“(...) Um pequeno tratado sobre a solidão e
a incomunicabilidade do homem ‘comum’...
Uma espécie de mundo no fim do mundo...
Mais uma viagem para o interior daquela
periferia-mundo que é a sociedade de massa” (1)
a incomunicabilidade do homem ‘comum’...
Uma espécie de mundo no fim do mundo...
Mais uma viagem para o interior daquela
periferia-mundo que é a sociedade de massa” (1)
Tragicomédia Subproletária
Ciancicato Miao e Baciù, respectivamente pai e filho, lamentam-se diante do túmulo da esposa/mãe – Crisantema morreu de intoxicação com cogumelos venenosos. Ciancicato não acha certo que seu filho cresça sem a presença de uma mãe, decidem então procurar por uma substituta. Um ano depois, ainda não haviam encontrado ninguém para substitui a empregada/esposa/mãe, quando um casal de turistas estrangeiros cruza o caminho deles, numa improvável visita à favela próxima a Roma onde os dois moram – hoje em dia isso não é tão improvável no Rio de Janeiro. De repente, Ciancicato Miao e Baciù encontram Assurdina Caì rezando na beira da estrada. Ao perceber que ela é surda-muda, Ciancicato fica confiante de que agora vai conseguir se casar. E ele estava certo. Depois da cerimônia, Baciù toca na gaita alguma frase de Va Pensiero, da ópera Nabucco, de Giuseppe Verdi (“Vá, pensamento, sobre as asas douradas. Vá, e pousa sobre as encostas e as colinas. Onde os ares são tépidos e macios. Com a doce fragrância do solo natal!...”). Na imagem seguinte, garotinhos aplaudem do alto de uma pilha de lixo.
Assurdina Caì: Bela, Cândida como uma
Madonna, Sorridente e Surda-Muda
Madonna, Sorridente e Surda-Muda
Como Assurdina gostou muito da casa em frente ao barraco deles e ela está a venda, Ciancicato (um simples funcionário municipal) teve uma idéia. Eles vão simular gravidez e uma tentativa de suicídio dela do alto do Coliseu. Mas tudo dá errado, quando eles começam a conseguir doações em dinheiro das pessoas na rua, Assurdina escorrega numa casca de banana jogada displicentemente pelo mesmo casal de turistas que havia visitado a favela – enquanto pai e filho choram, seus amigos caem na risada. De volta do enterro para o velho barraco (eles construíram no cemitério uma lápide tão bizarra e cheia de erros gramaticais quanto a que haviam feito para Crisantema), Ciancicato Miao e Baciù se assustam com a presença de Assurdina vestida de noiva (imagem acima) – serena como uma Madonna. Ela está morta, mas também está lá. Depois de alguma confusão, percebendo que nada mudaria (o fantasma continuaria a fazer a comida, passar a roupa, limpar a casa e dormir com o pai) Ciancicato Miao e Baciù se conformam com a situação e seguem a vida com Assurdina.
Roma Não é Só o Coliseu
O local onde Pasolini foi assassinado
em Ostia não era muito longe ou muito
diferente de Fiumara di Fiumicino
em Ostia não era muito longe ou muito
diferente de Fiumara di Fiumicino
Estamos em Fiumara di Fiumicino, um bairro de subproletários na planície da foz do Tevere. (imagem no início do artigo) Aqui as crianças brincam em montes de lixo (última imagem) entre os barracos – certamente construções ilegais e pintadas com cores fortes, talvez retocadas para o filme. Não muito longe da capital da Itália, porém tão estranha a ela quanto à lua. Os turistas (ingleses, norte-americanos?) vêm do centro de Roma, trazendo nos olhos as imagens da antiguidade e nas malas os produtos da modernidade. Pier Paolo Pasolini continua em seu trabalho de reconsagração do mundo marginal, vendo a humildade como grandeza, seu tragicômico desembaraço como uma “desesperada vitalidade”. Pasolini irá justapor o espetacular centro de Roma (o Coliseu) a essa paisagem da periferia. Com estas palavras Noa Steimatsky inicia sua descrição de A Terra Vista da Lua (La Terra Vista dalla Luna, episódio de As Bruxas, Le Streghe, 1966) (2). Certamente, até aqui uma situação não muito diferente do que acontece no Rio de Janeiro no Brasil (e noutras capitais brasileiras), os turistas passam pelo mar de favelas velozmente a caminho ou vindos do aeroporto internacional. (imagem acima, Assurdina no Coliseu)
Pasolini via Silvana Mangano como a
encarnação da mãe dele quando jovem
encarnação da mãe dele quando jovem
Para esse lugar o viúvo e seu filho trazem uma surda-muda chamada Assurdina. Interpretada pela atriz Silvana Mangano, protagonista de todos os episódios de As Bruxas, esta é a primeira parceria entre ela e Pasolini – o poeta-cineasta a considerava a personificação do ideal de beleza. Iniciando sua carreira como uma mondina (colhedora de arroz) de pernas de fora em Arroz Amargo (Riso amaro, 1949), nas mãos de Pasolini ela surgirá também como inocente ou sofisticada, com uma serenidade arcaica ou como uma neurótica moderna. Mangano é Jocasta no Édipo Rei (Édipo Re, 1967), a insatisfeita esposa do industrial em Teorema (1968), e a Madonna no sonho de Giotto em Decameron (1971). Assurdina se veste como uma boneca de pano, vestido verde, um cordão amarelo como sinto, meias azuis e chinelos vermelhos. Depois de casar com Ciancicato, chegam naquilo que ele chamou de “ninho”. É mesmo o que parece. Parcialmente coberta com palha, provavelmente foi construída com objetos jogados fora pelo consumismo. Como por mágica, Assurdina arruma toda aquela bagunça. (imagem acima, à direita, Assurdina a arrumadeira; abaixo, o “ninho”)
Assim como Assurdina faz um bricolage com o lixo
da classe dominante, a recusa da modernidade por parte de Pasolini monta através da paisagem da periferia um panorama muito negativo da Itália
da classe dominante, a recusa da modernidade por parte de Pasolini monta através da paisagem da periferia um panorama muito negativo da Itália
Steimatsky interpretou tudo aquilo como uma alusão nostálgica ao lirismo das favelas italianas de Milagre em Milão (Miracolo a Milano, 1951), O Teto (Il Tetto, 1956; ambos dirigidos por Vittorio De Sica), e Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, direção Federico Fellini, 1957). Nesses três casos, esses barracos eram vistos com orgulho pelos desvalidos. As locações de A Terra Vista da Lua também evocaram em Steimatsky as crianças se virando nos escombros da guerra em Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, 1945) e Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero, 1948; ambos dirigidos por Roberto Rossellini). Puxando ainda mais para trás, lembramos de Chaplin o vagabundo (de fato, Assurdina encontra uma fotografia de Carlitos na bagunça do “ninho”) com uma cartola de Fred Astaire, e mesmo a pobreza como utopia em A Nós a Liberdade (À Nous la Liberté, direção René Clair, 1931), ou a procissão de casamento pelas esquinas de uma vizinhança pobre em O Atalante (l’Atalante, 1934). Mas Roberto Chiesi (do Centro Studi-Archivio Pier Paolo Pasolini, na Cinemateca de Bolonha) avisa que Pasolini não era um cinéfilo, e que muitas dessas imagens derivam dos quadrinhos infantis semanais de Il Corriere dei Piccoli – Ciancicato é um pouco o personagem de Seu Pampurio, o retrato do italiano médio alienado, e um pouco Harpo Marx, de Loucos de Amor (Love Happy, direção David Miller, 1949) (3); último filme dos Irmãos Marx e com a participação da iniciante Marilyn Monroe. Mas as imagens de Pasolini vão além, evocando uma Itália ao mesmo tempo humilde e um pastiche paródico do excesso contemporâneo.
“Após uma queda fatal do Coliseu, tendo escorregado (...) numa casca de banana jogada por turistas, Mangano volta dos mortos para o barraco em Fiumicino. Quando ela aparece na porta diante de pai e filho assustados, sua beleza etérea e calma se converte, em função de sua insistência tímida [e dos questionamentos deles, numa] monótona mesmice: nesse lugar abandonado, estar vivo ou morto, como conclui o filme no final, é a mesma coisa. Essa moral significa que esse lugar humilde é ainda suficientemente vital para dar uma segunda vida a uma modernidade em ruínas? Ou, ao contrário, que viver num lugar desses é como já estar morto (mas talvez reter, como ‘uma força do passado’, um poder mágico e reconstrutor)? E onde tais fronteiras podem ser cruzadas, outros oxímoros [contradições] proliferam: a planície e o encantador, o arcaico e o atrasado, o cotidiano e o sagrado se alternam em reciprocidade. Em sua essência, aqui a estética de Pasolini, e sua política, são baseadas numa promessa redentora (e revolucionária) que em 1966 ele ainda acreditava que poderia ser extraída na periferia do milagre econômico italiano: uma reserva de energia arcaica que alimenta igualmente tanto os [produtos] efêmeros da Itália tardo-moderna como também as visões neo-realistas fictícias” (4)
Consumidor Tem Identidade?
Consumidor Tem Identidade?
Afinal, na década de 60, o arcaico estava nas ruínas
do centro de Roma ou em sua periferia degradada?
Dez anos depois de O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964), uma ilha de potência arcaica (que se pode ver um pouco também em A Terra Vista da Lua), Pasolini rejeitaria essa visão redentora – quando abjurou os filmes da Trilogia da Vida. Ele perderá a fé nessas promessas nascidas com o Neo-Realismo, tornando-se convicto de que apenas a violência, o choque ou o desespero poderiam constituir uma resposta dele ao ciclo vicioso do poder, dominação, e consumo mórbido incorporado naquilo que diagnosticou como o tecido fascista do neo-capitalismo. Enfim, em sua opinião o arcaico fora engolido numa Itália vazia, homogeneizada por fusões entre empresas e pela cultura do consumo que subjuga corpos, identidades e nações ao mórbido poder (da mercadoria e da mídia) que a tudo consome. (acima, à esquerda, a mensagem no final, estar morto ou vivo dá no mesmo)
Aplicando ironia à relação entre o sagrado e
o subproletariado, Pasolini ressuscitará Assurdina.
Viva ou morta, ela satisfaz marido e enteado, já que reassumirá seu papel de empregada dos homens (5)
“A vida é sonho e os ideais estão aqui... ” , Ciancicato explica para seu filho enquanto aponta para a sola do sapato. A ironia pasoliniana se faz sentir quando se conta para Assurdina que seria necessário um suicídio geral, mas não há lugar para todos no cemitério. Lá só há lugar para os desgraçados, os gananciosos, os canalhas, os patifes e os avarentos. De acordo com Bertelli, aqui o ataque à cultura burguesa e à esquerda foi direto. Tudo agora (no caso, se fala da década de 60 do século passado) é parte de uma realidade falsa, aparente, que se prostra de joelhos às regras das ideologias, das doutrinas, dos saberes mercantis... É nesse sentido que Pasolini dizia que vivemos nossa perda de identidade (6).
Leia também:
Roma de Pasolini
As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
Arcaísmo e Cinema no Evangelho de Pasolini
Bertolucci no Mundo da Lua
Fellini no Mundo da Lua
Notas:
1. BERTELLI, Pino. Pier Paolo Pasolini. Il Cinema in Corpo. Atti Impuri di um Eretico. Roma: Edizioni Libreria Croce, 2001. P. 138.
2. STEIMATSKY, Noa. Italian Locations. Reinhabiting the Past in Postwar Cinema. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008. Pp. VII-X, XXXI-II, 175n3 e 4.
3. BERTELLI, Pino. Op. Cit.
4. STEIMATSKY, Noa. Op. Cit., idem, p. X.
5. NAZÁRIO, Luis. Pier Paolo Pasolini. Orfeu na Sociedade Industrial. São Paulo: Brasiliense, 1982. P. 22.
6. BERTELLI, Pino. Op. Cit., p. 143.