27 de mar. de 2009

As Mulheres de Federico Fellini (V)








“Gradisca
(sirva-se!)


Gradisca em Amarcord






As Imagens da Sexualidade

Ao que parece, as feministas tinham um pé atrás em relação a Fellini. Teresa de Laurentis achava o diretor muito sexista. Germaine Greer, Marguerite Willer e Gaetana Marrone acreditam que a visão do diretor em relação às mulheres é mais complexa do que parece (1). É muito fácil criticar o que um homem diz a respeito das mulheres; resta saber até que ponto as mulheres (ainda) acreditam que criticar e submeter homens é o suficiente – no mundo dos homens isso seria classificado apenas como comportamento vingativo. Não podemos esquecer que Fellini foi um cineasta comprometido com o mundo das imagens. (acima, Volpina, a ninfomaníaca de Amarcord)



Numa época de bórdéis administrados por Mussolini, 
é justo que o tio de Titta (no manicômio) 
também queira uma mulher


As análises que se fizer a respeito de seus filmes deveram procurar na estrutura visual das seqüências, e não apenas nos textos dos diálogos, algo daquilo que talvez ele estivesse querendo dizer. Não perceber que a preocupação de Fellini era falar através das imagens leva a equívocos na compreensão de suas reais intenções. De resto, essa é uma incapacidade muito comum em nossa sociedade, uma verborragia que cala mais do que dá ouvido (e olhos) à multiplicidade dos discursos. O que não deixa de ser uma constatação curiosa, já que vivemos na tão amada/odiada era das imagens. (imagem acima, em Amarcord, o tio de Titta sobe numa árvore e grita pedindo mulher)



Gradisca é mais uma no grande exército das mulheres escravizadas pelo fetiche do homem fardado


Se tomarmos a questão da sexualidade, por exemplo, encontramos mulheres que correspondem aos extremos de comportamento, do licencioso ao casto. E muitas vezes num mesmo personagem, como a prostituta de As Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957), que representa ao mesmo tempo os arquétipos da santa e da decaída que vende o corpo. Dentre os vários exemplos que poderíamos tomar, vejamos o que podemos encontrar em Amarcord (1973) e A Estrada da Vida (La Strada, 1954). Vários filmes de Fellini fazem referências a uma repressão sexual engendrada pelo Fascismo das décadas de 30 e 40 do século 20 na Itália. Em Amarcord, Gradisca é a mulher que melhor representa uma subserviência feminina à pseudovirilidade do homem uniformizado. Só pelo fato de ver o federale desfilando aos pulos pelas ruas da cidade, ela ficava excitada e fora de controle (acima, vestida de vermelho, Gradisca não se contém de excitação na presença de uma farda).



Comparado ao fetiche irracional das italianas 
em relação à Mussolini e seus pavões fardados, Hitler
foi pouco mais  que  invisível  para  as  alemãs


Consta que, na época em que reinou o regime fascista, as mulheres que assistiam aos discursos de Mussolini deixavam roupas íntimas pelo chão das praças como demonstração de sua excitação sexual. Consta também que muitos homens freqüentavam essas reuniões de massa não para ouvir seu líder, mas para encontrar mulheres sexualmente excitadas e, portanto, possivelmente receptivas ao assédio. “Gradisca responde [à visita do líder fascista] exatamente como uma mulher responderia a um amante” (2). Noutra seqüência de Amarcord, quando a cidade se junta para demonstrar sua imaturidade coletiva, Gradisca fica quase histérica em seu desejo de alcançar Rex (o transatlântico de Mussolini) quanto ficou para tocar o federale (imagem acima). Em mais uma sequência podemos ver Gradisca sexualmente excitada, desta vez com os mitos superficiais produzidos pelo cinema.



O transe de Gradisca com o cinema é uma metáfora
da ingenuidade com que nos rendemos aos manipuladores e suas máscaras


Sozinha na sala de projeção, ela está tão absorvida na imagem do ator norte-americano Gary Cooper em Beau Geste, que não percebe a aproximação de Titta. Quando ele coloca a mão na perna dela, Gradisca acorda do transe, apenas para perguntar friamente ao rapaz se ele perdeu algo (imagem acima). Fellini acreditava que o mecanismo que atraiu Gradisca para Gary Cooper é o mesmo que atraiu a cidade para a visita do federale, ou para ver a passagem do Rex (3). A seqüência mais famosa envolvendo Gradisca é aquela em que ela é levada ao Grand Hotel para “dormir” com um príncipe (sempre o fetiche da farda), na suposição de que isso fará com que ele libere verbas para o porto da cidade. Quando convida o tal para a cama, ela oferece seu corpo com a palavra “Gradisca” (significando, “por favor”, ou “sirva-se”).



Para o exército de escravos do fetiche dos seios, 
Titta repete o que Fellini já havia mostrado 
em As Tentações do Dr. Antônio


As gordas também têm vez com Fellini, ainda que seja para evidenciar uma libido distorcida. Titta protagoniza a hilária cena na tabacaria. Lá ele encontra uma mulher enorme, que o desafia a levantá-la. Na segunda levantada ela entra no estado de excitação sexual, oferecendo os seios e apertando o rosto de Titta contra eles. Tão de repente como começou, a mulher deixa de sentir vontade e larga o rapaz, que já estava quase sufocando. Dirigindo-se a ele como se nada tivesse acontecido, a mulher demonstra como a repressão sexual pode nos levar a comportamentos desconexos em questão de minutos. O tio de Titta protagoniza outro exemplo dos problemas da repressão sexual. Ele já está no asilo quando um dia a família aparece para levá-lo para passear. Então ele sobre numa árvore e começa a gritar que quer uma mulher. A única pessoa que consegue tirá-lo de lá é uma freira anã. O desejo do tio de Titta pode ser estendido a toda população masculina de Amarcord, enquanto a freira representa a repressão sexual patrocinada pela Igreja.

Chaplin de Saias


“O que eu estou fazendo nesse mundo?”

Gelsomina em A Estrada da Vida


Além de Chaplin, o personagem de histórias em quadrinhos Happy Hooligan também é um dos elementos na composição de Gelsomina. Em A Estrada da Vida, ela foi vendida pela mãe ao artista mambembe Zampanò e não parece ter vida sexual. Com exceção de um momento posterior em que ele simplesmente reivindica seus direitos sobre o corpo dela, o filme não mostra mais do que uma sequência relacionada à vida sexual do casal – ele a enxota para dentro do veículo e transa com ela. Ele a trata como simples objeto, pegando prostitutas (que também são objetos para ele) na frente dela sem a menor cerimônia.



Gelsomina,  um  objeto  frágil.   Meio   louca
 e meio santa, ela não parece ter vida sexual...


Quando a mãe avisa que Gelsomina não sabe nada, Zampanò diz que não tem problema, porque é capaz de ensinar coisas até aos cachorros. Sua mãe a descreve ao comprador como “um pouco estranha”, “não como as outras garotas”. O próprio Fellini a descreveu como meio louca e meio santa: um palhaço franzino, engraçado, desajeitado e muito sensível. A incapacidade de Gelsomina no mundo racional é compensada por uma capacidade de comunicação com a natureza, crianças e objetos inanimados. Ela pode sentir a chuva que se aproxima e escutar o som das linhas de telégrafo. Quando avista um tronco de árvore, ela imita o ângulo de seu único galho com seus braços. Quando visita um menino muito deformado, apenas ela é capaz e compreender a natureza de seu sofrimento e solidão. Gelsomina possui uma simplicidade franciscana e uma pureza infantil de espírito, o que a torna o personagem ideal para as ruminações fellinianas a respeito da pobreza espiritual (4).



...A não ser quando Zampanò reivindica
seus  direitos  sobre  o  corpo  dela!


Fellini sugere as implicações religiosas de Gelsomina em várias sequências do filme. Numa delas, durante uma procissão na cidade, Gelsomina encosta numa parede com um cartaz em que se lê “Madonna Imaculada” (acima). Sua função no filme é ser o veículo pelo qual Zampanò, seu bruto dono, aprenderá a sentir um mínimo de emoção – ser capaz de sentir emoção é o que define ser humano para Fellini. Essa é uma das conclusões possíveis para o objetivo deste filme: a salvação pela conversão; da praia (no começo do filme) onde Zampanò compra uma mulher, à praia (no fim do filme) onde ele percebe que não a terá nunca mais, ele reconhece em si sentimentos que não tinha antes. Gelsomina se caracteriza por muitos elementos cristãos e especificamente católicos, mas Fellini utiliza tais noções apartadas de seus correlatos institucionalizados. Ou seja, Gelsomina faz o que faz sem referir-se à instituição da Igreja. Se ela é uma santa, é do tipo secular – ela declina o oferecimento para morar em um convento. Aliás, Gelsomina poderia ser descrita como uma versão palhaça da Virgem Maria.



Zampanò é com um cão. Para dizer que
gosta  de  alguém,  ele só consegue latir


Quando Zampanò arruma emprego num circo, Gelsomina conhece outro personagem do filme, o Bufão – que vive brigando com Zampanò. Outro dos momentos em que a religião aflora em torno de Gelsomina é quando ela está decidindo se abandona seu dono e o Bufão fala sobre a parábola das pedras. Em certa altura ela desabafa,“o que estou fazendo nesse mundo?“ Em seguida, pergunta ao Bufão se Zampanò gosta dela. “Porque não?, ele responde, [Zampanò] é como um cão. Fica olhando para você, tentando falar, mas só consegue latir”. Então o Bufão conta a história da pedra. Ele a convence de que sua existência tem algum motivo, porque mesmo uma pedra tem um significado no universo, mesmo que seja misterioso: “Eu não sei a qual propósito serve esta pedra, mas deve servir a algum propósito. Porque se ela não tem função, então nada tem função”. Como a parábola do Bufão vai da pedra às estrelas, seu ensinamento sugere que a mente humana, mesmo a de Gelsomina, não precisa estar aprisionada ao mundo imediato das coisas materiais (5).



A gente deve servir para alguma coisa!


Em seguida temos outra sequência altamente poética, quando o Bufão apresenta à Gelsomina aquele que será seu tema musical no filme. Ele toca a melodia num pequeno violino. Ela ensaia em seu trompete e o repete até sua morte. Muito tempo depois de Zampanò ter abandonado Gelsomina, ele escuta uma lavadeira cantando a mesma melodia. É então que ele descobre que ela havia morrido. O mesmo tema musical é agora ouvido na cena final, quando Zampanò aprende (talvez) a lição que a vida de Gelsomina representava: que o amor pode tocar mesmo os corações mais duros, mesmo o seu (6). Assim, um tema musical passa do Bufão para Gelsomina e então para Zampanò. Que imagem mais poética e igualmente mais clara e objetiva se poderia usar para traduzir um ser humano que uma melodia? Uma paisagem sonora que traduz em poucas notas a descrição daquilo que caracteriza o humano: a emoção. (abaixo, Zampanò com uma prostituta na frente de Gelsomina)


 
Zampanò   reage   às   mulheres  com  a  postura
machista que algumas delas esperam e aprovam


Enquanto personagem que encarna as imagens poéticas que Fellini cria, Gelsomina é uma figura ambígua. Tanto ela quanto Zampanò e o Bufão são personagens típicos da commedia dell’ arte. No caso específico de Gelsomina, o fato de utilizar maquiagem de palhaço no rosto até aumenta a expressividade de suas expressões faciais. Fellini pode assim poeticamente sugerir que as pessoas normalmente usam máscaras e muitas vezes disfarçam suas reais emoções. E neste filme Fellini fez da música um elemento de tradução poética do mundo para Gelsomina. Na primeira vez que Gelsomina decide abandonar Zampanò, nós a encontramos numa estrada deserta sem rumo. De repente, um grupo de três músicos passa por ela tocando seus instrumentos. Nessa tomada Fellini desejaria mostrar sua convicção de que os começos acontecem como mágica e que a estrada de Gelsomina terá sempre uma destinação possível (7). Gelsomina acaba seguindo os músicos, que seguem para uma cidade e se juntam a uma grande procissão religiosa. É nessa hora que ela encosta-se à parede que tem cartaz dizendo, “Imaculada Madonna”. É aí que ela encontra o Bufão pela primeira vez, ele é um malabarista numa corda bamba.


 
A conexão de Gelsomina com a vida é algo
que Zampanò só conseguirá captar
quando for tarde demais


Uma das sequências mais celebradas de A Estrada da Vida é a aparição de um cavalo fantasma. Zampanò e Gelsomina vão jantar após uma bem sucedida apresentação. Lá pelas tantas, na frente dela, Zampanò convida uma prostituta para sentar à mesa. Em seguida, ele sai com ela e ordena que Gelsomina o espere na calçada - no dia seguinte pela manhã ela ainda estará lá. De repente, durante a madrugada, escutamos os passos de um cavalo. Ele passa por ela, que está sentada e só, física e emocionalmente. Esse cavalo surge sem nenhuma explicação, como os músicos que ela seguiu até a cidade. Primeiro ouvimos o som do cavalo, então ele aparece e sua sombra passa sobre Gelsomina, que o acompanha com o olhar (imagem abaixo). É uma sequência de profunda melancolia e solidão, que Fellini consegue transmitir sem o uso de diálogos supérfluos. Aliás, é o que Fellini quer dizer quando afirma, “eu não quero demonstrar nada: eu quero mostrar” (8).



 Fellini mostrou que o cinema  não  precisa 
de palavras para descrever a alma humana


Leia também:

As Mulheres de Federico Fellini (IV), (VI)
As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (IV)

Notas:

1. BONDANELLA, Peter; DEGLI-ESPOSTI, Cristina. Perspectives on Federico Fellini. New York: Macmillan Intl., 1993.
2.
BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. P. 132.
3. Idem, p. 134.
4. Ibidem, pp. 55-6.
5. Ibidem, pp. 56-7.
6. Ibidem, p. 58.
7. Ibidem, p. 59.
8. Ibidem, p. 54.