Ecos do Último Tango na Tela
Tonetti afirma que O Último Tango em Paris está repleto de elementos sádicos, mesmo assim ela acredita que em muitas ocasiões Paul é mais infantil do que mórbido. Como se fosse ainda o adolescente cobrando do pai que foi responsável pelo fracasso de seu primeiro encontro – o pai mergulhou os sapatos de Paul na bosta de vaca. Jeanne, por sua vez, não seria uma “vítima profissional”, mas apenas alguém buscando por algo diferente – enquanto se prepara para um casamento com um vestido de noiva quase tradicional. Contudo, Tonetti admite que em alguns casos O Último Tango possa ser considerado um precursor de O Porteiro da Noite (Il Portiere di Notte, direção Liliana Cavani, 1974), onde um ex-comandante de campo de concentração reencontra sua ex-vítima amante sado-masoquista. Neste filme também encontramos armas, botas militares e uniformes usados como fetiches. A diferença de idade entre homem e mulher também é grande nos dois filmes, com uma coloração quase incestuosa. Assim como Paul dá banho em Jeanne, o nazista arruma e alimenta sua ex-vítima (1).
A recepção negativa
de Pasolini em relação a O Último Tango seria apenas reflexo de uma rivalidade entre pai e filho
Depois de levar os tiros e antes de cair no chão, Paul tira o chiclete da boca e cola debaixo da grade da varanda. Em La Luna, filme que Bertolucci dirigirá em 1979, Douglas, o marido de Caterina, antes de morrer encontra um pedaço de chiclete colado na grade da varanda. Antes de ele cair, a câmera subjetiva nos entrega o campo de visão de Paul: os telhados à volta, como em Sob os Tetos de Paris (Sous le Toits de Paris, direção René Clair, 1930). A Noite Americana (La Nuit Américaine, direção François Truffaut, 1973) é outro filme que segundo Tonetti encontra seu germe em O Último Tango. Jean-Pierre Léaud, que era Tom no filme de Bertolucci, agora é Alphonse. Neste filme, o cinema também é visto como uma atividade apaixonante e, às vezes, “despreocupada”. Onde a confusão entre a vida real e a imagem dela na tela deixa as pessoas envolvidas em crise. Tonetti lembra também que O Último Tango está encaixado entre dois filmes de Michelangelo Antonioni, Zabriskie Point (1969) e Profissão: Repórter (Professione: Reporter, 1975), com os quais compartilha o sentimento de escapada de e ruptura com a cultura e o passado de alguém. No primeiro caso, um casal tenta abandonar a cultura materialista.
A rivalidade entre
Bertolucci e Pasolini
ficou evidente em 1975.
Quando estava filmando Salò, ele disse que o choque seria muito maior do que em
O Último Tango
Bertolucci e Pasolini
ficou evidente em 1975.
Quando estava filmando Salò, ele disse que o choque seria muito maior do que em
O Último Tango
No segundo caso, John Locke troca de identidade com um morto. Mais tarde, ele está dirigindo numa estrada quando sua companheira pergunta a razão dessa ruptura drástica com seu passado. Então ele pede que ela olhe para trás, com o carro em movimento o que ela vê é a estrada sumindo na no fim. Quando a esposa de Locke é chamada para reconhecer o corpo dele, ela diz que nunca o viu antes – o mesmo que Jeanne depois de matar Paul. Em tempo, Maria Schneider, interpreta o papel de Jeanne e da companheira de Locke - no filme de Antonioni ela não tem um nome. Olhando para trás, Tonetti sugere que O Último Tango radicaliza a mensagem dos filmes da Trilogia da Incomunicabilidade, de Antonioni. Em A Aventura (L’avventura, 1959), A Noite (La Notte, 1960) e O Eclipse (L’eclisse, 1962), Antonioni foca naquilo que ele chamou de “doença dos sentimentos” e na tentativa fútil de utilizar o erotismo para preencher o vazio da falta de sentimentos. Antonioni dizia que essa preocupação com o erótico não seria obsessiva se Eros estivesse com boa saúde. Quer dizer, se fosse mantido dentro das proporções humanas. Mas Eros está doente, dizia o cineasta.
Luz. Bacon. Ação
f
“Eu queria
que Paul fosse
como as figuras que
retornam obsessivamente em Bacon: rostos consumidos
por algo vindo
do interior”
Bertolucci sobre
o personagem de
Marlon Brando (2)
“Eu queria
que Paul fosse
como as figuras que
retornam obsessivamente em Bacon: rostos consumidos
por algo vindo
do interior”
Bertolucci sobre
o personagem de
Marlon Brando (2)
f
Bertolucci levou Vittorio Storaro numa exposição sobre a obra do pintor irlandês Francis Bacon, explicando que ali estava sua inspiração. De acordo com o cineasta, as luzes alaranjadas no filme são influências dessa visita. O apartamento vazio foi iluminado para sublinhar o que Bertolucci chamou de estado “uterino e pré-natal”, e a imagem dominante no filme foi muito influenciada pelas pinturas de Francis Bacon expostas durante os créditos iniciais (3). Com relação ao quadro que aparece nos créditos iniciais do filme, Bertolucci disse que o elemento figurativo naturalista do retrato vai se perdendo na medida em que o observamos por mais tempo, tornando-se a expressão do que se passa nas tripas, ou no inconsciente, do autor. Então Bertolucci levou Brando na exposição, mostrou-lhe esse mesmo quadro e pediu: “Você está vendo este retrato? Bem, quero que você consiga recriar essa massa de dor”. Bertolucci afirmou que essa foi praticamente a única (pelo menos a principal) instrução que deu ao ator. Disse ainda que com freqüência trabalha desta forma (com imagens de quadros), acredita que a comunicação é mais eficaz do que com palavras (4).
Em seus dois filmes anteriores, A Estratégia da Aranha (Strategia del Ragno, 1970) e O Conformista (Il Conformista, 1970), Bertolucci havia trabalhado com tons azulados. Trabalhando com o mesmo iluminador dos filmes anteriores, Vittorio Storaro, Bertolucci só sabia que para o próximo eles precisavam de outro tipo de emoção. Na opinião de Claretta Tonetti, os dois quadros de Bacon evocam um sentimento de falta de sentido para a existência e da inevitabilidade da decadência. Na primeira figura, Retrato Duplo de Lucien Freud e Frank Auerback (1964) (imagem acima, à esquerda), um homem se encontra deitado no que poderia ser uma cama de cor laranja, que se bifurca em duas. A pele do homem, anormalmente suave sobre músculos acentuados, como se tivesse sido raspada ou encerada, sugere flacidez e não saúde. Seus lábios estão contorcidos em nós de uma forma só possível em corpos sem vida. Em Estudo Para Um Retrato (1964) (imagem abaixo, à esquerda), o segundo quadro, Bacon nos oferece uma síntese de tons em preto, branco e rosa, convergindo para o canto de um quarto, no meio do qual uma mulher está sentada.
O público devia
estar muito preocupado
com a cena da manteiga
para sequer notar os quadros
de Francis Bacon logo
no início do filme
Na opinião de Tonetti, os corpos não atraentes dos quadros de Bacon remetem a um sadomasoquismo. Seja como for, isso é algo que certamente está presente na relação entre Paul e Jeanne. E muito provavelmente caracterizava a relação dele com Rosa – ela que ganhou dele em seu próprio jogo, com um suicídio que foi ao mesmo tempo punição para ela e para Paul. Uma banheira cheia de manchas de sangue (que a funcionária limpa como se estivesse lavando a cozinha), a lâmina que Rosa usou para cortar os pulsos ficando em poder de Paul, sodomia e degradação, memórias de um pai brutal (no caso de Paul), outro pai severo (no caso de Jeanne) e fotografado em uniforme militar... Elementos de um padrão sádico que muitas vezes chega ao ponto de predominar no filme até o final, quando Jeanne atira em Paul. “Como você gosta de seu herói, baby?”, são as palavras de Paul antes de levar um tiro (5).
f
O grito de Paul
no início é mais próximo
do grito de Bacon/Inocêncio
do que de Munch
As pinturas de Bacon, Tonetti sugere, cujas cores geralmente representam doenças (ele considerava as doenças de pele artisticamente interessantes), são cinematográficas por causa de seu conteúdo intenso, chocante. Os corpos de Bacon “gritam”, mostrando a dor de maneira sadomasoquista. A primeira imagem de O Último Tango em Paris depois dos créditos é um grito de Paul: “maldito Deus” (fucking God). A alguns poderia evocar a pintura de Edvard Munch, O Grito (1893). Mas esta cena lembra a Tonetti outro quadro de Bacon, Estudo Segundo um Retrato do Papa Inocêncio X, por Velásquez (1953) (imagem acima, à direita). Enfim, as pinturas de Bacon ajudaram Bertolucci a estabelecer o padrão cromático do filme. Ricos alaranjados, cinzas claros e frescos, brancos gelados e vermelhos ocasionais, combinados com o próprio gosto do cineasta por marrons suaves, alourados pardos, e brancos delicados com sombras azuladas e rosadas. Outra cena que evoca a decadência é a da velha senhora lavando e recolocando sua dentadura.
O grito blasfemo de Paul se origina na sua incapacidade de explicar o suicídio de Rosa, mas também em sua incapacidade de explica a própria rosa. Seu único alívio é encontrar um lugar onde a passagem do tempo não lhe pese nos ombros. A insistência dele em não saber o nome de Jeanne e seu desinteresse pelo mundo exterior parece referir-se apenas ao passado recente, já que ele começa a contar para ela detalhes de sua adolescência e procura saber detalhes sobre o primeiro orgasmo dela. Jeanne se recente de parecer estar falando com as paredes, reclama que a solidão de Paul pesa nela e o considera um egoísta. Ela conclui que se é assim poderia muito bem estar sozinha, então ela começa a se masturbar – no outro cômodo, longe dos olhos dela, Paul chora. A vida de Jeanne com Tom se passa sempre na rua. Ela sempre reclama do comportamento de Paul, mas sempre volta. Numa dessas vezes, ela entra no apartamento e o cumprimenta: “olá monstro!” (6).
Leia também:
Roma de Pasolini
Arcaísmo e Cinema no Evangelho de Pasolini
Os Auto-Retratos de Francis Bacon
O Porteiro da Noite e a Cumplicidade da Vítima
Bertolucci no Mundo da Lua
Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (I), (II), (III), (IV), (V)
Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I)
Notas:
1. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The Cinema of Ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 136-8.
2. Idem, p. 126.
3. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 310.
4. TIRARD, Laurent. Grandes Diretores de Cinema. Tradução Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. P. 155.
5. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., p. 136.
6. Idem, pp. 126-9.