11 de dez. de 2009

O Exótico e o Cinema Italiano


Durante muito tempo, a Europa olhou para os outros continentes com o desprezo dos olhos do conquistador. Aliada a essa visão preconceituosa, havia também a tendência a ver os “outros” enquanto culturas exóticas ligadas ao passado da civilização humana – leia-se, ao passado da “humanidade européia”. O cinema italiano não ficou imune a esta tendência. Os povos de outros continentes, especialmente África e Ásia, surgiam na tela da década de 60 do século passado como curiosidades mostradas em shows de boate (na mesma década de 60 que fez os europeus engolirem os movimentos de independência de suas ex-colônias).


A Doce Vida (La Doce Vita, 1960), dirigido por Federico Fellini, já na segunda cena nos apresenta uma apresentação de dançarinos exóticos – talvez do sudeste asiático. Não estavam num teatro ou palco, mas numa boate. Um número de entretenimento, para uma dança que talvez seja até um ritual sagrado – quem quer saber? Importa apenas o colorido brilhante das vestimentas (provavelmente vistas como fantasias) e o caráter insólito daqueles trejeitos (daquela dança) acompanhados de sons e vocalizações “estranhas” (última imagem da parte seguinte, O Eclipse Africano...). Esta descontextualização de uma dança que talvez até seja um ritual sagrado, que transforma o diferente num ritual bizarro para entreter bêbados, dá bem a dimensão da relação do mundo ocidental com as outras culturas. (imagem acima, cena de Meus Caros Amigos, onde um deles aparece nu diante de sua amante e pede que ela leia o jornal que ele posicionou diante da genitália - vemos uma manchete que fala da visita do Papa Paulo VI à Uganda, na África; em função da genitália, uma conotação ambígua para ambos; Amici Miei, 1982, direção Mario Monicelli)

O Eclipse Africano: Quando o Outro é Menos

O cineasta Michelangelo Antonioni nos apresenta alguns exemplos dessa dificuldade do europeu em lidar com culturas diferentes da sua. Em A Noite (La Notte, 1961), o casal confuso Lídia e Giovanni está a caminho de mais um lançamento de livro dele quando resolvem dar uma parada na boate. Enquanto se desentendem temos um espetáculo de exotismo africano, acompanhamos os malabarismos de uma mulher negra de biquíni equilibrando uma taça (com champagne?) (imagem ao lado). Enquanto a mulher equilibra um copo cheio e se contorce, um homem, negro e cheio de músculos, parece uma estátua que se move.


Como parecem indicar os exemplos de Fellini e Antonioni, era comum naquela época encontrar “números circenses” protagonizados por elementos de outras culturas em boates pela Europa. Em O Eclipse (L’eclisse, 1962), o próximo filme de Antonioni, o passado é sempre colocado como um elemento irrelevante pelos personagens. Suas próprias velhas igrejas aparecem de relance aqui e ali. Na seqüência em que Vittoria se junta com Anita para visitar Marta, uma amiga que vive na África, acompanhamos o discurso de uma típica européia colonialista e racista. Marta “explica” que os negros africanos acabaram de “descer das árvores” e já querem comandar um país. Enquanto explica porque os europeus têm mais direito à terra africana do que os africanos, Marta folheia um livro de fotografias da natureza do país africano que ela acha que é dela.

África clichê,
fruto do passado
colonial europeu, e do
italiano em particular
,
esconde a referência
coberta de medo à
África atual

Reduzido à geografia, vemos o tal país africano ser reduzido ao clichê de uma espécie de jardim do éden, onde seus habitantes originais aparecem (quando aprecem) apenas como parte da paisagem e não são mais do que exóticos negros vestidos com roupas simples mais muito coloridas. Enquanto isso, a loura Vittoria, vestida num lençol (ou, se preferir, vestida como uma guerreira africana) e pintada de preto, começa a dançar brandindo uma lança. Antes disso, ela examinava com os dedos uma grotesca mesa sustentada com o pé de um elefante (ou, se preferir, um ex-elefante) no meio da sala. (imagens acima e ao lado)


Antonioni se estende bastante nesta seqüência, filmando as fotografias da África no livro de Marta, que o folheia como se mostrasse seu próprio jardim. Em sua África idealizada, Vittoria até acredita que os africanos são mais felizes do que os europeus – entenda-se do que a sociedade moderna-capitalista-burguesa. De acordo com ela, eles “estão bem” porque “não pensam na felicidade”, então as coisas “se arrumam”. Enquanto aqui (na Europa), afirma a loura referindo-se a seus próprios problemas afetivos, ao contrário, há um grande cansaço, também no amor (1).

Antonioni
parece indicar
o papel da imagem,
seja na introdução
do exótico, seja em
sua elaboração no
Ocidente (2)

Na década de 60, portanto contemporaneamente a O Eclipse, a África vivia uma fase de descolonização. Os países africanos, entretanto, se formavam em grande parte seguindo as fronteiras anteriormente demarcadas pelo colonizador europeu. Marta é parte deste contingente europeu que vivia lá, mas encarava os africanos como um problema. Nem os animais lhe interessavam, referia-se a eles apenas como caça (o elefante cujo pé virou uma mesa) ou praga (os hipopótamos mortos por comerem o pasto de seus bois). Ela parece não perceber que o problema eram os europeus. O comentário racista de Marta dá bem a dimensão do problema.

Antonioni voltará a mostrar a África em Profissão Repórter (Professione: Reporter, 1975), mas por outro ângulo – veremos o lado problemático das novas repúblicas que se formavam e a turbulenta relação com as questões de direitos humanos. Quanto a este assunto, Valério Zurlini também nos legou um exemplo deveras esclarecedor em relação à promíscua relação entre o ex-colonizador europeu e as ditaduras africanas. Em Sentado à Sua Direita (Sedutto Alla sua Destra, 1965), conta a história de Patrice Lumumba (1925-1961), político africano que lutou contra os colonizadores belgas, que insistiam em manter o Congo sob suas garras. Lumumba foi assassinado, não sem a ajuda de africanos ligados aos belgas. Embora estes dois filmes não estejam preocupados em mostrar a África como um jardim zoológico exótico gigante, o exótico aqui está nas entrelinhas.

Muitos vão dizer que a incompetência política e os banhos de sangue na África são fruto de uma incapacidade mental dos africanos em operar com instituições políticas importadas da Europa. Conta-se que na África do Sul, quando ainda estava sob os grilhões do regime racista do apartheid, os presos (negros) eram obrigados a usar bermudas. Consta que o objetivo era convencê-los de que eram crianças – o que Nelson Mandela diria dessa moda do bermudão no Brasil atual?! (ao lado, cena de A Doce Vida mostrando uma dança "asiática" como atração de boate)

Entre a Nostalgia e a Realidade 

Per Paolo Pasolini sempre chamou atenção para o caráter mais autêntico das culturas que não estavam ainda “contaminadas” pelo modo de vida e os interesses materialistas burgueses – Pasolini falava de um genocídio cultural. Além disso, ele procurou resgatar o que havia de autêntico na cultura ocidental voltando à Grécia Antiga em Édipo Rei (Edipo Re, 1967) (imagem abaixo) e Medéia (Medea, 1969). Ele queria filmar nos países do Terceiro Mundo porque acreditava encontrar rostos antigos, natureza quase intacta e os sinais do sentimento de religiosidade que estava sumindo no Primeiro Mundo.

Édipo Rei (filmado em grande parte nas paisagens do Marrocos) embora remetesse à Grécia, Pasolini pretendia se afastar dela e se perder no tempo. Pensou até em ambientá-lo entre os Astecas, mas a produção se tornaria muito cara. Medéia (filmado em grande parte na Turquia e na Síria), por outro lado, os mundos arcaico e moderno são excludentes – o filme representaria uma crítica ao mito africano ou terceiro-mundista como resistência ao mundo contemporâneo. (imagem acima, cena As Mil e Uma Noites, filme mais erótico da Trilogia da Vida, deix a evidente a ligação que Pasolini fazia entre corpo, sexualidade não reprimida e Terceiro Mundo)

Em Notas Para Uma Oréstia Africana (Appunti Per un’ Orestiade Africana, 1970) (filmado em grande parte em Uganda, Tanzânia e outras partes da África), Pasolini aposta na chance da formação de uma África futura, que seria capaz de fazer sobreviver a África arcaica, resultando daí nações livres e independentes (3). Nos filmes da famosa Trilogia da Vida Pasolini pretendia opor ao presente consumista (a irrealidade da civilização consumista) um passado recente em que o corpo e as relações humanas eram ainda “reais” – nas palavras de Pasolini: “arcaicas, pré-históricas, rústicas, mas reais”.

As locações se espalhavam por quase toda África e Ásia. O Decameron (Il Decameron, 1971) foi filmado na Itália, França e Yemen do Norte. Os Contos de Canterbury (I Racconti di Canterbury, 1972) filmado na Inglaterra e na Itália. As Mil e Uma Noites (Il Fiore Delle Mille e Una Notte, 1974), filmado no Irã, Nepal, Etiópia, Índia, nos antigos Yemen do Norte e do Sul. Pasolini rebatia as críticas e insistia que não era nostálgico (4). (ao lado, cena de La Luna, direção Bernardo Bertolucci, 1979; Roma incorpora o exótico, estamos na Porta Ostiense, ao lado da pirâmide de Gaios Cestius, sua tumba, séculos 12 a 18 A.C.)


Notas:

Leia Também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
Religião e Cinema na Itália

1. Ver Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (I). A cena acontece aos 37:02.
2. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 168n16.
3. AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac & Naify. 2002. P. 76.
4. Idem, p. 72.