25 de out. de 2008

Fellini e a Psicanálise II (final)





"O dinheiro está em
todo  lugar
,  mas  a
 poesia  também 
(...)"

Federico Fellini (1)





Meus Labirintos, Minha Vida

Muitas seriam as vielas e esquinas do labirinto felliniano. Modestamente, seguiremos aqui alguns poucos corredores só para aguçar nossa atenção antes de saber por que Fellini enveredou pela psicanálise. Jean-Max Méjean nos faz notar uma ligação curiosa entre as cenas iniciais de A Doce Vida (La Doce Vita, 1959) e Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963). No primeiro caso temos uma estátua de Cristo pendurada em um helicóptero. No segundo caso, temos Guido flutuando no ar como uma pipa ou um balão, amarrando pela perna a uma corda que desce até o chão (2). O sagrado e o profano, a estátua de Cristo sobrevoa Roma e seus pobres e mortais habitantes.


O balão-Guido, como o balão-mulher dos sonhos de Snàporaz em Cidade das Mulheres (La Città Delle Donne, 1980) não aponta para um ser salvador. Guido está em plena crise, talvez flutuar seja a única forma de fugir das dúvidas que o sufocam. Mas não adianta, pois algo ainda lhe puxa para baixo. O balão-mulher também não é um porto seguro. Lá dentro está Snàporaz, flutuando no colo de sua mulher ideal gigante. Mas no mesmo instante, lá do chão, a mesma mulher que dá um rosto ao balão derruba-o com rajadas de metralhadora. (com excessão da ilustração ao final, todas as imagens deste artigo mostram Fellini durante seu trabalho de cineasta)


Homens que tentam voar para longe de seus problemas, homens meio aéreos... Mas também temos em Fellini muitos filmes onde aparece o cinema, o teatro, entrevistas e até um filme que se tenta realizar (3). A sala de cinema é o espaço de um claro-escuro, lugar de romance, mais também de silêncio. Em filmes como Os Palhaços (I Clows, 1970) temos uma espécie de enquete sobre a morte do circo e seus palhaços. Em Entrevista (Intervista, 1987), acompanhamos Fellini e Mastroianni em uma visita a Anita Ekberg, estrela de A Doce Vida. Ela agora está mais velha, seu corpo não é mais aquele, mas ela ainda está lá, lá dentro dele. O cineasta e seu ator-alter ego também estão envelhecidos, mas ainda estão lá. É como se Fellini estivesse tentando negar a morte.


Em Fellini 8 ½ assistimos à estória, supostamente baseada em uma história, sobre um diretor de cinema que não sabe mais sobre o que era seu filme, e que consequentemente não consegue realizá-lo. Fellini, que já se auto-intitulou um grande mentiroso, afirmou certa vez que a dúvida aconteceu com ele mesmo. Até que certo dia teve a idéia que resolveria seus problemas, faria um filme a respeito de um diretor que não sabe mais que tipo de filme quer fazer (4). Foi somente depois disso que Fellini inseriu os elementos provenientes de suas leituras psicanalíticas.

Mas as semelhanças com vida de Fellini param por aí - é no que acreditamos. Pelo menos no que diz respeito às mulheres do filme. Guido tem uma esposa e uma amante. Durante o filme ele delira sobre um harém que reuniria todas as mulheres de sua vida. Lá, o papel de faxineira e cozinheira servil e agradecida é de sua esposa. Antes disso, Guido delira sobre a hipótese de um encontro entre sua esposa e sua amante onde elas se tornariam imediatamente grandes amigas. É Méjean que nos lembra que elas sabem que irão perder esse homem, uma porque é sua esposa, a outra porque gostaria de ser (5). Mas Fellini, na vida real, jurava amor incondicional a sua esposa, Giulietta Masina. Consta que, quando ele morreu, em 1993, ela faleceu poucos meses mais tarde de solidão.

Nas palavras do próprio Fellini...

“Está claro que um artista tira sua inspiração diretamente de seus próprios traumas, das feridas e cicatrizes de sua experiência psíquica. Várias formas de neurose têm uma função providencial para o indivíduo criativo... Eu poderia dizer que a neurose possui uma natureza providencial porque ela constitui um depósito, um armazém, ou uma antecâmara de tesouros de onde um artista pode extrair algo a partir de todas as estórias já imaginadas. Como naqueles contos de fadas que descrevem um fabuloso tesouro enterrado no fundo do mar ou escondido em uma caverna guardada por monstros, por dragões, que o herói antes terá que derrotar se merece a riqueza que está lá dentro. Em geral, a pessoa criativa tem que arrastar para a luz algumas dessas jóias, um pedaço desse tesouro, a coisa que está escondida. Naturalmente, ela terá que se expor aos perigos impostos pelos guardiões infernais, os satânicos. É precisamente esse perigo que o artista identifica como o aspecto neurótico e psicótico de seu esforço artístico, como encontramos na grande tradição de artistas malditos como Baudelaire, van Gogh, [Edgar Allan] Poe, e todos aqueles que pagaram um preço muito alto por ter chegado perto demais de certas verdades sem ter o conhecimento, a proteção, da psicanálise. Eles não tinham o que é necessário para fazer uma roupa à prova de fogo que poderia protegê-los dessa dimensão magnética inflamável. Não, pessoalmente, eu penso que tive muita sorte: exceto por vários episódios de depressão indispensáveis e educativos, eu não tenho nenhum estigma para mostrar a você!” (6)

Freud e Jung

“Todo mundo sabe que
o tempo é a Morte, que a
Morte se esconde em relógios. Contudo, impondo outro tempo, movido pelo Relógio
da Imaginação, pode-se
recusar essa lei (...)

Federico Fellini (7)



Em certo momento de Ensaio de Orquestra (Prova d’Orchestra, 1978), filme que poderia ser tomado como uma seção coletiva de psicanálise nacional da nação italiana, enquanto os músicos estão se colocando em seus lugares, a câmera de uma estação de tv passeia entre eles para fazer um documentário sobre a orquestra (o próprio Fellini desempenhará o papel de entrevistador). Nesse passeio, a câmera surpreende uma pergunta que um músico faz para outro. Ele quer saber se Fellini 8 ½ é um filme psicanalítico. Com este comentário 15 anos após Fellini 8 ½, os mais pessimistas diriam que Fellini está apenas recriando uma expectativa em torno de um filme antigo por questões financeiras. Entretanto, como somos otimistas, preferimos acreditar que este comentário apenas dá o tom da polêmica em torno daquele filme confuso sobre um personagem confuso. (imagem acima, com Fellini sentado ao centro e Giulietta Masina em seu colo, relaxam durante as filmagens de Noites de Cabíria, 1957)


A partir de 1961, pelas mãos do psicoterapeuta alemão professor Bernhard, Fellini é apresentado aos livros de Carl Jung, discípulo de Sigmund Freud. Fellini não sabe dizer que essas leituras influenciaram seus filmes a partir de Fellini 8 ½, mas acredita que esses livros sem dúvida favoreceram um contato seu com zonas mais profundas estimuladas por sua imaginação. Até então, o cineasta confessa, ele não tinha capacidade de definir suas preferências, gostos, nem conseguia forma idéias gerais a respeito de nada. Ele sentia como se lhe faltasse alguma coisa. Com a leitura de Jung, ele consegue se libertar do sentimento de culpa e do complexo de inferioridade que a constatação dessas coisas (que ele via como limitações) lhe causava (8).


Fellini afirmou que a psicanálise deveria ser ensinada nas escolas. Para o cineasta, apesar de todos os riscos de certas buscas, nada seria mais heróico do que um mergulho em nossas dimensões interiores, em uma exploração dessa parte desconhecida de nós mesmos. Entre Freud e Jung, entretanto, Fellini prefere o segundo. Não que ele tenha lido as obras de Freud, mas o texto de Jung acabou por se tornar um companheiro de viagem: “Freud quer nos explicar o que nós somos, Jung nos acompanha até o limiar do desconhecido e nos deixa ver e compreender sozinhos” (9). Segundo Fellini, Jung é mais modesto em relação aos mistérios da vida, e seus escritos não teriam a pretensão de tornar-se uma doutrina, procurando apenas sugerir um novo ponto de vista. Essa postura nos levaria a desenvolver um comportamento mais consciente, mais aberto, reconciliando-nos com as partes deslocadas, frustradas, mortificadas e doentes de nós mesmos. (abaixo, "Eu adoro entrevistas!". Um auto-retrato de Fellini durante entrevistas filmadas)


Fellini acredita também que Jung tem mais a dizer que Freud em relação àqueles que crêem que tem mais a realizar no sentido de uma imaginação criadora. Freud nos obriga a pensar, enquanto Jung nos permitiria sonhar, imaginar. Na opinião de Fellini, Jung percebe mais claramente o labirinto de nosso ser. Entre Freud e Jung, lembra o cineasta italiano, existe uma diferença de percepção em relação ao fenômeno do simbolismo. Isso interessou Fellini porque, enquanto realizador de filmes, ele está acostumado a empregar imagens simbólicas. Para Jung, o símbolo pode exprimir uma intuição para a qual não encontramos uma forma mais clara de expressão - o símbolo seria uma forma de exprimir o inexprimível, ainda que de maneira ambígua. Já para Freud, explica Fellini, o símbolo é empregado para substituir alguma coisa impossível de se exprimir e que por conseqüência é necessário esquecer - o símbolo seria uma forma de esconder aquilo que não se pode mostrar.




Resumidamente, Fellini acha que a pergunta que os dois mestres fazem é a mesma: o que é a alma humana? Do ponto de vista do cineasta, a resposta de Jung foi mais fascinante (10).


Leia Também:

Fellini e a Psicanálise I
Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

Notas:

1. PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003. P. 124.
2. MÉJEAN, Jean-Max. Fellini, un Rêve, une Vie. Paris: Éditions du Cerf, 1997. P. 140.
3. Idem, p. 153.
4. GRAZZINI, Giovanni. Fellini par Fellini. Entretiens Avec Giovanni Grazzini. Paris: Flammarion, 1984. P. 132.
5. MÉJEAN, Jean-Max. Op. Cit., p. 20.
6. PETTIGREW, Damian. Op. Cit., p. 127.
7. Idem, p. 52.
8. GRAZZINI, Giovanni. Op. Cit., P. 132.
9. Idem, p. 134.
10. Ibidem.