidade com as atividades malignas dos ex-oficiais nazistas que pretendem exorcizar a ameaça [que o casal representa] a sua normalização no pós-guerra” (8).


Leia Também:

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Notas:

1. MARCUS, Millicent. Italian Film in the Shadow of Auschwitz. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 53.
2. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 350.
3. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema: A History. London: Macmillan, 1989. Pp. 248-9.
4. KAES, Anton. From Hitler to Heimat. The Return of History as Film. Massachusetts: Cambridge University Press, 1989. Pp. 22-3.
5. Idem p. 291n41.
6. MARCUS, Millicent. Op. Cit., p. 52.
7. Idem, p. 53.
8. Ibidem, p. 55 e nota 25. 


29 de jan. de 2008

O Porteiro da Noite


Viena, Áustria, 1957. Um ex-ofical das SS trabalha disfarçado como porteiro noturno de um hotel. Ele faz parte de uma organização secreta de ex-nazistas que eliminam todos aqueles que podem identificá-los e denunciá-los para os exércitos que ocuparam o país após a derrota de Hitler. Certo dia surge no hotel uma mulher. O porteiro e ela se reconhecem imediatamente. Eles tinham uma relação sadomasoquista quando ela era prisioneiro no campo de concentração onde ele servia. Ela não só não o denuncia como acaba voltando para ele, que tenta desesperadamente protegê-la da organização secreta – passam a viver confinados em um dos quartos do hotel. O filme mostra a lenta degradação física e mental a que ambos se submetem para manter viva sua relação.


Lançado em 1974, entre outros méritos O Porteiro da Noite (Il Portiere di Notte), dirigido pela cineasta Liliana Cavani, tem a capacidade de nos fazer repensar e problematizar mais profundamente as relações entre as pessoas. No fundo, o filme trata da complexidade das relações humanas, exemplificada pela relação sadomasoquista entre os protagonistas. Podemos dizer que o filme também problematiza, ou permite uma problematização, da forma como o cinema e a televisão podem (ou desejam) distorcer a realidade que pretendem mostrar.

Ficamos tão perplexos com essa insólita relação entre uma prisioneira de campo de concentração e um nazista que tomamos a parte pelo todo. O escândalo talvez nem seja o sadomasoquismo posto a nu, mas a percepção de quão profundamente estamos ligados mais a clichês e estereótipos sobre o que é a vida do que a ela propriamente.

Acostumamo-nos a ver, transplantados (e é mesmo como se fosse uma operação cirúrgica em nossas mentes) para os filmes de guerra e sobre o Holocausto, um desfile de clichês que gira em torno da oposição Bem x Mal. Os soldados americanos estão sempre do lado do Bem, enquanto os nazistas representam o Mal – como se soldados americanos nunca tivessem cometido atrocidades no campo de batalha; às vezes eu acho que eles nem falavam palavrões. Quando um soldado americano ou inglês não larga sua arma até o último tiro, é porque são heróis. Quando um soldado nazista faz o mesmo é porque ele é um fanático. Esta maneira de recontar a história não se restringe aos filmes ficcionais, muitos documentários abordam a questão dessa maneira. Referem-se de forma diversa quando falam da resistência feroz no campo de batalha em relação aos americanos e ingleses ou aos soldados nazistas. Na verdade, este é o discurso daqueles que venceram a guerra. Se os nazistas tivessem vencido, fariam o mesmo. A verdade não interessa!

Quando o caso é com os judeus, invariavelmente eles são as vítimas. Sempre que um filme mostra alguém que discorda de um judeu, essa pessoa passa a ser taxada de anti-semita – e Liliana Cavani certamente sofreu tal acusação. É como se os judeus estivessem sempre certos. É como se ninguém pudesse discordar dos judeus a respeito de coisa alguma – brigar então nem se fala. Qualquer coisa é motivo para os judeus afirmarem que estão sendo perseguidos. E nem vou entrar no mérito da atitude que o exército israelense adota em relação aos palestinos. Toda essa cortina de fumaça em torno da realidade torna menos evidente a complexidade das relações humanas. A divisão entre Bem e Mal pode facilitar a compreensão da vida ao reduzir tudo ao preto e branco. Só que a vida é cheia de tons de cinza.

É isto que mostra O Porteiro da Noite: a identificação entre vítima e torturador. Prato cheio para análises psicanalíticas, psiquiátricas, antropológicas, sociológicas e filosóficas a respeito do sadomasoquismo, o filme foi muito combatido apenas porque rompia com o estereótipo do Bem contra o Mal, além de colocar uma vítima como agente de seu próprio sofrimento.

Claretta Tonetti traça um paralelo entre O Porteiro da Noite e O Último Tango em Paris, filme dirigido pelo cineasta Bernardo Bertolucci. No que diz respeito ao sadomasoquismo, o filme de Bertolucci seria como que um precursor do filme de Cavani. No Último Tango temos, embora com muito menos ênfase, referências à patente militar de coronel de Paul - personagem de Marlon Brando. Jeanne, a personagem de Maria Scheneider, também se veste com o uniforme dele. No Porteiro, a personagem de Charlotte Rampling vai um pouco mais longe. Além de vestir o uniforme da SS nazista, ela dança para vários oficiais com os seios desnudos. A diferença de idade entre homem e mulher é grande nos dois filmes, o que daria uma coloração incestuosa as relações. No Último Tango, Paul dá banho em Jeanne, enquanto no Porteiro, como um pai ou mãe fariam, o ex-oficial da SS alimenta a mulher com uma colher e depois a veste como se ela fosse uma criança inexperiente. Todos esses elementos como botas longas, armas, quepes e uniformes militares, carregam uma mensagem clara de violência e poder (dominação). (1)

Ao contrário do que seria razoável, o escândalo não foi mostrar uma relação sadomasoquista na tela do cinema, mas mostrar uma vítima de campo de concentração que amava ser torturada por seu homem – o oficial nazista que administrava o campo de concentração onde se conheceram.

Naturalmente não estou sugerindo que todos os judeus e judias gostaram de ser torturados antes de morrer. Também não estou negando o holocausto. Absolutamente não! Entretanto, espremer todas as vítimas do lado do Bem e todos os nazistas do lado do Mal impede a constatação do óbvio: o universo das relações humanas ultrapassa qualquer redução a clichês e estereótipos. A polêmica na época do lançamento de O Porteiro da Noite ilustra muito bem o que acontece quando utilizamos aquilo que são apenas muletas para uma compreensão inicial e limitada do mundo (clichês e estereótipos) como se fossem nossas próprias pernas (nosso espírito crítico).


Leia também:

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Notas:

1. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci: the cinema of ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 136. 
 

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