20 de abr. de 2008

Fellini e a Trilogia da Salvação



Na seqüência da Trilogia do Caráter, Peter Bondanella identifica o que chamou de Trilogia da Salvação ou da Graça. Classificando desta maneira o grupo dos seis primeiros filmes de Fellini, ele pretende agrupar seus filmes a partir da recorrência de elementos estruturais. Desta forma, os críticos hoje elogiam, lembra Bondanella, os filmes da primeira trilogia (que na época depreciavam) como um retrato acurado, verossímil (embora cômico) das cidades do interior da Itália na década de 50 do século 20. No caso da Trilogia da Salvação ou da Graça, Fellini se afastaria das fronteiras ideológicas do Neo-Realismo, definido como um cinema socialmente relevante, em direção a uma posição de “cristianismo existencialista”. Agora, trata-se de perseguir uma iconografia tradicional ou conceitos religiosos (como o de conversão) (1).

Entretanto, entre as duas trilogias Fellini dirigiu um episódio para um projeto do diretor Cesare Zavattini. Chamado Agência Matrimonial (Um’Agencia Matrimoniale, 1953), fazendo parte de Amor na Cidade (Amore in Città), o média-metragem fugia ao objetivo de Zavattini, reconhecido como talvez o mais famosos dos roteiristas neo-realistas. Fellini propôs a estória de um repórter que se disfarça de cliente e vai numa agência de casamentos procurar uma mulher que aceite casar-se com um lobisomem. Aparentemente, conta Bondanella, Zavattini acreditou na afirmação de Fellini de que se tratava de um caso verdadeiro.

A Estrada da Vida (La Strada, 1954) foi o primeiro filme da trilogia que nos interessa aqui. Certa vez, Fellini descreveu este filme como “realmente o catálogo completo de meu mundo mítico inteiro” (2). Trata-se de uma fábula onde um homem que tem um número de circo, em que atua como o “homem-músculos” que arrebenta correntes com os músculos do tórax, compra uma garota abobada (interpretada por Giulietta Masina, a esposa de Fellini) de sua mãe pobre para ajudá-lo em seu número. Àngel Quintana sugere que neste filme Fellini começa o processo de transformação de seus personagens em caricaturas. Como definiu André Bazin, lembra Quintana, “esses personagens não se definem jamais por seu caráter, mas exclusivamente por sua aparência” (3). (Gelsomina: imagens à direita e, no início do artigo, esboço feito por Fellini. Cor modificada pelo autor)

Gelsomina, a abobada, e Zampanò, o machão, tem uma relação ruim, mas a natureza dela é pura e agüenta todas as atitudes grosseiras de seu dono. Quando ele mata um amigo dela (que o azucrinava), Gelsomina acaba ficando mentalmente abalada (e, portanto, imprestável para o trabalho). Zampanò a abandona durante uma viagem. Tempos depois, ele percebe que ela foi capaz de modificar a natureza animalizada e brutal dele com sua misteriosa presença. Mas agora é tarde demais, pois ele descobre que ela morreu.

A Estrada da Vida
exemplifica bem a noção cristã da salvação pela conversão: a crença de que uma conversão pode modificar radicalmente a vida de alguém. Zampanò parte da praia onde compra Gelsomina e no final do filme chega à outra, onde se ajoelha na beira do mar e chorar a perda daquela pequena mulher-criança olhando para o céu. Fellini transformou a praia no espaço simbólico da revelação de uma crise interior: como em A Doce Vida (1959), (1962), Julieta dos Espíritos (1965), Amarcord (1972). Quando a mãe de Gelsomina a está entregando, diz que a moça é meio lenta, mas é capaz de aprender. Arrogante, Zampanò diz que não tem problema, pois ele é bem sucedido em ensinar cães. No final, Gelsomina é que domestica Zampanò.

A Trapaça
foi o título em português de “O Enganador” (Il Bidone, 1955), o segundo filme da trilogia. Desta vez temos Augusto, um vigarista que aplica um golpe vestido de padre. O enredo representa uma variação da estória cristã do bom ladrão, o personagem perto do Cristo crucificado, trançando a queda de Augusto num inferno pessoal através de cinco dias jogos de confissão (a partir dos quais ele aplica os golpes nos crentes) e um remorso crescente. (imagem abaixo, à esquerda, Augusto)

Àngel Quintana lembra que os personagens desse filme parecem um prolongamento dos parasitas de Os Boas Vidas (I Vitelloni, 1953). Augusto se fantasia de bispo, enquanto seu comparsa Picasso se veste de padre. Eles convencem as vítimas a entregar suas economias e heranças pelo bem de suas almas – qualquer semelhança com o Brasil atual é mera coincidência. “Por um lado, Il Bidone [A Trapaça] parece ser um drama a respeito da enganação reinante no mundo contemporâneo, do outro, o filme se apresenta também como uma interrogação sobre o que é uma crise existencial e sobre o medo do futuro” (4).

Fellini propõe uma reflexão sobre a velhice e seus medos. Augusto está na metade de sua vida, quando reencontra a filha que ele abandonou, percebe que não poderá redimir-se dos erros do passado e se vê preso numa teia de mentiras para si mesmo. Suas próprias mentiras o impedem de agir, mergulhando-o em desgosto. Como Zampanò, Augusto é vítima da dor que infligiu aos outros. Seu fim é trágico, abandonado por seus comparsas, agoniza numa terra deserta – com os braços abertos como o Cristo na cruz. Augusto busca uma redenção, mas é em vão. Seu calvário é aquele do homem que grita no deserto (5).

Quando de sua estréia no Festival de Cannes de 1955, A Trapaça gerou uma grande polêmica e Fellini foi obrigado a fazer um corte de vinte minutos (6). O cineasta só voltaria ao Festival em 1969, com Satyricon. Seu próximo filme As Noites de Cabíria (Le Notte di Cabiria, 1957), também esteve envolto em problemas. Desta vez o problema foi a concomitância entre um filme sobre uma prostituta e a polêmica sobre a legalização da prostituição que se desenrolava na Itália. Os setores católicos que apoiaram o começo da carreira de Fellini foram se afastando do cineasta (7). No final das contas, a legalização foi banida em 1958. Fecharam-se então os bordéis inspecionados pelo Estado e que tiveram grande influencia na educação sexual de homem italiano da geração de Fellini (8). (Cabíria, imagem abaixo, momentos antes de quase ser jogada montanha abaixo pelo último escroque que amou)

As Noites de Cabíria conta a história de uma mulher que quer ser amada. Giulietta Masina é Cabíria, a prostituta que deseja uma nova vida, casar-se, ter filhos e uma casa. Mas a realidade destrói seus desejos. Ela deseja tudo isso, entretanto o filme não põe na boca dela nenhum questionamento sobre a natureza de sua opção pela prostituição. Ela passa de relação em relação, sempre sendo abandonada pelos homens que ama. Quando o filme começa, vemos Cabíria ser atirada no rio por um desses homens. Quando o filme termina, ela quase vai outra vez.

Segundo Bondanella, apesar da presença de elementos na estrutura do filme que apontem para certo Neo-Realismo (Fellini entrevistou prostitutas de verdade para compor o papel e contratou Pier Paolo Pasolini para tornar o diálogo realístico pesquisando as gírias de Roma), ele acredita que o real interesse de Fellini caminhava em outra direção. O nível socioeconômico de Cabíria importava menos do que os estados subjetivos irracionais dos personagens. Na conclusão de Àngel Quintana...

“A trilogia formada por [A Estrada da Vida, A Trapaça e As Noites de Cabíria], inscreve Fellini no coração dos debates que atravessam o cinema europeu [de então] – do cinema de Ingmar Bergman ao de Michelangelo Antonioni – e propõem uma reflexão sobre a maneira pela qual o primado dos valores materiais engendrou certo vazio interior e alimentou a indiferença no interior das relações humanas. Nesses três filmes, o cineasta é perseguido pela descrição de uma possível redenção num mundo sem amor. Fellini articula suas três narrativas em torno de seres fracos em plena crise moral que surgem rapidamente como espectros de uma humanidade errante numa época de forte tensão espiritual”. (9)


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Notas:

1. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. P. 24.
2. Idem.
3. QUINTANA, Angel. Federico Fellini. Paris: Cahiers du Cinema, 2007. P. 29.
4. Idem, p. 31.
5. Ibidem, p. 34.
6. Ibidem, p. 30.
7. Ibidem, p. 35.
8. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., p. 25.
9. QUINTANA, Àngel. Op. Cit., p. 28.