11 de nov. de 2009

Roberto Rossellini, Cidadão Italiano




(...) Ele parecia
ser ao mesmo tempo
um gênio inspirado
e um ingênuo
(...)”

Opinião de David Forgacs
a respeito de Rossellini (1)




Nenhum cineasta é uma unanimidade o tempo todo. Isto é particularmente verdade no caso de Roberto Rossellini, cuja obra sempre foi, na opinião de David Forgacs, mais reverenciada pelos cineastas do que pelos críticos de cinema. Digo, a obra completa. Os últimos 15 anos de sua carreira, ocupados com produções documentais históricas para a televisão italiana são geralmente vistas com desinteresse pela crítica – quando pelo menos conhecem esse trabalho. Obsedados pelas imagens de Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta, 1945) e Paisà (1946), alguns críticos parecem esquecer o elemento documentário que está por trás delas. (imagem acima, De Gasperi chamando para um governo de união nacional, onde os Partidos deveriam por de lado suas diferenças em nome da reconstrução física e institucional da Itália depois de Mussolini)

Em Anno Unno, o Nascimento da Democracia Italiana (Anno Unno, 1974), por exemplo, Rossellini reconstitui a vida do político Democrata-Cristão Alcide De Gasperi. Rossellini sempre esteve preocupado com o destino da Itália no novo contexto europeu do pós-guerra. De Gasperi, em sua opinião, foi de grande valia para a unidade do Partido e do país. Alan Milen ressalta a preocupação do cineasta com a unidade potencial da experiência humana e a busca por uma força harmônica nos assuntos humanos. Preocupação que seria aparente tanto em seu filme sobre São Francisco de Assis (2) e Anno Uno, realizados numa distância de quase 25 anos um do outro.

Quando, na cena final, São Francisco diz aos monges que o rodeiam que preguem a paz pelo mundo, trata-se de um sentimento devoto ou uma opinião de compromisso político e social? Rossellini questionava a Europa do pós-guerra. Fazia parte de um grupo de democrata-cristãos visionários que pensava numa Europa unida e fortalecida para fazer frente aos Estados Unidos de igual para igual. Alcide De Gasperi, Primeiro Ministro italiano entre 1945 e 1953, foi o elemento chave deste grupo.

De acordo com Geoffrey Nowell-Smith, Rossellini nunca foi alinhado com a Direita. Ele nunca foi um nacionalista de direita, nem em Viva l’Italia (1960), seu épico para o centenário da unificação da Itália, ou nem mesmo em seus filmes de guerra realizados sob o patrocínio de Mussolini. A partir de Paisà até O Medo (La Paura, 1954), a atenção de Rossellini estava voltada para a Europa do Plano Marshall (3). Essa preocupação, assim como sua “espiritualidade”, marcou instantaneamente um distanciamento de seu trabalho em relação ao cerne do movimento neo-realista. Este fora balizado por horizontes políticos da Esquerda neutra Comunista, cuja política cultural tomou a forma de uma aspiração para ser “nacional-popular” (nos termos de Gramsci), casada com certa timidez em relação aos modelos artísticos e políticos estrangeiros, particularmente o norte-americano (4).

O ponto de vista de Rossellini era o de De Gasperi, salvo por uma dimensão cultural e pessoal do cineasta. Um senso de comunicação e compreensão que deveria ser construído para que os componentes desse “novo mundo ocidental” (do pós-guerra) pudessem conviver com respeito mútuo. Rossellini sabia que algo deveria ser feito para evitar o pior, as conseqüências do crescente antagonismo entre os blocos Comunista e Capitalista, no contexto da Guerra Fria (levando também em consideração o alinhamento automático da Itália ao último em função de sua adesão à OTAN) (5), poderiam arrastar a Europa novamente ao caos.

Em 1974, justificando sua escolha por retratar a vida de um político italiano, Rossellini afirmou que a Itália vivia num marasmo. Conseqüência de uma confusão que se espalhava por todo o mundo desenvolvido. Conflitos de extrema intensidade estavam na ordem do dia. Psicólogos, sociólogos e historiadores poderiam, acreditava o cineasta, explicar esses fenômenos. Rossellini se perguntava quais são os remédios para essa confusão e seu cortejo de ansiedade? Lamenta que “uma mão de ferro” seja a solução que muitos acabam por desejar e apoiar. (imagem abaixo, nas primeiras eleições do pós-guerra, uma propaganda do Partido Democrata-Cristão fazia piada com o símbolo da Frente Popular, coalisão entre o Partido Socialista italiano e o Partido Comunista: invertida, a cabeça de Garibaldi, herói da unificação do país no século 19, se transformava na cabeça de Stalin, líder comunista da então União Soviética)

“Creia, realizei
Anno Uno
sem me
vender
, sem aceitar compromisso, sem
servir a ninguém
.
O tempo dirá se
me enganei”


Roberto Rossellini (6)


Notas:

1. FORGACS, David. Introduction: Rossellini and the Critics In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (orgs.). Roberto Rossellini, Magician of the Real. London: British Film Institute, 2000. P. 1. O grifo é meu.
2. Inédito no Brasil, Francesco giullare di Dio ainda não possui um título em português.
3. O Programa de Recuperação Européia estabeleceu as bases para o investimento norte-americano nos planos de reconstrução da Europa. Mais especificamente, da reconstrução dos países que haviam se colocado como aliados dos Estados Unidos durante a guerra – com a exceção da própria Alemanha, que receberia investimentos apenas em sua parte ocidental, incluído Berlim ocidental. Todos os demais países da Europa que haviam sido arrasados pela guerra, como Polônia, Hungria e a própria Alemanha (em sua parte oriental), são deixadas à esfera de influência Comunista.
4. NOWELL-SMITH, Geoffrey. North and South, East and West: Rossellini and Politics. In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (orgs.). Roberto Rossellini, Magician of the Real. London: British Film Institute, 2000. P. 15.
5. Organização do Tratado do Atlântico Norte. Aliança militar entre os países da Europa ocidental e os Estado Unidos, criada em 1949. Sua função estratégica durante a Guerra fria foi criar um cordão defensivo contra os países do bloco comunista, que criaram, em contrapartida, o Pacto de Varsóvia, em 1955. Além da ameaça soviética, um dos pontos chave era o comércio de armamentos que girava em torno da OTAN, abastecido principalmente para indústria norte-americana.
6. Rossellini e Anno Uno, resposta de Rossellini a Callisto Cosulich no jornal Paese Sera, 27/11/1974 In APRÀ, Adriano (org.). La Télévision Comme Utopie. Roberto Rossellini. Paris: Cahiers du Cinéma, 2001. Pp. 184-5.