13 de fev. de 2010

A Saga dos Dialetos Italianos no Cinema (II)



“A língua, na
visão de Gramsci,
torna-se   unitária
se  existe  uma necessidade


Michele Rago (1)

 

A Terra Treme: Verdade e Poesia

Apesar do esforço truculento de Mussolini, em 1965 os dialetos não haviam desaparecido. Após cem anos de unificação do país, em torno de quatro milhões de italianos não falavam o idioma “unitário” (2). Rocco e Seus Irmãos (Rocco e Suoi Fratelli, 1960), e muito antes dele A Terra Treme (La Terra Trema – Episodio del Mare, 1948), ambos dirigidos por Luchino Visconti, podem atestar esta situação.

“A experiência mais extrema no emprego do dialeto no cinema do após-guerra foi levada a cabo por Visconti em La Terra Trema (1948). Na abertura do filme, um letreiro avisa: ‘Eles não conhecem outra língua senão o siciliano para expressar rebeliões, dores, esperanças. A língua italiana não é na Sicília a língua dos pobres’. O dialeto dos habitantes de Acitrezza resultou, porém, tão incompreensível como uma língua estrangeira e no circuito comercial La Terra Trema acabou circulando numa cópia reduzida e dublada em italiano” (3)

Quando Rossellini imprimiu com força a marca dos dialetos italianos nas telas com Paisà (1946), talvez não imaginasse que a expressividade deles poderia conduzir a conseqüências bastante graves no terreno prático. A Terra Treme é o ponto de ruptura, pois o dialeto daquela parte da Sicília fechava-se sobre si mesmo. Ao mesmo tempo em que o filme denunciava a impossibilidade de uma língua nacional, a comunicação com o público se tornou impossível (4). (na imagem acima, em close, uma sereia pintada no barco; um pouco mais a frente, uma pequena mancha preta representa olhos vigilantes. Marcas da mitologia antiga no presente)

Em 1947, Visconti pretendia documentar a vida dos pescadores sicilianos para seu segundo longa-metragem. Entretanto, um detalhe ficou de fora dos créditos do filme. A fonte original de tudo foi I Malavoglia (1881), escrito por Giovanni Verga (1840-1922). Visconti queria redefinir o cinema italiano do pós-guerra segundo uma estética realista baseada em fontes regionalistas das tradições literárias e pictóricas.

O realismo literário italiano deve muito ao Verismo de Verga. Visconti e seus colegas neo-realistas perceberam o confronto de Verga com uma realidade contemporânea regionalista de ambientes até então negligenciados. O Verismo, neste sentido, tornou-se um paradigma para aquilo que poderia ser compreendido como uma resposta à visão de mundo fascista (5).

Acitrezza, a aldeia de pescadores de A Terra Treme, já estava em I Malavoglia. Siciliano, Verga acumulou listas de expressões dialetais e estudos do folclore, abandonando os textos românticos para escrever sobre gente que vive distante das metrópoles. Nostálgico? Ansiedade moderna que impulsiona a imaginação dos regionalistas? Verga não repetia simplesmente o dialeto, criava sobre ele com elementos da fala cotidiana e da convenção poética. Visconti adotou esse procedimento também (6). (imagem ao lado, em A Terra Treme, não apenas o cenário era real; sem excessão, todos eram atores não-profissionais)


A utilização do dialeto feita por Visconti foi apenas parte da proposta de autêntica reportagem documental. Os diálogos se baseavam em respostas improvisadas no dialeto de Acitrezza (ou Aci Trezza). Uma vez satisfeito com a seleção de expressões, Visconti as inseria no roteiro. Ele era fascinado pelo arcaísmo da musicalidade do dialeto. A impossibilidade de compreensão, Noa Steimatsky sugere, contribuiria para essa musicalidade que, transcendendo a comunicação verbal, as línguas podem adquirir (7).

De certa forma, Visconti assume as tendências do regionalismo italiano em relação à Sicília. A distância geográfica da ilha e sua história e mitologias complexas contribuem para a formação de um rico imaginário. Em Metamorfoses, Ovídio (43 a.C.-17 d.C) descreveu o vulcão Etna, que comanda a costa oriental da ilha, enquanto o Ciclope, ao tentar destruir Acis, transforma-o num riacho. Vários nomes de lugares nessa vizinhança – Aci Trezza, Aci Castello, Aci Reale – remetem ao ser mítico metamorfoseado.

O encontro de Ulisses com o Ciclope é uma página famosa da mitologia grega. As pedras em frente à costa da Sicília, as Scogli dei Ciclopi, chamadas de Faraglioni, foram atiradas pelo gigante em Ulisses (8). Em Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso, direção Giuseppe Tornatore, 1988), podemos ver esta cena numa seção de cinema ao ar livre. Momentos antes, Totó, o projecionista, atira uma pequena pedra no mesmo mar. Ao lado, algumas pessoas assistem ao filme em seus barcos – descendentes dos pescadores de Aci Trezza e dos argonautas de Ulisses assistindo seu passado glorioso.


Referindo-se à pintura e a fotografia da época, o próprio Verga, um escritor, defendeu a substituição da conceituação verbal por um “intelecto visual”. Suas palavras em 1879 caíram como uma luva na busca de Visconti por uma “realidade plástica e visual” na adaptação cinematográfica verista: “Você não acha que, para nós, o aspecto de certas coisas não pode ser tratado a menos que seja visto a partir de um ângulo visual específico? E que nós nunca conseguimos ser genuínos a menos que façamos um trabalho de reconstrução intelectual, não com nossa mente, mas com nossos olhos?” (9) (imagem abaixo, a vista de Aci Trezza)

Verga chegou a tirar fotografias (arte ainda nascente na época), embora nenhuma imagem de Aci trezza tenha chegado a nós. O interesse do Neo-Realismo por Verga tem, em primeiro lugar, mais a ver com isso do que com seu modelo realista. O importante foi a confrontação que Verga ensejou entre métodos científicos e sociais modernos e os materiais regionalistas. Meio século depois do escritor, o Neo-Realismo encampou essa experiência, com todos os seus erros e acertos.

O crítico literário Romano Luperini listou uma série de frutíferas contradições que animam a linguagem dos críticos do Neo-Realismo em relação a I Malavoglia: especificidade regionalista ligada a classicismo homérico, fidelidade às condições do lugar trespassada por conotações da paisagem siciliana da ordem do fantástico. (as duas imagens acima, o entreposto de pesca e, abaixo, o único comprador da aldeia, explorador dos pescadores. Aqui, comemora ter conseguido destruir o ímpeto libertário de Ntoni. Na parede, parte de um dos muitos slogans de Mussolini: "Decisamente verso il popolo" [decididamente em direção ao povo])

Verdade e Poesia, título do influente artigo de Mario Alicata e Giuseppe De Santis publicado em 1941, é um sumário inicial do Neo-Realismo onde se define o cinema como princípio documentarista e forma narrativa. Verga é tido como um modelo ideal para um cinema propriamente italiano, realista e não provinciano. Entretanto, a glorificação do trabalhador pobre em seu dia-a-dia esbarrou em algumas contradições já presentes no Verismo – desestabilizando a ambição de reconciliar as agendas política e social (10).

No mesmo Cinema Paradiso que mostrou Ulisses, Tornatore mostra uma seção de A Terra Treme. Comentário a respeito da incapacidade do cinema neo-realista em abrir as mentes dos excluídos, o apelo vão de Ntoni Valastro, o pescador de A Terra Treme que não consegue se libertar dos especuladores dos preços do pescado é totalmente ignorado pelo público. Ao mesmo tempo em que o final feliz de Em Nome da Lei, onde o mafioso é vencido pelo herói, é saudado com aplausos.

Notas:

Artigo publicado originalmente na revista eletrônica dEnsEnrEdoS, nº 5, 2010

Leia também:

A Saga dos Dialetos Italianos no Cinema (I)

1. RAGO, Michele. Língua e Sociedade In Diálogo Com Pasolini. Escritos 1957-1984. Tradução Nordana Benetazzo. São Paulo: Nova Stella/Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1986. O artigo de Rago apareceu inicialmente em Il Contemporaneo, e está datado de 1965. P. 44.
2. Idem, p. 37.
3. FABRIS, Mariarosaria. O Neo-Realismo Cinematográfico Italiano. São Paulo: Edusp, 1996. P. 99n33. A ênfase é minha.
4. SPINAZZOLA, Vittorio. Língua e Cinema In Diálogo Com Pasolini. Escritos 1957-1984. Tradução Nordana Benetazzo. São Paulo: Nova Stella/Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1986. O artigo de Spinazzola apareceu inicialmente em Il Contemporaneo, e está datado de 1965. P. 66.
5. STEIMATSKY, Noa. Italian Locations. Reinhabiting the Past in Postwar Cinema. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008. Pp. 79-81.
6. Idem, pp. 88-9.
7. Ibidem, p. 106.
8. Ibidem, pp.103-4.
9. Ibidem, pp. 91 e 101-2.
10. Ibidem, p. 83.