4 de nov. de 2009

Breve Incursão na Guerra dos Sexos


“O que me toca
[em Fellini] é seu
olhar infantil
, é um
homem completamente
imaturo
. Sobretudo
quando filma as
mulheres”


Claude Lelouch, cineasta francês (1)



Fellini e suas Fêmeas

Na filmografia de Federico Fellini, muitos são os exemplos dos descaminhos no contato afetivo heterossexual. Quem não se lembra de Gradisca, em Amarcord (1973), ela não resistia a uma farda fascista, deixando os “homens comuns” e adolescentes da cidade sem nenhuma esperança. Havia também as prostitutas, é claro, que atravessaram a praça numa charrete para mostrar a mercadoria. Aliás, o próprio Mussolini investia nesse fetiche feminino. Era comum que durante seus discursos públicos homens aproveitassem para conquistar mulheres, já que elas ficavam excitadas com a presença do ditador. Não podemos esquecer Volpina, a ninfomaníaca, que é mostrada quase como um animal devasso que fica vagando pelas ruas da cidade. (na imagem acima, Gelsomina em A Estrada da Vida; abaixo, Anita Ekberg e Marcello Mastroianni, em A Doce Vida)


Em Cidade das Mulheres (La Città Delle Donne, 1980), Fellini foi direto ao ponto. Um Marcello Mastroianni hesitante bem no meio de uma convenção feminista. Com palavras de ordem, algumas queriam se libertar das palavras de ordem do machismo masculino. Entretanto, uma mulher apresenta seus vários maridos dóceis. Uma adaptação do machismo ao contrário, sugerindo que talvez nada mude se as mulheres se libertarem. No final, Mastroianni vai a julgamento. Muito antes disso, em A Estrada da Vida (La Strada, 1954), Fellini nos apresenta Gelsomina. Uma espécie de Chaplin de saias, ela sofre nas mãos de um homem grosseiro, para quem foi vendida por sua mãe.



Em Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957), Fellini nos leva para conhecer a vida dessa prostituta. Uma espécie de “prostituta do bem”, ela sempre confia nos homens que ama, os quais invariavelmente roubam seu dinheiro e tentam matá-la. Mas o arquétipo da mulher felliniana é Anita Ekberg. Em A Doce Vida (La Doce Vita, 1960), sua beleza física e seios fartos são superados apenas por sua inconstância. Nunca chegamos a perceber muito bem o que ela está pensando enquanto oscila entre um marido bêbado e um Marcello Mastroianni abobado rastejando por ela.

Alguns Outros Objetos

Além de Fellini, outros cineastas italianos também se debruçaram sobre o tema dos relacionamentos afetivos, suas utopias e realidades. A cinematografia italiana, do imediato pós-guerra até a década de 80 do século passado, nos dá muitos exemplos antológicos de como os relacionamentos afetivos nascem-crescem-desabrocham e explodem-murcham-morrem. As incursões de Luchino Visconti ao tema do relacionamento/descobrimento homem-mulher são igualmente contundentes e esclarecedoras. (imagem ao lado, Noites Brancas; abaixo, O Trabalho)

Em Noites Brancas (Le Notti Bianche, 1957), adaptação do texto de Dostoyevski o personagem de Marcello Mastroianni não consegue (ou não quer) compreender porque a mulher de quem se enamorou não se cansa de esperar por um homem que parece que nunca voltará. O personagem de Mastroianni, já cansado do que considerava inconstâncias daquela mulher (mas sem nenhuma capacidade de simplesmente se desligar daquele impasse com ela), disparou no meio da rua: “quando não são vadias, são loucas, completamente loucas!”. Uma mulher que espera alguém por um ano inteiro, resistindo a todas as tentações, na crença inabalável da volta de seu amado – crença que uma pessoa comum consideraria no mínimo uma obsessão. Burrice? Bem, no final, o tal homem volta mesmo. Ficção?


Em O Trabalho (Il Lavoro, episódio de Boccaccio 70, 1962), Visconti nos mostra uma esposa se vingando do marido infiel: ela perdeu o acesso à fortuna da família em função do escândalo do marido com prostitutas, e agora terá que trabalhar. Como? Vai cobrar do marido na hora do sexo. Ao telefone com o advogado, ela diz: “Não creia que, casando, eu me iludiria de que pudesse demolir as barreiras da incomunicabilidade. Sabia que iria ficar terrivelmente só.”(...)”Uma certa atração física não basta para justificar o matrimônio. Vem e vai embora ”.



Em Rocco e Seus Irmãos (Rocco e i Suoi Fratelli, 1960), onde Visconti nos mostra a saga de uma família italiana imigrando do sul pobre da Itália para o norte desenvolvido em busca de emprego, tem um monte de homens e uma prostituta (imagem ao lado). Como Cabíria, Nádia tenta acreditar no amor. Entretanto, talvez porque Nádia é um personagem mais próximo da realidade (ela tenta manipular um dos irmãos), ela morre no final. Neste filme, como em Amarcord, existe também uma mãe italiana. Entre a mãe melodramática e a prostituta espertalhona, as mulheres sempre saem perdendo. A primeira vê a família se despedaçar. A segunda, objeto sexual que só conheceu o lado podre dos homens, sai da lama, com tanto que morra no final.


Citando as barreiras da incomunicabilidade, Visconti certamente faz referência a Michelangelo Antonioni, especificamente aos filmes que compõem aquela que passou a ser conhecida como a Trilogia da Incomunicabilidade: A Aventura (L’avventura, 1960), A Noite (La Notte, 1961), O Eclipse (L’eclisse, 1962).


Embora o próprio cineasta tenha afirmado que nunca pensou nem em trilogia e muito menos no termo “incomunicabilidade”, Antonioni reflete sobre o que considera uma característica do homem e da mulher modernos: a incapacidade de amar. Cada uma com seu estilo, as três mulheres protagonistas são confusas e hesitantes – assim como os homens, mesmo quando parecem saber o que querem. Um retrato da burguesia italiana na década de 60 do século passado, a qual pertencia o próprio Antonioni. (imagem ao lado, O Eclipse)



Conhecido como o “poeta da melancolia”, Valério Zurlini é mais um dos cineastas italianos que mergulha fundo no tema da tentativa, quase sempre frustrante, de lidar com as descobertas que fazemos sobre quem são os parceiros e parceiras que escolhemos. Sem esquecer que, na maioria das vezes, nossa frustração está em descobrir que só enxergamos aquilo que projetamos de nós mesmos nos outros. Em Verão Violento (Estate Violenta, 1959) (imagem ao lado), Um jovem se enamora de uma mulher mais velha num clássico choque de gerações.


Em A Moça com a Valise (La Ragazza con La Valigia, 1961), temos novamente o choque entre o amor de um jovem ainda mais jovem e uma mulher mais velha, embora aparentemente mais nova do que a mulher do filme anterior. Claudia Cardinale, a moça, havia sido abandonada por um de seus conquistadores. Ao procurá-lo, ela encontra o irmão mais novo dele, que cai de amores por ela. Se no primeiro tempo foi ela a usada, no segundo ela não se faz de rogada em usar o indefeso garoto. No final, entretanto, ela se rende ao sentimento dele e o trata como um ser humano. (imagem abaixo, Volpina "caçando" em Amarcord)

Em Mulheres no Front (Le Soldatesse, 1965), Zurlini acompanha um grupo de prostitutas que é levado para “servir” as tropas de Mussolini no campo de batalha. Patética lembrança de um tempo em que o próprio “Estado” italiano administrava os bordéis (como a desculpa de fazer controle de doenças). Em A Primeira Noite de Tranqüilidade (La Prima Notte di Quiete, 1972), esse choque agora se estabelece entre um homem mais velho e uma jovem. Ele um homem desiludido, ela uma bela jovem, que ele pensa que é uma santa, depois descobre que é uma prostituta.


Em A Rifa (La Riffa, episódio de Boccaccio 70, 1962), é a vez de Sophia Loren emprestar seus grandes seios à tela gigante do cinema. Para salvar suas finanças, ela se vende numa rifa, ganha pelo sacristão virgem da cidade. Ao mesmo tempo, ela se enamora de um tipo meio galã. No final, ela não transa com o sacristão, mas permite que ele minta para a cidade. Os homens, que não suportaram ter perdido a chance de possuir aquele corpo, homenageiam o sacristão com uma carreata.



Em Matrimônio à Italiana (Matrimonio all’italiana, 1964), De Sica mostra o que alguns desdenhosamente chamariam de estereótipo da “prostituta honesta” – como Cabíria, ao contrário de Nádia. Tal preconceito talvez mascare uma postura machista visando à diminuição da importância do personagem masculino do filme. Marcello Mastroianni faz o papel de um homem que por décadas usa o corpo dessa mulher, mora com ela, mas não assume publicamente sua relação. Vive uma vida dupla. E quando descobre que esta mesma mulher pode ter tido um filho seu, quer levá-lo embora. Estereotipada ou não a personagem feminina, o papel de Mastroianni não parece muito distante da realidade do “homem latino”.

Leia também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
A Guerra dos Seios no Cinema Italiano
As Deusas de François Truffaut

Nota:

1. TASSONE, Aldo. Que Reste-t-il de la Nouvelle Vague? Paris: Éditions Stock, 2003. P. 179.