21 de fev. de 2010

A Saga dos Dialetos Italianos no Cinema (final)




Pasolini
descobri
u que o
cinema não é uma
técnica literá
ria, mas
uma linguagem
em si mesma




Entre o Friulano e o Fim do Mundo


Embora o comprometimento em relação aos dialetos tenha sido tão forte em Pier Paolo Pasolini quanto foi no Neo-Realismo, outras questões nutriam o poeta-cineasta. Sua obra cinematográfica buscou a realidade por outros caminhos – inclusive em seus primeiros filmes, Accattone (1961) (o grupo de Accattone se expressava numa forma de romanesco) (1) e Mamma Roma (1962), equivocadamente tomados como pertencentes a uma fase neo-realista de Pasolini.

Apesar do esforço de Mussolini, que mandava para a cadeia que não falasse no idioma oficial (o italiano médio), Pasolini publicou um livro de poesias em 1942, Poesie a Casarsa, escrevendo no dialeto do Friuli. O poeta conheceu o friulano no contato com os lavradores, mas não falava regularmente. Embora nunca tenha sido falado em sua casa, Pasolini considerava o friulano de Casarsa della Delizia seu dialeto mãe. Era o idioma da família de sua mãe e das pessoas humildes entre as quais sua família viveu. (imagem acima, Pasolini na época do lançamento de Accattone; ao lado, Accattone na delegacia de polícia; abaixo, Mamma Roma)

Depois da guerra, escreve tese sobre o poeta Giovanni Pascoli (escritor que também publicou em seu dialeto local) (2). Durante a guerra, seu livro de poesias faz sucesso, entretanto não se pode comentar nos jornais, já que o fascismo não admitia regionalismos. Pasolini dedicou o livro ao pai - uma provocação, já que além de uma relação tempestuosa, seu pai era um oficial fascista, considerando o friulano um “falar inferior” (3). De acordo com Giacomo Manzoli, Pascoli estaria por trás até mesmo da tese de Pasolini sobre um Cinema de Poesia (4).

De acordo com Philippe di Meo, a opção pelo dialeto materno possuía também um ingrediente edipiano. O friulano do filho confundia-se com o da mãe (5). É curioso pensar este dado em função da relação entre dialetos e regionalismos literários e o sentimento de afirmar uma “pátria mãe” - que muitas vezes, como na proposta nacionalista de Mussolini, encarava particularismos locais como entrave à unidade.

A polêmica em torno do acordo ortográfico entre Brasil e Portugal mereceria um maior esclarecimento quanto ao âmbito de aplicação das mudanças e adaptações. Sempre lembrando que a relação entre as línguas também é uma relação de poder, poderíamos nos perguntar qual idioma falamos no Brasil, o “português” ou o “brasileiro”? Uma das críticas de Pasolini ao italiano médio (uma síntese das dimensões literária e instrumental do idioma) (6) é seu caráter de diálogo entre compradores e vendedores (portanto, direcionado a um interesse mercantil), empobrecendo o potencial poético dos dialetos ao invés de incorporá-los.

Pasolini estava insatisfeito com os limites impostos à linguagem na Itália. O recurso ao dialeto em Pasolini seria como um regresso a outros graus do ser, necessário para quem vive numa civilização em crise lingüística. Nas palavras de Pasolini, “eu serei poeta das coisas”. Mesmo sua passagem da poesia para o cinema seria uma tentativa de passar do “signo palavra” para o “signo objeto”. No limite, Pasolini recusa o “falar a palavra” lacaniano, caminhando na direção das coisas: “não falar a palavra, mas a coisa” (7).

Após tentar penetrar nas coisas através do friulano, o poeta supôs que a passagem da literatura ao cinema fosse apenas uma mudança de técnica. Concluiu que o cinema não é técnica literária, mas uma linguagem em si mesma. A relação entre Pasolini e o falado, o oral e o verbal é o pressuposto de seu cinema. Pasolini insistiu em afirmar a oralidade como força de uma língua ágrafa, e que uma decisão sua a fez encontrar a grafia - assim como Pascoli escolhera palavras incompreensíveis do dialeto garfagnino (8).

Angelo Restivo comenta sobre a questão cultural expressa por Pasolini em Comícios de Amor (Comizi d’Amore, 1964). Trata-se de um documentário sobre a sexualidade do italiano que acaba conseguindo revelar a falta de consenso entre as pessoas. Quando Pasolini questionou alguns soldados (e o exército é tradicionalmente considerado o lugar onde se abandona os laços locais em nome de um projeto de identidade nacional) em Roma, chamava cada um por suas origens regionais.

Pasolini chamava, “tu, abbruzzesino”, “tu romano”, etc. A câmera buscava o corpo (a fisionomia), foco da identidade (imagem ao lado). Segundo Restivo, na Itália não houve transição entre a noção feudal do corpo (uma sociedade onde o sangue é o símbolo central) e a “democrática” (centrada na Lei, como se todos fossem iguais). Restivo conclui que a coexistência das duas em 1964 na Itália é fruto da incapacidade da nova língua enraizar-se nas tradições sulistas. Sendo a Itália uma “nação” de regiões isoladas com dialeto próprio, Restivo enfatiza o papel de uma rodovia (l’Autostrada del Sole) que ligou norte e sul (9).

Em Gaviões e Passarinhos (Uccellacci e Uccellini, 1966), Pasolini trabalhou com o napolitano Totó. O poeta-cineasta contou que desde o início da carreira Totó decidiu não ser um ator dialetal napolitano - não estritamente. Sua língua imitava o dialeto sulista em Roma. Mas “o Totó de Pasolini” era outro. Neste filme, falava um misto do dialeto napolitano e do romano, não havia palavras entre aspas ou jargões. Totó passou a falar a língua de alguém que emigrou do sul há 20 ou 30 anos e que havia perdido suas características lingüísticas originais (10). (imagem ao lado, Totó, na frente, contracena com Ninetto Davoli em Gaviões e Passarinhos, uma alegoria em que pai e filho partem numa caminhada pela estrada e se deixam acompanhar por um corvo falante que questiona o papel da esquerda)

Massimo Cacciari discorda de Philippe di Meo ao sugerir que Pasolini nutria uma espécie de fascínio pelo prélinguístico do dialeto, o que o poeta pôs no papel em friulano apontaria diretamente algo para além da matéria descrita. Ele se aninha no friulano como numa língua sacra, e não como uma língua materna. Para Manzoli, uma coisa não exclui a outra, Pasolini não distinguia entre uma língua mãe e outra sacra – o problema maior para o poeta é que as duas estavam caladas, nas pessoas e nas coisas (11).

Onde Nasce a Irmandade?

Seria suficiente, para um povo pensar-se como UM, que falasse o mesmo idioma ou língua? Onde nasce a irmandade? Embora todo este debate a respeito do idioma italiano seja invejável se considerarmos certos países mais preocupados em sucatear seu próprio sistema educacional, não basta renegar a burguesia italiana e sua vontade de moldar o mundo à própria imagem. De fato, as relações de poder se estendem também ao nível do vocabulário com o qual nomeamos o mundo. Pelo menos foi o que Roland Barthes nos disse em 1977 (12). Não é que não adiante questionar a forma dos discursos, seja das propagandas de produtos ou da propaganda de Estado.

Talvez o caráter mais ou menos regional de uma fala não faça de ninguém mais ou menos autêntico. Caso contrário, bastaria que imitássemos o falar dos poderosos. Isto vale para a relação entre o italiano médio e os dialetos, constituindo uma chave estimulante para repensar os regionalismos. A questão da identidade depende mais de repensarmos as estruturas de poder na linguagem do que decidir qual idioma falar ou com qual sotaque. Questionamento fora de moda para alguns, mas de uma incômoda atualidade nesses tempos de “globalização anglófona”.

“A língua,
como desempenho
de toda linguagem
,
não é nem reacionária
,
nem progressist
a; ela é simplesmente: fascista;
pois o fascismo não é
impedir de dizer
, é
obrigar a dizer”


Roland
Barthes (13)



Notas:


Artigo publicado originalmente na revista eletrônica dEnsEnrEdoS, nº 5, 2010

Leia também:

A Saga dos Dialetos Italianos no Cinema (I), (II)

Leia mais sobre: Accattone, Mamma Roma e Gaviões e Passarinhos


1. RHODES, John David. Stupendous, Miserable City. Pasolini’s City of Rome. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007.P. 40.
2. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 229n2, 232-3n14 e 16.
3. NAZÁRIO, Luiz. Pier Paolo Pasolini: Orfeu na Sociedade Industrial. São Paulo: Brasiliense, 1982. Pp. 9 e 12.
4. MANZOLI, Giacomo. Voce e Silenzio nel Cinema di Pier Paolo Pasolini. Bologna: Pendragon, 2001. Pp. 46-7.
5. NAZÁRIO, Luis. Todos os Corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007. P. 23.
6. PASOLINI, Pier Paolo. Novas Questões Lingüísticas In Diálogo Com Pasolini. Escritos 1957-1984. Tradução Nordana Benetazzo. São Paulo: Nova Stella/Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1986. P.18. Trata-se do texto de mesmo nome publicado em seu livro Empirismo Herético.
7. MANZOLI, Giacomo. Op. Cit., p. 34.
8. Idem, p. 41, 45, 47.
9. RESTIVO, Angelo. The Cinema of Economic Miracles. Visuality and Modernization in the Italian Art Film. Durham & London: Duke University Press, 2002. Pp. 80 e 83.
10. ZABAGLI, Franco; SITI, Walter. Pier Paolo Pasolini Per il Cinema. Milano: Mondadori, 2 vol., 2001. Vol. II, pp. 3011-2.
11. MANZOLI, Giacomo. Op. Cit., p. 56-7.
12. BARTHES, Roland. Aula. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 12ª ed., 1997. Pp. 10-12.
13. Idem, p. 14.