15 de abr. de 2008

Bernardo Bertolucci e o Parceiro Ideal (Epílogo)

"É proibido proibir"


Espetáculo/Revolução

Durante uma aula ao ar livre entre ruínas romanas, Jacob (ou seu duplo) dá instruções para a revolução/espetáculo que planejou. São proferidas muitas palavras de ordem nascidas nas manifestações de maio de 1968 em Paris: “é proibido proibir”, “roubem sua felicidade” (01h25min). Na verdade, conta Bertolucci, Pierre Clementi, o ator que interpreta Jacob (e seu duplo) viajava toda semana à Paris nos intervalos das filmagens em Roma. Portanto ele estava bem informado sobre os acontecimentos e trazia sempre novidades (1). Durante outra aula, Jacob (ou seu duplo) pede que seus alunos e alunas façam algumas tarefas. Enquanto eles estão em ação, Jacob (ou seu duplo) vai espelhando teias de aranha artificiais e explica:

“Podemos dizer que está acontecendo algo? Não, não acontece nada. As coisas não são como vemos, nem como geralmente sentimos. Mas como o teatro mostra. As coisas são receptáculos do mal, ou seja, da irrealidade. O teatro é uma das vias que conduz o homem à realidade. No início, as coisas eram verdadeiras. O mundo na sua infância era real. Tinha uma ressonância nos homens. Olhar para o mundo naquele tempo era ver o infinito. Agora, está crescendo em mim algo de horrível. Que não vem de mim, mas das trevas que estão em mim. E logo não haverá mais nada. Só as nossas máscaras obscenas que imitam a realidade no meio dos escarros e do esterco do mundo”.



A espiá-los está ele: o seu Jacob


"Qual é a Moral [da história]?" Então começa a montar o que parece ser um coquetel molotov: aquelas garrafas com liquido combustível que ficou marcada desde a Segunda Guerra Mundial como uma forma de defesa daqueles que lutam de mãos vazias contra exércitos e estavam sendo muito utilizadas em Paris (na vida real) naquele momento – era 1968.

Devemos Tirar as Máscaras!

Aparentemente, foi Jacob e não seu duplo que matou tanto Clara quanto uma mulher que bateu em sua porta vendendo detergentes. Essa vendedora já havia estado em sua casa antes. Dessa vez, ela aparece marcando os prédios com um X (possivelmente aqueles que ela já visitou), e no último ela desenha uma suástica nazista (01h27min). A partir daí, Bertolucci começa a pintar as imagens com grandes X em tinta vermelha. Ela chega à casa de Jacob (ou seu duplo), dança com ele em torno da máquina de lavar, se besuntam de sabão e depois ele a enforca. Ele tinha sido a primeira (e única) pessoa que viu Jacob e seu duplo juntos, fato que o duplo deixou claro que não havia gostado.

Jacob foi rejeitado pela sociedade da qual faziam parte Clara e o professor. Agora Jacob quer destruir essa sociedade. Segundo Claretta Tonetti, essa mulher do detergente seria uma transfiguração de Jacob e também de seu duplo. Jacob e seu duplo não se dividem apenas em duas partes, assim como o espelho (a mente de Jacob; sem esquecer que Jacob oferece seu armário, que possui um grande espelho na porta, para o duplo morar) não se quebra apenas em dois pedaços.


 

Na verdade, muitos são os fragmentos de Jacob, essa mulher seria apenas mais um deles. Vendendo detergente de porta em porta, ela é parte de uma sociedade alienada. “A garota tem olhos pintados em suas pálpebras; isso permite que ela recite as virtudes dos detergentes com seus olhos ‘reais’ fechados” (2). Se concordamos com Claretta, quando Jacob faz amor com a mulher, significa que ele faz amor com seu duplo, o que significa que ele faz amor consigo mesmo.

Jefferson Kline lembra que, a partir do momento em que o duplo de Jacob aparece, os dois tornam-se virtualmente indistinguíveis, diminuindo a sensação de coerência. O filme de Bertolucci, afirma Kline, não pode ser amarrado a nenhuma lógica narrativa. Se existe uma narrativa em Partner, ela é fragmentada e associativa como a estrutura dos sonhos. “E como um sonho, não tem desfecho [ou solução]; simplesmente desaparece da consciência” (3).

Agora Jacob (ou seu duplo) está entre as montanhas de livros no seu quarto, depois de concluir que ele só faz exercícios e que os atores seus alunos devem ir para as ruas, ele fala para si mesmo: “vamos tirar as máscaras!” (01h32min). Quando ele percebe que nenhum dos alunos virá ao encontro marcado para começar a revolução/espetáculo, Jacob (ou seu duplo) fica se perguntando o que teria acontecido. Mais tarde, conversando com Jacob (ou seu duplo), diz que, como ele os alunos sentiram medo. Por esse motivo, ele (Jacob ou seu duplo) mandou o outro (Jacob ou seu duplo) em seu lugar, já que o considera o partner (parceiro) perfeito (01h42min).




Jacob fez uma guilhotina para seu duplo. Ele quer a cabeça de seu duplo, por isso fez a coisa usando seu próprio pescoço como molde. Queria desaparecer com sua cabeça para evitar equívocos. Jacob tem algo a dizer para seu duplo, então o outro coloca seus protetores de ouvido e se prepara para ouvir. Em principio, nesta seqüência final, Jacob é Jacob e seu duplo é seu duplo, se acreditamos que a diferença entre as roupas que usam diz alguma coisa – a roupa de Jacob e seu corte de cabelo são mais formais e comportados. Neste momento, Jacob caminha em nossa direção (para os espectadores que somos nós) e fala:

“Vamos abrir um parêntese. Eu aposto que não entenderam nada. Porém, é tão evidente. Basta olhar ao redor, perto de vocês ou duas filas à frente, ou atrás de suas costas, pronto a espiá-los está ele: o seu Jacob. Porque vocês também têm um. É o que gostariam de ser, por isso tem medo dele e o evitam. Negando-lhe a existência. Mas pensem o que fariam juntos. O que aconteceria se todos os nossos Jacós se reunissem em uma máfia, um partido, um exército e lutassem contra os nossos inimigos. Coragem, quando saírem daqui, procurem seu Jacob. Convidem-no, ofereçam-lhe dois ovos. Liberem a fera e o espetáculo se fará. E será permanente. Fecho o parêntese”.

Então Jacob sai pela janela do apartamento, aparentemente com a intenção de pular. Seu duplo, que está ainda está examinando a guilhotina, percebe e vai até lá. Segue-se o diálogo final:


Duplo: Pare! Um minuto. Quer um cigarro?
Jacob: Obrigado, não fumo.
Olhando para a rua lá embaixo...

Duplo: Olhe, fingem não vê-lo.
Jacob: Ainda não me viram.
Duplo: Jacob fingem não vê-lo porque temem que mudem de idéia.

Jacob: O que você quer dizer?
Duplo: Quero dizer que querem que você salte. Porque o odeiam.
Jacob: Fique quieto.
Duplo: Jacob foi
você que me ensinou. Se quiser vê-los felizes, salte! Salte já!
Jacob: Fique quieto!
Duplo: Daqui a pouco não re
sistirão. Olharão para cima e gritarão. “Salte!”, gritarão.
Jacob: Chega, não fale mais.
Duplo: Se saltar eu também saltarei. Jacob, aonde vai?
Jacob: Vou dar uma volta.

Duplo: Espera, vou com você. Jacob vamos recomeçar?
Jacob: Não sei, veremos com o tempo.
Duplo: E a rapaziada, nos traiu mesmo? [refere-se aos atores alunos de teatro que não compareceram ao encontro para a revolução/espetáculo]
Jacob: Não sei. Com o tempo, veremo
s.
Duplo: Jacob, ainda não percebi se nós dois somos um ou dois.
Jacob: Não sei. Com o tempo, veremos.
Duplo: Jacob! Jacob! Tenho uma idéia.
[o filme termina imediatamente após esta fala]


Em Partner, não há vencedor na luta entre o teatro e o cinema. Como sugeriu Claretta, Jacob representa o teatro, enquanto seu duplo representa o cinema. Apanhados numa teia de conexão e hostilidade, os dois caminham para a beirada do parapeito da janela do apartamento de Petruska. Na avaliação de Jacob, completa Claretta, essa sociedade primeiramente mostra indiferença à dor, depois estimula o suicídio. Apesar disso, o final de Partner é aberto e na deixa evidente o que de fato irá acontecer no instante final (4).

Para Não Concluir 



“Eu creio que
 Partner  seja  um  dos
filmes  mais  livres  de  todos
que realizei. E é também um
dos filmes mais difíceis 
para o público” (5)




"Eu aposto que não entenderam  nada.  Porém,  é
tão evidente". "Por isso têm medo dele e o evitam"

Procurando definir Partner, talvez o filme mais complicado de Bertolucci, Claretta Tonetti afirmou que não se trata de uma obra para entreter ou agradar. Peter Bondanella, um dos estudiosos americanos sobre o cinema italiano que assistiu ao filme quando de sua estréia na América do Norte, não estranhou que o público em geral não tenha compreendido. Em sua opinião, Bertolucci foi “intencionalmente anticomercial” (6). Bilge Ebiri define o filme a partir da influência de Jean-Luc Godard:

“Muitos dos filmes mais antigos de Bertolucci funcionam simultaneamente como homenagens e exorcismos. [Pier Paolo] Pasolini e Jean-Luc Godard são os pais espirituais gêmeos do cineasta nos anos 60, e a influência do último é claramente evidente em Partner, o terceiro filme de Bertolucci, uma tentativa no estilo elíptico, travesso, altamente simbólico e politicamente ativo do cinema pós-Nouvelle Vague de Godard. Uma adaptação livre de O Duplo, de Dostoyevski, Partner é a estória de um jovem idealista (Pierre Clementi) que é confrontado com seu doppelganger [duplo] politicamente revolucionário, socialmente ativo, e possivelmente psicótico. Repleto de tentativas de distanciamento brechtiano (texto na tela, dirigir-se diretamente à câmera, etc.), o filme mantém hoje certa fascinação, pela forma como o poder do florescente lirismo e segurança cinematográfica de Bertolucci confronta-se com o estilo fragmentado e altamente declarativo dos filmes mais políticos de Godard”. (7)

Pier Paolo Pasolini considerou Partner excepcional. Na verdade, achou mesmo que o filme é efetivamente revolucionário na história do cinema. A forma como foi construído, afirma Pasolini, faz com que o espectador perca a ilusão de que está dentro do filme. Ou seja, nos mantemos espectadores, como quando estamos na platéia do teatro – no sentido tradicional do termo. O espectador não toma parte na ação, observa Pasolini, ele testemunha. Os únicos momentos onde essa sensação diminui ocorrem nas cenas onde existe o contracampo – e Pasolini acha que são em número pequeno demais para destruir a sensação de testemunho. E completa: “uma técnica ou estilo semelhante não havia jamais sido utilizado, que eu saiba”.


“Um cinema que não implica sentimentalmente o espectador, mas que o obriga a julgar”. Ainda que os planos-seqüência abundem, lembra Pasolini, este não é um filme teatral. Partner faz parte do cinema que estabelece uma outra relação entre teatro e cinema. “O cinema não se assemelhará mais ao teatro apenas quando ele é constituído de longos planos-seqüência. Mas ele se assemelhará ao teatro igualmente quando se desenvolve inteiramente em ‘campo’, sem ‘contracampo’ “.


Um elemento que Pasolini não aprovou foram as citações. No panorama de um novo cinema como o pré-figurado por Partner, dirá Pasolini, é uma contradição que se utilizem citações do cinema anterior. Pasolini não chega a falar das citações explícitas do cinema mudo (Nosferatu e O Encouraçado Potemkin [imagem acima]). Ele se referiu especificamente ao musical americano (a cena da escadaria, quando o duplo vai encontrar a namorada de Jacob às escondidas) e as lembranças do cinema de Godard (especialmente os manifestos contra a guerra do Vietnã). Mas Pasolini se estende na crítica as citações da obra de Fellini. Elementos gigantes (a grande sombra que chuta o traseiro de Jacob), a guilhotina, a coleção de borboletas na parede, a cena de amor no ônibus, especialmente a mulher que vende detergente (com seus olhos pintados nas pálpebras) (8). Confesso que, neste último exemplo, não foi Fellini que me veio à lembrança, mas Jean Cocteau.

Nas palavras do próprio Bertolucci, pouco encorajadoras para aqueles que se interessam pelo filme, Partner tem certo sabor amargo:

“Atrás de nosso filme estava o sadismo que impunha ao espectador a responsabilidade de separar-se do seu lado emocional que deseja força-lo a refletir a qualquer custo... Mas também tinha o masoquismo de fazer coisas que ninguém queria ver, de fazer filmes que os espectadores iriam recusar. Medo de uma relação adulta com o publico nos fez refugiar-se num cinema pervertido e infantil. A partir desse ponto de vista, Partner é realmente um tipo de manifesto do cinema de 1968”.(...)”Eu filmei Partner após quatro anos de inatividade, e não é possível fazer um filme a cada quatro anos. Você perde a naturalidade... Cada fotograma me faz sofre como se minha vida estivesse em jogo. Partner é meu filme menos natural” (9).

Apesar de tudo Bertolucci admite que, por mais que hoje eles o façam rir um pouco, os elementos ativistas dos quais comungava em 68 traziam consigo um elemento de sonho que é preciso cultivar. Em entrevista de 2003, referindo-se ao seu novo filme, Os Sonhadores (The Dreamers, 2004), o cineasta retorna a 1968. Se antes, com Partner, ele esta assistindo tudo de Roma, agora ele está em Paris, no olho do furacão. Talvez se redimindo do tom desdenhoso de sua opinião no parágrafo anterior, Bertolucci reincorpora Partner em sua conexão com Os Sonhadores. Não se trata de envergonhar-se das apostas políticas e estéticas do passado. O que importa é saber que elas nasceram de uma capacidade de sonhar cuja chama deve aquecer os corações:




“Eu creio que o nível narrativo verdadeiro [de Partner] seja quase todo onírico. Mas tinham de passar quase 35 anos e eu precisaria fazer outro filme para me dar conta do significado, da importância dos sonhos mesmo na vida diária. Se era justo sonhar em 1968, é muito mais justo continuar sonhando hoje.” (10)


Leia Também:

Bernardo Bertolucci e o Parceiro Ideal (I)

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

Notas:

1.Da entrevista de Bertolucci (2003) que consta dos extras do dvd de Partner, lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo em 2008.
2. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The cinema of ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. p. 65.
3. T. Jefferson Kline. Bertolucci’s dream loom. (University of Massachussets Press, 1987. P. 58) IN TONETTI, Claretta M. Bernardo Bertolucci.... Op. Cit., p. 64.
4. TONETTI, Claretta M. Bernardo Bertolucci.... Op. Cit., pp. 71-2.
5. Da entrevista de Bertolucci (2003) que consta dos extras do dvd de Partner, lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo em 2008.
6. TONETTI, Claretta M. Bernardo Bertolucci.... Op. Cit., pp. 72-3.
7. EBIRI, Bilge. Bernardo Bertolucci. Senses of Cinema, 2004.
8. JOUBERT-LAURENCIN, Hervé (org.). Pier Paolo Pasolini. Écrits Sur Le Cinema. Paris: Cahiers du Cinema, 2000. Pp. 137-140.
9. TONETTI, Claretta. Bernardo Bertolucci... Op. Cit., p. 72.
10. Da entrevista de Bertolucci (2003) que consta dos extras do dvd de Partner, lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo em 2008.