13 de abr. de 2009

Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (IV)

O Eclipse 



  “Eu estava em Florença filmando um eclipse solar. Havia um
silêncio  diferente  de  todos  os  outros  silêncios, luz  pálida, e depois
escuridão  silêncio total. Imaginei que durante um eclipse até nossos
 sentimentos  param. Daí surge parte da idéia para O Eclipse

Michelangelo Antonioni (1)

A Narrativa

O Eclipse (L’eclisse, 1962) começa aonde A Noite (La Notte, 1961) terminou, no dia seguinte. A Noite termina ao amanhecer numa dolorosa separação, O Eclipse começa ao amanhecer por outra separação (2). Riccardo, um intelectual quarentão, e Vittoria, com uns 25 anos, discutiram por toda a noite. Os dois estão mudos como naquele momento em que não há mais forças para argumentar. Se prestarmos muita atenção, podemos ouvir o som do ventilador preenchendo todo o espaço vazio entre os dois. Vittoria posiciona alguns objetos como se estivessem num palco - visualizando-os através de uma moldura vazia (imagem acima). Por que parece tão difícil percebermos nossas próprias posições na comédia humana?



“Estou cansada... deprimida. Chateada e desorientada
           (...) Há dias em que ter na mão um tecido, um livro, 
um  homem,  é  a  mesma  coisa”

Vittoria sobre a discussão com Riccardo


Ela retira um cinzeiro cheio de marcas da presença humana e coloca no centro do “palco” uma escultura abstrata – cujo significado é muito mais dependente da imaginação. Vittoria levanta os olhos e os pousa numa pintura em estilo naif – pinturas figurativas em estilo dito ingênuo, primitivo, sem técnica apurada. Entre a perda do sentido e um sentido ingênuo, Vittoria continua na mira do olhar de Riccardo. Agora ela abre a cortina e vemos o reflexo de seu rosto na janela; lá fora, a natureza. Após algumas tentativas de diálogo, Vittoria abre a cortina de outra janela e somos apresentados a um prédio em forma de cogumelo. O casal volta a conversar, o cogumelo entre eles. Mas aquela relação não tinha mais futuro.



“Quando nos encontramos eu tinha vinte anos. Eu era feliz”

Vittoria para Riccardo


Vittoria vai em busca da mãe, que está fazendo aplicações na Bolsa de Valores. Ali conhecerá Piero, um corretor da Bolsa que parece se entender melhor com a mãe dela (imagem abaixo; imagem acima, Riccardo). Numa cena antológica, pede-se um minuto de silêncio. Antonioni nos deixa assistindo durante um minuto completo aquele silêncio dos corretores coberto pelo canto frenético dos telefones. Entretanto, o hiperativo Piero rompe o silêncio e sussurra para Vittoria: “um minuto aqui custa bilhões”. Embora não venham a construir uma relação, é com ele que Vittoria atravessará o filme, desaparecendo no final.




"Enquanto houve amor, houve  entendimento...
Nada havia a entender"


Vittoria responde
à Piero, ele quer saber
se ela se entendia com
o namorado anterior




O Eclipse e o Dinheiro

Vittoria é
mais adulta que 
Cláudia (A Aventura),
menos problemática
que Valentina (A Noite),
mas, como elas, vive
frustrada com os
sentimentos
(3)



Vittoria não sente a mesma necessidade da mãe por dinheiro, embora compreenda o ponto de vista de sua mãe. O mundo dos homens, seja por suas atitudes nos relacionamentos (Riccardo) ou no mundo do mercado de capitais (Piero), parece algo muito confuso e distante. Entretanto, geralmente é dela que se diz isso. A sociedade espera que Vittoria se case, mas ela só consegue dizer, “não sei, não sei, não sei”. Ao descrevê-la, Antonioni disse que “(...) é uma garota calma, centrada, que pensa sobre o que está fazendo. Não há absolutamente nenhum sintoma de neurose nela. Em O Eclipse, a crise tem a ver com emoções” (4).



Ítalo Calvino descreve Vittoria como alguém que se abandona àquilo que a realidade lhe apresenta sem fazer previsões ou se programar: “(...) Viver em seu ritmo, olhar o mundo com olhos diferentes, até mesmo tornar-se puro olhar, eis o que deseja Vittoria”. De acordo com Calvino, as mulheres protagonistas da Trilogia da Incomunicabilidade procuram escapar dos esquemas da vida dos homens (da Trilogia):

“(...) O passeio de Lídia em A Noite, destinado a reencontrar uma verdade comprometida pelos cocktails literários, torna-se um método de vida para Vittoria e o tema principal de sua história [...]. Em O Eclipse, o propósito de Antonioni com as mulheres depositárias de uma verdade em oposição interna em relação à civilização contemporânea torna-se ainda mais claras e decisivas [...]. À engrenagem que tritura os homens que correm atrás de dinheiro e prestígio, ao ritmo da acumulação e do consumo, elas opõem seu [caráter lúdico] [...]. Numa situação social e cultural que não as satisfaz, as mulheres de Antonioni procuram agir mais a seu modo, para além de programas e esquemas” (5)



 “Eu nunca falei sobre uma trilogia, muito menos sobre alienação. 
Eu não quero dizer que essas classificações não fazem sentido. Entretanto, 
existem quatro,  não  três,  de meus filmes que tocam neste mesmo  tópico. 
O Deserto Vermelho  também  trata de uma  crise existencial”   (6)
 
O encontro de Vittoria com Piero não se transformará em amor, eles são muito diferentes. Ela quer compreender a si mesma e a vida antes de agir (o que implica certa imobilidade em sua vida), enquanto ele só age. “Por que mudar?”, Piero responde à Vittoria quando ela questiona seu estilo de vida. Ela também se impressiona com a reação de Piero ao encontrarem seu carro mergulhado no lago. Havia sido roubado na noite anterior por um bêbado, que agora está morto dentro do carro. Mas Piero só se importa com a possibilidade de poder reformar e vender o automóvel.

Na Bolsa de Valores, a mãe de Vittoria só pensa em dinheiro, culpando os socialistas ou o governo por qualquer queda nas cotações. Vittoria sabe que a mãe não quer voltar a ser pobre. Digno de nota nesta seqüência é a postura calma e indiferença dos funcionários da Bolsa que ficam no centro do salão, cercados pelos enlouquecidos funcionários da bolsa. Antonioni foi criticado por só mostrar a burguesia, mas ele dizia que só podia mostrar o que conheceu - o que incluía deixar claro que a burguesia não consegue resolver suas contradições. De qualquer forma, em O Grito (Il Grido, 1957) já nos havia apresentado Aldo, um proletário em crise existencial (o que, da mesma forma, gerou críticas da esquerda). Sobre a mãe de Vittoria, não consta que a crítica tenha feito comentários.


Essa mãe é fruto dos anos do Milagre Econômico italiano. Embora pague o preço de viver só para as cotações da Bolsa de Valores, ela ainda estaria na favela ou no interior rural se não fossem as tentativas (discutíveis ou não) dos sucessivos governos em reerguer a indústria do país e distribuir a renda. Numa entrevista publicada em 1979, Antonioni esclarece que, “em O Eclipse, o dinheiro é visto do ponto de vista daqueles que não tem nenhum, enquanto em A Noite tudo acontece independentemente do dinheiro. Se eu tivesse que filmar O Eclipse hoje, eu o teria feito bem mais áspero” (7). (imagem ao lado, Piero em ação)



Piero, assim como os outros personagens masculinos em A Aventura e A Noite, é muito carnal e com pouco talento para sentimentos reais. Corretor da Bolsa, com seus valores mercenários, sua falta de interesse nos seres humanos e seu sexismo, ele se torna uma figura indigesta. Interessado pelos seios de Vittoria, ele tem uma caneta com a imagem de mulher, que fica nua quando colocada na posição de escrita. A Bolsa de Valores é um comentário sobre como a vida se tornou abstrata. Não por acaso, depois de presenciar uma quebra da Bolsa, Vittoria pergunta a Piero para onde todo o dinheiro vai quando algo assim acontece. Ele não sabe responder (8).

O Eclipse Africano 


Em O Eclipse, o passado é sempre colocado como um elemento irrelevante pelos personagens. Velhas igrejas aparecem de relance aqui e ali, mas, apesar de preconceituosa, existe uma exceção. Trata-se da seqüência em que Vittoria se junta com Anita para visitar Marta, que vive na África. Vittoria até se veste como uma guerreira africana de estórias em quadrinhos e começa a dançar. Sem esquecer a grotesca mesa feita com o pé de um elefante no meio da sala. Essa África clichê, saída diretamente do passado colonial europeu, e italiano em particular, faz um contraponto com uma referência coberta de medo à África atual.



Antecipando questões sobre a representação visual levantadas em Depois Daquele Beijo (Blow Up, 1966), Antonioni ocupa bastante tempo desta seqüência filmando as fotografias da África. O cineasta parece querer nos indicar o papel da imagem tanto na introdução do exótico na cultura Ocidental quanto em sua elaboração (9). Antonioni já nos havia indicado a relação da sociedade italiana com a negritude em A Noite, quando Lídia e Giovanni assistem a um casal de malabaristas negros numa boate. Enquanto a mulher equilibra um copo cheio e se contorce, o homem, cheio de músculos, parece uma estátua que se move.



Nesta seqüência encontramos uma Vittoria sorridente enquanto dança pintada de preto e com roupas africanas típicas. Seria apenas alegria ou Antonioni fez a personagem mostrar os dentes para acentuar a comicidade do clichê? Afinal, Ela acha que são todos felizes! No exotismo distorcido de uma África idealizada, Vittoria até acredita que os africanos são mais felizes do que os europeus – entenda-se do que a sociedade moderna. Segundo ela, eles estão bem lá porque não pensam na felicidade, então as coisas “se arrumam”. Enquanto aqui, ao contrário, há um grande cansaço, também no amor (10).



Na década de 60, portanto contemporaneamente a O Eclipse, a África vivia uma fase de descolonização. Os países africanos, entretanto, se formavam em grande parte seguindo as fronteiras anteriormente demarcadas pelo colonizado europeu. Marta é parte desse contingente europeu que vive lá, mas vê os africanos como um problema. Ela não mostrou interesse nem mesmo pelos animais, seu comentário a respeito deles os toma apenas como caça (o elefante cujo pé virou uma mesa) ou praga (os hipopótamos mortos por comerem o pasto de seus bois). Ela parece não perceber que o problema eram os europeus. O comentário racista de Marta dá bem a dimensão do problema. Para ela, todos os negros são macacos que acabaram de descer das árvores! Antonioni voltará a mostrar a África em Profissão Repórter (Professione: Repórter, 1975), mas por um outro ângulo (11).

A Seqüência Final e o Vazio Cheio


“A  história  do  cinema  é  feita  por  filmes,  não pelas palavras de seus diretores. Muitas vezes as entrevistas
tornam
-se pretextos para discursos desagradáveis”   (12)

Michelangelo Antonioni


Vittoria e Piero estão no apartamento dele após um passeio aonde ele chegou a pedir que ela parasse de responder à suas perguntas com mais um “não sei!”. Depois de muitos sorrisos e brincadeiras, Piero recoloca seus telefones no gancho, mas não atende nenhum deles, que tocam ininterruptamente – é a última vez que o vemos. Vittoria desce a escada pensativa, num clima bem diferente do que acompanhamos minutos antes, mas que já se poderia antecipar na despedida do casal na porta do apartamento. Ela desce as escadas, e para diante da grade de um comércio, vira-se para o outro lado da rua e a câmera acompanha seu olhar, que sobe em direção ao topo de uma árvore - é a última vez que a vemos.



Por que não faria sentido concluir que essas imagens remetem
apenas ao que se vê? Talvez porque a dita sociedade da imagem não
consegue pensar por imagem,  só  por  lugares comuns (clichês)


O casal marcou um encontro às 8 horas, “no lugar de sempre”. Ninguém aparece, a não ser o próprio local do encontro. Na seqüência final, somem personagens, diálogos e narrativa. Em A Aventura e A Noite, os personagens são elementos gráficos visíveis, além de representarem seres humanos. No final de O Eclipse, desaparecem completamente. Talvez o desaparecimento de Anna, no primeiro filme, fosse uma prévia do final do terceiro. Piero e Vittoria desaparecem, mas não o campo moral e ético que recobre as relações humanas, que até se fortalece na ausência do casal. Brunette sugere que Antonioni precisava de personagens para nos envolver num nível emocional, mas a resolução artística e moral, pelo menos neste filme, só poderia ser alcançada em termos abstratos (13).



Nós estamos tão
cegos  para  a  vida
ao  nosso  re
dor,   que preferimos   acreditar
 que  ela  representa
outro   mundo



O caráter vago da seqüência final guarda uma relação com o mistério da própria realidade. Mostra a falência da utilização de signos (aquilo que está no lugar de outra coisa) para mapear a realidade. Nesse ponto, Brunette cita as palavras de Giorgio Tizzani sobre o polêmico fim de O Eclipse. Este final “mostraria a perda do signo, sua crise em termos de sua referência a algo [que ele representa]. Por essa razão, eu seria muito cuidadoso ao atribuir sentidos simbólicos – que poderiam parecer muito óbvios – a tais fragmentos perceptíveis” (14). Isso quer dizer que nessa seqüência as coisas se recusam a representar ou apontar para algo, ou para um significado fora delas.



Supor que
essas imagens
só  podem  significar

outra coisa qualquer
é  simplificar

demais




Não há um significado fixo possível se concluímos que ser é estar no mundo. Talvez esta seja a intenção de Antonioni, nos dar uma âncora (os personagens) para em seguida nos deixar à deriva (sem âncora). Tudo passa a depender de um ponto de vista, de nosso ponto de vista. Não é a narrativa que irá nos dar esse ponto de vista, mas nossa própria vivência. Nós ficamos esperando que os personagens apareçam para que possamos focar a situação. Sentido e emoção ainda se encaixam mesmo na falta do casal. O inumano do concreto e asfalto continua recebendo um sentido humano.



Segundo
Antonio
ni,
não existe nada
 
de  abstrato  na 
seqüência final 
de O Eclipse




De acordo com Brunette, este sentido nos chega tanto através de metonímia (quando nos lembramos de Piero e Vittoria perto deste ou daquele lugar) quanto através da natureza abstrata e gráfica das formas daquilo que vemos. Entretanto, o próprio Antonioni negou essa leitura “abstrata” da seqüência final: “os 7 minutos foram chamados de abstratos, mas realmente não é assim. Todos os objetos que eu mostro têm significação. Esses são 7 minutos onde apenas os objetos restam da aventura; a cidade, a vida material, devorou os seres humanos” (15).



Para aqueles
que conseguem "ver"
as imagens escolhidas
por Antonioni
, o vazio
está  repleto  de
pr
esenças




Brunette vai insistir que Antonioni estava se referindo em termos de significação da narrativa. Isso não impediria que um sentido abstrato emocional e intelectual pudesse existir na mesma imagem. Segundo Geoffrey Nowell-Smith, o problema de Antonioni é que ele tinha “horror de correspondências simbólicas óbvias”. O cineasta seria capaz de eliminar uma cena caso concluí-se que ela seria tomada como um símbolo do final do caso entre Vittoria e Piero. Como Pascal Bonitzer sugeriu, o vazio em Antonioni é cheio de presenças. (imagem ao lado, percebe-se também uma simetria entre as imagens finais dos três filmes)




“Uma vez que o cinema, como o inconsciente, não conhece a negação, o vazio em Antonioni existe positivamente; ele é assombrado pela presença. Não existe momento mais maravilhoso num filme de Antonioni (e cada um parece estruturado para chegar a este fim) do que aquele onde os personagens, seus seres humanos, são cancelados, apenas para deixar para trás, assim parece, um espaço sem atributos, um espaço puro... Espaço vazio não é vácuo: cheio de neblinas, de rostos passageiros, de presenças evanescentes ou movimentos aleatórios, esse espaço representa aquele ponto final de ser finalmente libertado da negatividade de intenções, de paixões, da existência humana” (16)


Leia também:


 Notas:

1. ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 196.
2. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. P. 237.
3. Idem, p. 241.
4. ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 289.
5. TASSONE, Aldo. Op. Cit., pp. 241-2.
6. ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 202.
7. Idem, p. 199.
8. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. Pp. 82-3.
9. Idem, p. 168n16.
10. Tiago Mata Machado questionou a tradução do filme feita no Brasil – mostramos seu ponto de vista em Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (I) (arquivo de fevereiro de 2008). Segundo ele, a frase “tudo é muito trabalhoso, [até] o amor”, deveria ser substituída por: “aqui, há um grande cansaço, inclusive no amor”. Partindo da frase de Vittoria em italiano (“Qui invece e tutto una grande fatìca, anche a l’amore”), decidimos seguir um terceiro caminho: “aqui, ao contrário, há um grande cansaço, também no amor”. O argumento de Machado está disponível em:
http://www.italiaoggi.com.br/not04_0605/ital_not20050605a.htm Acessado em: 11/04/2009. A cena acontece aos 37:02.
11. BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 85.
12. ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 200.
13. BRUNETTE, Peter. Op. Cit, p. 87.
14. Idem, 88.
15. Ibidem.
16. Ibidem, p. 89. Confira mais sobre a opinião de Bonitzer em Antonioni e o Vazio Pleno.