29 de jan. de 2008

O Porteiro da Noite


Viena, Áustria, 1957. Um ex-ofical das SS trabalha disfarçado como porteiro noturno de um hotel. Ele faz parte de uma organização secreta de ex-nazistas que eliminam todos aqueles que podem identificá-los e denunciá-los para os exércitos que ocuparam o país após a derrota de Hitler. Certo dia surge no hotel uma mulher. O porteiro e ela se reconhecem imediatamente. Eles tinham uma relação sadomasoquista quando ela era prisioneiro no campo de concentração onde ele servia. Ela não só não o denuncia como acaba voltando para ele, que tenta desesperadamente protegê-la da organização secreta – passam a viver confinados em um dos quartos do hotel. O filme mostra a lenta degradação física e mental a que ambos se submetem para manter viva sua relação.


Lançado em 1974, entre outros méritos O Porteiro da Noite (Il Portiere di Notte), dirigido pela cineasta Liliana Cavani, tem a capacidade de nos fazer repensar e problematizar mais profundamente as relações entre as pessoas. No fundo, o filme trata da complexidade das relações humanas, exemplificada pela relação sadomasoquista entre os protagonistas. Podemos dizer que o filme também problematiza, ou permite uma problematização, da forma como o cinema e a televisão podem (ou desejam) distorcer a realidade que pretendem mostrar.

Ficamos tão perplexos com essa insólita relação entre uma prisioneira de campo de concentração e um nazista que tomamos a parte pelo todo. O escândalo talvez nem seja o sadomasoquismo posto a nu, mas a percepção de quão profundamente estamos ligados mais a clichês e estereótipos sobre o que é a vida do que a ela propriamente.

Acostumamo-nos a ver, transplantados (e é mesmo como se fosse uma operação cirúrgica em nossas mentes) para os filmes de guerra e sobre o Holocausto, um desfile de clichês que gira em torno da oposição Bem x Mal. Os soldados americanos estão sempre do lado do Bem, enquanto os nazistas representam o Mal – como se soldados americanos nunca tivessem cometido atrocidades no campo de batalha; às vezes eu acho que eles nem falavam palavrões. Quando um soldado americano ou inglês não larga sua arma até o último tiro, é porque são heróis. Quando um soldado nazista faz o mesmo é porque ele é um fanático. Esta maneira de recontar a história não se restringe aos filmes ficcionais, muitos documentários abordam a questão dessa maneira. Referem-se de forma diversa quando falam da resistência feroz no campo de batalha em relação aos americanos e ingleses ou aos soldados nazistas. Na verdade, este é o discurso daqueles que venceram a guerra. Se os nazistas tivessem vencido, fariam o mesmo. A verdade não interessa!

Quando o caso é com os judeus, invariavelmente eles são as vítimas. Sempre que um filme mostra alguém que discorda de um judeu, essa pessoa passa a ser taxada de anti-semita – e Liliana Cavani certamente sofreu tal acusação. É como se os judeus estivessem sempre certos. É como se ninguém pudesse discordar dos judeus a respeito de coisa alguma – brigar então nem se fala. Qualquer coisa é motivo para os judeus afirmarem que estão sendo perseguidos. E nem vou entrar no mérito da atitude que o exército israelense adota em relação aos palestinos. Toda essa cortina de fumaça em torno da realidade torna menos evidente a complexidade das relações humanas. A divisão entre Bem e Mal pode facilitar a compreensão da vida ao reduzir tudo ao preto e branco. Só que a vida é cheia de tons de cinza.

É isto que mostra O Porteiro da Noite: a identificação entre vítima e torturador. Prato cheio para análises psicanalíticas, psiquiátricas, antropológicas, sociológicas e filosóficas a respeito do sadomasoquismo, o filme foi muito combatido apenas porque rompia com o estereótipo do Bem contra o Mal, além de colocar uma vítima como agente de seu próprio sofrimento.

Claretta Tonetti traça um paralelo entre O Porteiro da Noite e O Último Tango em Paris, filme dirigido pelo cineasta Bernardo Bertolucci. No que diz respeito ao sadomasoquismo, o filme de Bertolucci seria como que um precursor do filme de Cavani. No Último Tango temos, embora com muito menos ênfase, referências à patente militar de coronel de Paul - personagem de Marlon Brando. Jeanne, a personagem de Maria Scheneider, também se veste com o uniforme dele. No Porteiro, a personagem de Charlotte Rampling vai um pouco mais longe. Além de vestir o uniforme da SS nazista, ela dança para vários oficiais com os seios desnudos. A diferença de idade entre homem e mulher é grande nos dois filmes, o que daria uma coloração incestuosa as relações. No Último Tango, Paul dá banho em Jeanne, enquanto no Porteiro, como um pai ou mãe fariam, o ex-oficial da SS alimenta a mulher com uma colher e depois a veste como se ela fosse uma criança inexperiente. Todos esses elementos como botas longas, armas, quepes e uniformes militares, carregam uma mensagem clara de violência e poder (dominação). (1)

Ao contrário do que seria razoável, o escândalo não foi mostrar uma relação sadomasoquista na tela do cinema, mas mostrar uma vítima de campo de concentração que amava ser torturada por seu homem – o oficial nazista que administrava o campo de concentração onde se conheceram.

Naturalmente não estou sugerindo que todos os judeus e judias gostaram de ser torturados antes de morrer. Também não estou negando o holocausto. Absolutamente não! Entretanto, espremer todas as vítimas do lado do Bem e todos os nazistas do lado do Mal impede a constatação do óbvio: o universo das relações humanas ultrapassa qualquer redução a clichês e estereótipos. A polêmica na época do lançamento de O Porteiro da Noite ilustra muito bem o que acontece quando utilizamos aquilo que são apenas muletas para uma compreensão inicial e limitada do mundo (clichês e estereótipos) como se fossem nossas próprias pernas (nosso espírito crítico).


Leia também:

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Notas:

1. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci: the cinema of ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 136.