9 de jan. de 2011

Bertolucci e o Negócio da China (final)




“Eu sempre estudei
meus   filmes   numa
chave psicanalítica”

 

Bertolucci (1)







Freud Explica, Mas Nem Tanto

Embora Marcus admita que pudessem passar como descuidados aqueles que deixassem de lado o elemento psicanalítico, influência tão forte na obra de Bertolucci, o próprio cineasta só admite esse tipo de influência até certo ponto. É preciso considerar também as coordenadas históricas. Disse ele em 1984: “qualquer pessoa que tiver a paciência de examinar meus filmes com atenção descobrirá que existe, na verdade, uma recusa em escorregar para o manual de psicanálise”. O que permite a Bertolucci não cair no psicologismo fácil são justamente suas raízes na cultura política italiana. Como havia dito Moravia, para quem a italianidade de O Último Imperador está aí, e não no fato de Bertolucci ter nascido na Itália – “(...) Sem essa participação, não teria havido renúncia da história romanceada nem da parábola psicológica do protagonista”. Teria sido fácil explica Marcus, atribuir a passividade, covardia indecisão e ineficácia de Pu Yi ao seu passado difícil, fazendo do filme um estudo de caso psicológico afastado de suas coordenadas históricas. De fato, o filme oferece farto material para esse tipo de leitura, pelo mundo fechado como um útero que era a Cidade Proibida. Pelo domínio das figuras femininas (as viúvas do antigo imperador e os eunucos) e pelo sempre presente seio da ama de leite (até que ela fosse expulsa pelas viúvas). Ou, ainda, pela ausência de figuras autoridade masculina na infância de Pu Yi não permitiram que o imperador realizasse o rompimento edipiano de sua ligação narcisista com a mãe, o que o teria impedido de assumir uma identidade masculina adulta. Bertolucci se recusa a permitir que a psicologia esgote sua explicação para a condição de Pu Yi. Como resumiu T. Jefferson Kline:


“Nenhum outro cineasta – e certamente nenhum cineasta italiano – perseguiu de forma tão sincera a relação entre Marxismo e Freudismo em termos cinematográficos... Nenhum encarou de forma tão corajosa a necessidade de compreender a relação entre as forças inconscientes que governam nossas vidas individuais e as forças históricas mais amplas que parecem governar nossa vida coletiva” (2) (imagem acima, o mperador é tocado através do pano, uma brincadeira repleta de elementos psicanalíticos; imagem ao lado, Pu Yi, isolado do mundo; imagem abaixo, à esquerda, o cidadão Pu Yi entra como turista em sua antiga gaiola dourada)



Robert Kolker argumenta que, em todos os seus filmes, Bertolucci politiza Édipo ao sugerir que a passagem da identificação maternal para a paternal seja determinada do exterior, por forças históricas. De acordo com Kolker, o pensamento de Bertolucci segue de perto Lacan, mas também Althusser. Foi Lacan quem afirmou que a ruptura paterna com o laço pré-edipiano entre o Eu e a mãe empurra a criança para uma ordem simbólica caracterizada pela lei da cultura, da linguagem e do poder falocêntrico. Ao considerar esta passagem como o processo pelo qual cada indivíduo se torna sujeito à ideologia dominante, Althusser se baseia em Lacan para transformar o paradigma a-histórico freudiano do desenvolvimento psicológico numa explicação para a formação social humana. Como Althusser, Bertolucci insiste nos determinantes políticos do drama edipiano – um drama que, no caso de Pu Yi, nunca é resolvido satisfatoriamente. O que ocorre, ao contrário, é uma série de rupturas edipianas aparentes que ao invés de levá-lo a se identificar com uma autoridade paterna (e assim algum dia exercê-la), o relega a outro ambiente uterino de estagnação pré-edipiana. Como Bundtzen concluiu, simplesmente não existe conflito edipiano para o garoto e conseqüentemente nenhuma maturidade no sentido freudiano (3).

Abram a Porta! Abram a Porta! 

A vida de Pu Yi 
segundo  Bernardo
Bertolucci
: uma sucessão
de armadilhas ideológicas
de cores distintas
, mas que
apesar disso manifestam
a mesma tendência
para disseminar
a alienação


Millicent Marcus sugere uma inversão da explicação Lacan-Althusser, onde é a história (uma constelação de interesses do poder) que conspira continuamente para se opor ao progresso edipiano de Pu Yi! A primeira dessas pseudo-rupturas edipianas surge aos três anos de idade, quando a criança é arrancada de sua mãe biológica e levada para a Cidade Proibida. Na opinião de Kline, este evento traumático inicial estabelecerá um princípio de repetição compulsiva que governará o comportamento de Pu Yi. Quando o imperador manda que “abram a porta”, um comando que ouviremos algumas vezes durante O Último Imperador, sugere uma tentativa de escapar desse refúgio uterino em que ele vive e cuja saída será sempre negada a Pu Yi. Aos dez anos de idade, outra ruptura ocorre, agora é a mãe substituta-babá que será banida do palácio. Na mesma época, Pu Yi toma conhecimento de que o império não ultrapassa os muros da Cidade Proibida. Estes dois eventos históricos não acontecem na mesma época, foi uma decisão de Bertolucci para articular elementos freudianos e acontecimentos políticos (4).


f
f
Ao sair da prisão, acompanhamos Pu Yi
falando com as pessoas, defendendo o ex-diretor da 
prisão e, principalmente, abrindo uma porta!





Mas a ligação entre estes dois episódios não é suficiente para gerar uma ruptura edipiana, pois o imperador será impedido de seguir sua mãe substituta para fora dos muros. Seu comando (“abram a porta”) não possui a força de uma ordem! Johnston, o preceptor inglês, também não se torna um pai substituto. Quando Johnston diz para o imperador que cavalheiros sempre explicam aquilo que querem dizer, Pu Yi mostra sua frustração dizendo que ele não é um cavalheiro porque sempre estão dizendo a ele o que falar. Marcus sugere que se substituímos “cavalheiro” por “homem” chegaríamos à noção lacaniana de uma passagem edipiana à ordem do princípio de auto-autorização – “eu não sou um homem”. Johnston não seria um bom pai substituto porque ao mesmo tempo em que encoraja Pu Yi a fazer reformas o mantém ligado a influências infantilizadoras (a herança do reinado anterior na Cidade Proibida) e a exploração futura (os manipuladores imperialistas japoneses). (imagem acima, o cidadão Pu Yi defendendo o ex-diretor da prisão, que caiu em desgraça durante a Revolução Cultural; abaixo, Pu Yi, ainda na prisão, reclama com seu “ex-servo” porque ele não havia colocado a pasta de dentes na escova do imperador)


f
f
Falar da crise no império Chinês permitiu a Bertolucci
expor muito de sua ansiedade
e desapontamento em relação à política italiana que então
se dizia revolucionária
(5)





Outra pseudo-ruptura edipiana apontada por Millicent Marcus foi precipitada pela morte da mãe biológica de Pu Yi. A justaposição desse evento com a aquisição dos óculos (não sem uma pressão de Johnston sobre as matronas da tradição palaciana, mas que Pu Yi utiliza mais para escolher esposas do que se instruir através da leitura ou olhar para fora do palácio pelo telhado) para corrigira visão do imperador não chega a resolver o problema, por causa de duas coisas que sabotam o processo. Ao ser informado da morte da mãe, Pu Yi vai até os portões da Cidade Proibida, ordena que “abram a porta”, mas os guardas não o obedecem. Tomado de raiva, ele atira seu ratinho de estimação violentamente no portão – o animal morre. Ao fazer isso, sugere Marcus, Pu Yi está destruindo o ser autônomo representado pelo rato. Seria também uma espécie de suicídio substituto, onde Pu Yi parece deixar toda esperança de “abrir a porta” ao mundo adulto do poder, da história, da autonomia psicológica. O próprio casamento dele não cumpre outra função senão fazê-lo esquecer da vontade de fugir para a Grã-Bretanha e prolongar sua permanência no útero-Cidade Proibida.




“Nem os Comunistas nem Hollywood podem reivindicar O

Último Imperador como seu Pu
Yi, para ser usado como garantia
de  suas  próprias  agendas
ideológicas e comerciais” (6)





Treze anos depois, quando sua esposa é levada “para um clima mais quente” (depois de parir e ter seu filho bastardo assassinado pelos japoneses), Pu Yi corre até o portão de seu novo castelo em Manchukuo para vê-la. Novamente ele ordena, “abram a porta”. Mais uma vez sua ordem será desobedecida (o portão do palácio em Manchukuo também é vermelho, como o da Cidade Proibida). Quando uma Elizabeth debilitada, envelhecida e confusa, retorna do lugar onde os japoneses a enterraram (depois de matar o filho bastardo dela com o motorista), Pu Yi está de saída. Ele tenta falar com ela, mas Elizabeth se limita a subir as escadas cuspindo em todos os japoneses e fecha mais uma porta na cara de Pu Yi. Com a terceira tentativa vã de abrir os portões (quando Elizabeth foi levada embora), concluímos juntamente com Millicent Marcus que Pu Yi está condenado a viver uma vida de pseudo-rupturas edipianas. Uma existência onde a saída de figuras maternais (suas duas mães, suas duas esposas) não progride para uma alto-determinação adulta, mas para o confinamento em mais um regime psicologicamente infantilizante e politicamente explorador. O mesmo poderia ser dito, continua Marcus, em relação à recusa de Bernardo Bertolucci em honrar as convenções do cinema comercial e sua tendência, típica de um estilo espetaculoso, às ações heróicas e fabricação de identificação com a platéia. “O cinema se rebela contra a instrumentalização total, contra ser usado como mimeógrafo”, disse Bertolucci a respeito da pressão para fazer filmes militantes na década de 60.

“Embora nunca mencionado claramente na formulação de Moravia, certamente Gramsci é a autoridade por trás de sua avaliação em relação ao filme de Bertolucci. [Gramsci havia desafiado] a Esquerda intelectual para a criação de uma cultura nacional-popular que impossibilitaria qualquer retrocesso confortável ao culto do herói romantizado ou aos casos de estudo psicológico. Ao contrário, insistiu que a história seja articulada ao escrutínio crítico-realista. É a resposta maravilhosamente filmada por Bertolucci ao imperativo Gramsciano que exige de nós localizar [o filme] no interior do contexto de um cinema nacional [italiano]. Certamente, sem o recurso a progressista tradição intelectual que se estende desde Gramsci, passando por [Luchino] Visconti até Bertolucci, teríamos tido uma compreensão bem mais pobre do compromisso do cineasta em ‘abrir a porta’ ao mundo além da Cidade Proibida do espetáculo cinematográfico fácil” (7)


Leia também: 

O Rolo Compressor de Tarkovski
A Poesia e o Cinema de Tarkovski
Agnieszka Holland e Seu Camaleão Judeu
Bertolucci e o Negócio da China (I), (II), (III)
Todas as Cabeças de Arcimboldo (I), (II), (final)
O Mundo Infantil de Picasso (I), (II), (final)
As Mulheres de Ingmar Bergman (V)
Tarkovski Através do Espelho
As Crianças de Angelopoulos

Notas:

1. MARCUS, Millicent. After Fellini. National Cinema in the Postmodern Age. Baltimore (USA): The Johns Hopkins University Press, 2002. P. 71.
2. Idem, p. 331n30.
3. Ibidem, pp. 71-2 e 332n34.
4. Ibidem, pp. 72, 332n35.
5. Ibidem, p. 10.
6. Ibidem, p. 75.
7. Ibidem.