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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

20 de fev. de 2012

Fellini Romano de Rimini


“Ao que parece (...),
Roma
é uma paródia
do documentário auto-
biográfico
, um ‘bloco de
notas’ da preocupação
obsessiva de Fellini
com o passado”
(1)



Multifacetada Como Uma Mulher

Roma de Fellini (1972) mostra o antigo e o novo da Cidade Eterna. Com uma narrativa descontínua, gira em torno das fantasias deste cineasta italiano que deixou Rimini por essa cidade que povoava (pelo menos em sua juventude) o imaginário dos habitantes do interior da península. Autobiográfico ou não, Roma parece exalar um nexo que Peter Bondanella resume em três diferentes perspectivas: a imagem de Roma a partir das memórias de um jovem estudante na sala de aula e na sala de cinema; Roma como se lembra um adulto jovem do interior (o alter ego de Fellini?) que lá chegou em 1939; e o quadro “objetivo” de Roma apresentado por Fellini adulto, enquanto realiza um documentário sobre a Cidade Eterna. A Roma de Fellini são muitas: aquela da Antiguidade Clássica, da Renascença e da Reforma, assim como a cidade barroca que representa a Igreja e o lado negro da Inquisição. Encontramos também a Roma moderna de Mussolini e seu sonho de reeditar a glória imperial. A Roma contemporânea de Fellini é aquela que transparece no teatro de revista (a câmera subjetiva mostra seu ponto de vista a partir da platéia), no cinema (a evocação dos velhos filmes de costume, populares durante o Fascismo), nos bordeis de antes da guerra e nas auto-estradas. A retórica fascista das escolas de sua infância será satirizada sem perdão na figura do velho diretor cruzando o Rubicão imitando César (cuja estátua foi reduzida a mero alvo dos pombos) (2).


(...) Não existe
uma Roma única, mas
uma série de imagens, cada
uma das quais interpene
tra e enriquece os significados
das outras
(...)(3)



A pensão romana a que o jovem do interior chega em 1939, com seus personagens estranhos, não escapa da sátira felliniana. Numa trattoria, ele será servido com um grande repasto e será também lembrado: “o que você come, você caga!”. Tarde da noite, a sombra de cães vadios nos trás a lembrança a loba, símbolo antigo de Roma. De repente, somos jogados de volta no tempo presente quando a equipe de Fellini se aproxima de Roma através do anel viário que circunda a cidade. Um caminhão de gado capota, prostitutas na beira da estrada, um cavalo solitário surge no meio da estrada – Bondanella se pergunta se aquilo é um eco do cavalo solitário de A Estrada da Vida (La Strada, 1954), mas essa é uma visão muito comum em certos países da América Latina. A cena culmina num engarrafamento em torno do Coliseu. Na seqüência seguinte, Fellini será interpelado por estudantes que o atacam porque seus filmes não se destinam a resolver problemas sociais. Da seqüência no buraco do metrô passamos à comparação entre a sexualidade durante o período Fascista (nos bordéis) justaposta à desinibição dos hippies na Piazza di Spagna. Então chegamos ao surrealista desfile de moda eclesiástico e à Trastevere, onde os italianos festejam a si mesmos na Festa de Noiantri. Então Anna Magnani se despede de Fellini (e de nós todos) e somos apresentados à versão moderna da invasão de Roma pelos bárbaros, representados pelo grupo de motociclistas, “cavalgando” por todos os monumentos que marcam as muitas épocas que Roma já viveu.

No Fundo é o Útero da Mãe 


(..) O filme
representa o Fellini 
quintessencial, em seu
tratamento da interação
entre realidade e ilusão
,
autobiografia e
história (...)

Peter Bondanella (4)



Em Roma de Fellini, o cineasta dá asas a uma sensação que sempre o acompanhou: logo abaixo da Roma atual está a Roma Antiga, tão perto, tão longe. Qualquer buraco em Roma pode terminar se tornando uma escavação arqueológica. A construção do metrô realmente criou oportunidades de volta ao passado. Evidentemente, avisa Fellini, nada parecido com o ambiente totalmente preservado que aparece no filme jamais foi encontrado. Como aconteceu com muitas idéias para seus filmes, esclareceu novamente o cineasta, isso teria sido inspirado por um sonho. Ele sonhou que estava preso numa masmorra bem no fundo de Roma, quando escutou vozes sobrenaturais vindo das paredes que diziam: “Nós somos os antigos romanos. Nós ainda estamos aqui”. Quando ele acordou, lembrou-se de um filme de Hollywood que havia assistido quando criança. She era baseado num livro de H. Rider Haggard (1856-1925), que o impressionou muito – houve várias refilmagens, é difícil saber a qual o cineasta se refere. Fellini se pôs a especular sobre a possibilidade de que em algum lugar no subterrâneo de Roma uma preservação similar tenha sido possível por ter sido hermeticamente fechada - talvez a casa de uma família perfeitamente preservada. O metrô de Roma parecia o lugar perfeito, para o cineasta era o lugar mais provável, mais misterioso e mais proibido. E por falar no mundo dos mortos, o “ciao” que Anna Magnani dá para Fellini foi o último nas telas. Ela morreu pouco tempo depois, embora pareça viva e presente, especialmente depois de fechar a porta (5).



“A cena de teatro
de revista ao vivo em
Roma ilustra   minha crença
de que muitas vezes a platéia
é mais interessante
do que o show”


Federico Fellini (6)



Fellini a descreve como um símbolo vivo de Roma, cidade misto de virgem e vestal, loba, aristocrata e vagabunda. Para Jean-Max Méjean, Roma de Fellini é um filme repleto de imagens da mãe. Logo na primeira cena três camponesas atravessam de bicicleta um campo deserto e desolado. Uma delas carrega uma foice, instrumento de trabalho na terra, mas também símbolo da Morte. Mas o assunto é a comida enlatada que se come nos Estados Unidos. Nutrição é uma preocupação de mãe, como a loba que amamentou Rômulo e Rêmulo, arquétipo da mãe ao mesmo tempo protetora e selvagem. Mãe presente, mas indiferente, Roma é a primeira mulher. Méjean sugere sua primeira encarnação para Fellini em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960). Contudo, Ekberg (e seus seios fartos) será anjo e demônio - não há maniqueísmo. Em As Tentações do Doutor Antônio (episódio de Boccaccio ’70, 1962) ela se anuncia como diabo, mas não dá medo (só para o confuso doutor), lembrando também de Saraghina em Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963) e a mulher da tabacaria em Amarcord (1973). Na cena do metrô e da sala romana, a única coisa que não se desfaz é uma estátua de Ceres, deusa romana da agricultura (Démeter para os gregos antigos) – introduzida em Roma numa época de fome. Intemporal e atual, eis a Roma que mostram onze dos vinte e quatro filmes de Fellini (7).

Roma Vista do Alto 





As feministas
reclamaram porque 

o cartaz do filme, que
retrata a loba de Roma
, lupa
capitolina, mostra uma
mulher de quatro
com três seios (8)






É curioso o que acontece logo na segunda seqüência de Roma de Fellini. Um professor dos tempos de Mussolini volta de um passeio com sua classe de crianças de um colégio de padres. De repente ele para e explica que o rio que está diante deles (na verdade, um pequeno riacho) é o famoso Rubicão. Ao atravessá-lo, o imperador Julio César teria pronunciado a famosa frase: A sorte está lançada (Alea jacta est). Mas o imperador disse isso ao sair de Roma, ao passo que após pronunciar a frase todos se põem a caminho da Cidade Eterna. É como se Fellini estivesse dizendo que seu verdadeiro desafio é conquistar Roma, e não o mundo. Mas também não se trata de conquistá-la fisicamente, isso é para os militares. O cineasta parece estar interessado em compreender a cidade, o que ela significa e o que ele está fazendo lá. Boa parte dos filmes de Fellini mostram a importância da capital da Itália para as pessoas de outras partes do país. Nascido em Rimini, do outro lado da península, Fellini foi atraído para Roma da mesma forma que Moraldo, em Os Boas Vidas (I Viteloni, 1953). Essa migração da província, do interior do país, com destino a Roma seria mesmo um problema social do pós-guerra. Marcello Rubini, o frustrado repórter de mexericos de A Doce Vida, seria, na verdade, a seqüência da viagem de Moraldo fugindo do marasmo da província. Manuela Gieri discute a relação entre Roma e a província na obra de Fellini, traçando um paralelo da relação entre a Sicília e Roma na obra de Luigi Pirandello, uma das grandes influências estéticas de Fellini (9).




Desde  Os  Boas  Vidas,
os filmes de Fellini são
divididos em  capítulos.
Roma  de  Fellini
  seria
bem mais fragmentado

Tullio Kezich (10)




De acordo com Tullio Kezich, Roma de Fellini foi o único de três projetos que Fellini pretendia filmar simultaneamente a partir de 1970 – os outros dois eram sobre um famoso imitador e sobre um homem que vagarosamente começa a se transformar na mulher que o abandonou. O eixo central de Roma é uma elaboração da idéia do presente surgindo do passado, e vice-versa. Fellini queria fazer um filme aos pedaços, nada que estivesse articulado a uma estrutura convencional. Um “filme de domingo”, diria o cineasta, um pedaço aqui outro ali, sem preocupações formais. O tema é Roma em toda a sua fascinante complexidade. É possível, insistiu Kezich, pelo menos um pouco perceber o fio narrativo de memórias pessoais: uma infância nas províncias, onde todo mundo fala sobre Roma. Enquanto reflete sobre seu passado, o cineasta segue para a história moderna da capital como se fosse “um documentário sobre o Amazonas”: olha tudo do alto. Talvez por esse motivo encontremos tantas gruas e guindastes no filme (e a voz de Fellini no megafone perguntando, “o que você está vendo?”) (11). Na seqüência final, com os motociclistas/bárbaros invasores, poderíamos até dizer que o ponto de vista é de baixo para cima: o bando passa pelos monumentos da Roma antiga (Fórum, Capitoline), Roma barroca (Piazza Navona), convergindo para o Coliseu antes de desaparecer na noite pela Via Cristoforo Colombo (12).

Histórias de Roma


Anna Magnani
não poderia faltar
num filme sobre Roma
:
“Eu não c
onfio em você”,
diz a atriz antes de fechar a
porta na cara de Fellini
. Foi
sua última aparição nas
telas
, vindo a falecer
no ano seguinte
(13)




“Muitas vezes me pergunto por que fiz um filme sobre Roma. Qual foi minha inspiração. Sou um péssimo viajante. Volta e meia me propõem filmes em que é necessário viajar; a televisão americana, por exemplo, queria me mandar para o Tibete, para a Índia, o Brasil, para uma espécie de fabulosa pesquisa sobre as religiões e a magia... Proposta fascinante, à qual logo disse sim, mas já sabendo que não iria me mover. Meus itinerários preferidos se encontram no triângulo Roma-Ostia-Viterbo. Estou bem aqui, por isso minha resposta poderia ser: faço um filme sobre Roma porque vivo em Roma e gosto da cidade. Mas por trás desta causa direta também existe uma remota. Logo depois de A Doce Vida, estavam na moda alguns filmes italianos de viagens exóticas, Magia Verde e outros. Sustentei, então, um pouco por amor à polêmica, um pouco porque realmente pensava assim, que não havia necessidade de viajar para colher o insólito, o estranho, o inesperado, que até as coisas próximas, e sobretudo elas, podiam apresentar aspectos desconhecidos, ou melhor, é em casa e entre os amigos que se revelam aberturas estranhas, fendas misteriosas, dignas de serem vistas com um olho assustado. Por isso já pensava numa Roma investigada de forma minuciosa, como que por um estrangeiro, uma cidade muito próxima e distante, como um outro planeta. Desta primeira idéia, com o tempo e sem que eu percebesse muito bem, desenvolveu-se o projeto do filme” (14)



A Doce Vida,
Satyricon
de Fellini
(1969) e Roma de Fellini (1972)
, formam uma trilogia
em torno do significado
da Cidade Eterna


Peter Bondanella (15)



Com estas palavras Federico Fellini procurou responder a questões sobre a gênese de mais um filme sobre Roma. Desta vez, porém, o fato de ostentar o nome de Roma no próprio título dava a impressão de que Fellini estava sendo direto, objetivo. Contudo, é o próprio cineasta quem confessa não estar bem certo quanto ao resultado. Ele afirmou que não sabe dizer se o resultado final corresponde à inspiração inicial – “não sei julgar meus filmes, vê-los pela perspectiva dos espectadores”, disse Fellini. Na verdade, o cineasta nem assiste a seus filmes depois que estão prontos. Mas ele admite que muitas seqüências ficaram de fora da montagem final: os ônibus noturnos, o torcedor que perdeu uma aposta no futebol (numa partida entre Roma e Lazio), a brisa marinha que sopra na cidade nas tardes de verão e o cemitério. Sem falar na história bizarra contada por Kezich (16), sobre colocar gatos para caçar os ratos no prédio do Palácio da Justiça. Mas os ratos atacavam os gatos e foi preciso trazer leopardos. Essa última história, em particular, fascinou Fellini, mas o cineasta afirmou que o aspecto mágico de Roma não está presente no filme. Ao contrário dos trabalhos anteriores, desta vez Fellini não sente como se tivesse exaurido o tema proposto no argumento inicial: “em suma, Roma continuou imaculada, completamente estranha ao meu filme sobre ela. Tenho vontade de fazer outro filme, outras histórias sobre Roma” (17).



Leia também:

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Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
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Alain Resnais em Marienbad
Hollywood e as Guerras Patrióticas
Mussolini e a Sombra de Auschwitz
Ettore Scola e o Milagre em Roma
Jean-Luc Godard e a Colagem
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme 

Notas:

1. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008. P. 240.
2. Idem, pp.237-40.
3. Ibidem, p. 237.
4. Ibidem, p. 240.
5. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995. Pp. 176-8.
6. Idem, p. 177.
7. MÉJEAN, Jean-Max. Fellini, un Rêve, une Vie. Paris: Éditions du Cerf, 1997. Pp. 15-7.
8. KEZICH, Tullio. Federico Fellini. His Life and Work. New York/London: I.B. Taurus, 2006. P. 307.
9. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. Pp. 9, 165n4.
10. KEZICH, T. Op. Cit., p. 306.
11. Idem, pp. 303-8.
12. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., 2008. P. 240.
13. KEZICH, T. Op. Cit., p. 306.
14. FELLINI, Federico. Fazer Um Filme. Tradução Mônica Braga. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. Pp. 191-2.
15. BONDANELLA, P. Op. Cit., 2002. Pp. 29-30.
16. KEZICH, T. Op. Cit., p. 304.
17. FELLINI, F. Op. Cit., 192-4.

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