30 de jun. de 2010

Zurlini, Ilustre Desconhecido






Através de

 A     Moça     com
a     Valise    Claudia
Cardinale alcança
o estrelato

Millicent
Marcus (1)





Zurlini Quem?

Embora o nome de Valerio Zurlini seja respeitado, raramente se encontram referências a sua obra. Muitos (e muitos) livros sobre cinema italiano sequer citam seu nome numa pequena nota de pé de página (imagem acima, A Moça com a Valise; as duas próximas imagens, O Deserto dos Tártaros). A razão por que certas pessoas são relegadas ao ostracismo é variada, por enquanto não é possível saber por que motivo a literatura especializada em cinema italiano demonstra completa ignorância em relação ao cineasta. Quais fatores facilitaram o desinteresse em torno de sua figura, mas enalteceram a obra infinitamente mais hermética de Michelangelo Antonioni, é algo que dá o que pensar. Na falta de maiores esclarecimentos, limitamo-nos a perguntar qual é a posição de Zurlini no cinema italiano?






O   jeito   extrovertido
de    Zurlini    escondia    um
pessimismo     profundo.   Um
mal-estar existencial que se refletia em seus filmes

Piero Schivazappa,
Assistente de direção em
A Moça com a Valise (2)




Apesar de existir certa concordância em considerar Zurlini um autor, ele mesmo não se via como tal. Desdenhosamente, o cineasta afirmou que “o ’68 cria o filme de autor. Péssimo, porque faz o autor acreditar ser mais importante do que as coisas que disse. Faz o autor acreditar ser mais importante do que aqueles que o escutam” (3). Por aí, poderíamos concluir que Zurlini cumprira seu destino, ainda que com certa dificuldade a obra dele venha sendo redescoberta, pouco se sabe sobre seu processo de criação (4). Zurlini se via mais como um artesão, no sentido nobre da palavra:






O
elogio que mais
 apreciava é aquele  de

 haver    feito    sempre
mesmo  filme (5)







Giacomo Manzoli chama atenção para o fato de que o conceito de autor possuía já uma conceituação especial na Itália, antes de 1968. Ele aceita a afirmação de Zurlini quando consideramos o ano de 1968 como uma categoria do espírito, um espírito jovem e revolucionário. O mesmo espírito, Manzoli sugere, surge no cinema com a Nouvelle Vague, quando o conceito de autor adquire uma acepção distinta. Entretanto, Manzoli chama atenção, ele se refere a uma “Nouvelle Vague italiana”. Uma definição que se deve utilizar com cuidado, que se refere a um fio que liga personalidades muito diversas e cujo denominador comum seria apenas a tentativa de afirmar um cinema pessoal durante um período de transformação radical. Lino Micciché enfatiza apenas os aspectos econômicos e de produção dessa nova onda (6). (imagem abaixo, à direita, enquanto Pietro Di Bernardi era entrevistado, ao passear pela sua sala a câmera encontrou esta placa conquistada por ele, que dá a dimensão da importância de Zurlini - pelo menos enquanto estava vivo)




Chegaram
a incluir Valerio Zurlini
numa  Nouvelle  Vague
italiana





Manzoli esclarece que a “Nouvelle Vague italiana” é citada em livro de Gian Piero Brunetta sobre a história do cinema italiano. Brunetta reunir sob essa bandeira autores que se viam como “proprietários” dos filmes que dirigiram. Gente que dava as costas à tirania do mercado, além de uma série de recorrências temáticas e estilística. Zurlini continuava fiel a sua postura “artesanal”, mas de forma algum era indiferente ao êxito comercial de seus filmes. Embora seus filmes tenham uma clara intenção de contar uma estória linear, as soluções formais de seu cinema remetem ao horizonte da Nouvelle Vague propriamente dita. Certamente, o cineasta foi incluído nessa lista porque seus longas-metragens situam-se no período a partir de 1959 (com a exceção de Quando o Amor é Mentira, Le Ragazze di San Frediano, 1954, que Manzoli considera um episódio particular), porque das inquietações que refletem o espírito do tempo, porque fala de sentimentos e de amor louco, porque reflete sobre alguns signos da modernidade de então (o amor pelo jazz e muito mais...). A crítica da época oscilava de forma ambígua entre considerar Zurlini um homem do Cinema Novo e da continuidade. Mesmo assim, Manzoli ainda está cético quanto a incluir Zurlini na lista de Brunetta, que conta com nomes que são símbolo de ruptura e rebelião, como Pier Paolo Pasolini (7).

 

Pasolini Onde?

Em   A   Primeira   Noite
de   Tranqüilidade,   Zurlini
vestiu com seu próprio casaco
a  personagem  de  Alain Delon.
Em seu Édipo Rei, Pasolini teria
vestido    a     personagem     de
Silvana      Mangano      com
roupas        semelhantes
às    da    mãe    dele (8)


Manzoli enfatiza que basta uma visão superficial para perceber que é difícil imaginar dois autores mais distantes do que Zurlini e Pasolini. Deste que seria, na opinião de Brunetta e de Lino Micciché, o maior expoente dessa nova onda, Zurlini guarda apenas algumas semelhanças, além de uma amizade. Para além das coincidências de caráter pessoal elencadas por Manzoli, o que nos pode interessar é o profundo conhecimento de ambos em relação a historia da arte. Incluíam muitas citações pictóricas os seus filmes, através das quais se pode perceber a admiração comum em relação à Piero della Francesca. Houve inclusive uma colaboração entre ambos, embora o único registro sejam as palavras de Zurlini, pois não há documento que ateste o fato. É que Pasolini foi indicado pelo produtor Carlo Ponti para fazer modificações no primeiro roteiro de A Moça com a Valise (La Ragazza con la Valigia, 1961). Consta que Ponti desejava adaptar o roteiro para que valorizasse Sophia Loren. Mas a colaboração durou pouco e, por conselho do próprio Pasolini, voltou-se ao ponto inicial do roteiro – não restando nenhum traço de sua participação. Cláudia Cardinale atuou no papel da personagem principal (9). (imagem acima, A Primeira noite de Tranquilidade)



Zurlini era visto como
o cineasta da paisagem (das
cidades  e  da  alma). Primeiro
filmava a paisagem
, só então surgem os personagens

Célia Regina Cavalheiro (10)



Zurlini e Pasolini tiveram como projeto um filme sobre São Paulo, que não se realizou. Zurlini também deveria participar da obra conjunta (ou filme em capítulos) Amor e Raiva (Amore e Rabbia, 1969), que contou com Carlo Lizzani, Bernardo Bertolucci, Pasolini, Jean-Luc Godard, Marco Bellocchio. A contribuição de Zurlini cresceu demais e acabou se tornando um longa-metragem, Sentado à Sua Direita (Seduto Alla Sua Destra, 1968) (imagem acima). Um filme político que aborda os conflitos na África, um tema que interessava tanto a Zurlini quanto a Pasolini. Neste filme, admite Manzoli, encontra-se uma grande influência de Pasolini. Um filme sobre o Terceiro Mundo, ambientado na África, onde encontramos Sergio Citti, amigo de Pasolini desde sua estada nas favelas de Roma, tendo atuado em alguns de seus filmes. Manzoli ressalta que, como se não bastasse a idéia de Pasolini de aplicar ao continente negro um mito fundador da civilização ocidental em Padre Selvaggio (texto incluído em seus Escritos Corsários, 1975), e de Appunti per un’ Orestiade Africana (1970), o próprio Zurlini declarou que uma versão da estória do ladrão que morre ao lado de Cristo lhe fora sugerida desde A Ricota (La Ricotta, episódio de outro filme coletivo do qual participou Pasolini, Rogopag, 1963). Influência, Manzoli afirma, se dá à distância já que, em 1968, Pasolini estava envolvido com dois de seus filmes Teorema (1968) e Pocilga (Porcile, 1969), atípicos em sua filmografia na mesma medida que Sentado à Sua Direita o é na de Zurlini.




Os longas
-metragens de Zurlini são  adaptações de
obras literárias  e  seguem
uma ótica existencialista


Célia Regina Cavalheiro (11)






No documentário Pugilatori (1952), Zurlini teria se aproximado de uma “prosa documental pasoliniana”. O texto do roteiro, bem entendido, fala de jovens da favela que pouco tempo depois encontraremos nos filmes iniciais de Pasolini, Accattone (1961) e Mamma Roma (1962). Mas Manzoli avisa que este vínculo com Pasolini não ultrapassará Quando o Amor é Mentira. O próprio Zurlini disse que este filme é dotado de “um humor popularesco, e os meus filmes oscilam sempre sobre outra classe social: nunca mais fiz um filme popular; fiz somente filmes burgueses ou filmes aristocráticos” (12). Tal coisa, disse com razão Manzoli, escavaria um abismo intransponível entre Zurlini e Pasolini. Este poderia inclusive direcionar a Zurlini as críticas que fez ao “existencialismo provinciano de Antonioni”. (imagem acima e no final do artigo, O Deserto dos Tártaros; abaixo, à direita, A Primeira Noite de Tranqualidade)




Zurlini admitiu

que  fosse  baseado   em   si
mesmo o personagem de Alain
Delon em A Primeira Noite
 de Tranquilidade

Célia Regina Cavalheiro (13)




De acordo com Pasolini, é necessário avaliar a angústia burguesa a partir de fora, através de instrumentos de uma ideologia não-burguesa. Se não conseguimos imaginar que Zurlini pudesse abjurar sua própria origem burguesa (como Pasolini parece pretender haver conseguido) para aderir ao objeto, podemos pelo menos constatar esse fenômeno (nas palavras de Manzoli, tipicamente italiano do período) de dois amigos fazendo cinema numa mesma época. Ambos burgueses, cristãos, marxistas, pertencendo a uma mesma tendência cinematográfica, decadente enquanto expressão de um momento histórico em que o esqueleto da cultura burguesa apodrece e desmorona em grande fracasso. Dois autores que, nas palavras de Manzoli, mesmo trabalhando próximos acabam por germinar duas obras distantes anos luz entre si.





Cineasta   da   melancolia
,
Zurlini   queria   filmar   a
trajetória do ser em bus
ca
de sua própria identidade


Célia Regina Cavalheiro (14)








Leia também:

O Cinema Político de Valerio Zurlini
A Trilogia de Valerio Zurlini
Uma Fantasia Nostalgica do Paraíso
Pasolini e o Cinema de Poesia

Notas:

1. MARCUS, Millicent. Italian Film in the Shadow of Auschwitz. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 68.
2. Em entrevista nos extras de A Moça com a Valise, lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo.
3. MANZOLI, Giacomo. Zurlini, Pasolini e la Nouvelle Vague Italiana In ACHILLI, Aberto; CASADIO, Giamfranco. Elogio Della Malinconia. Il Cinema di Valerio Zurlini. Ravenna: Edizioni Girasole, 2000. P. 79.
4. Louve-se o esforço da Versátil Home Vídeo, que vem lançando no Brasil a obra do cineasta - acompanhada de extras esclarecedores, devidamente legendados. Especificamente, em A Primeira Noite de Tranqüilidade e A Moça com a Valise – ainda que nesse último, infelizmente, quando Pietro De Bernardi fala de Mulheres no Front (Le Soldatesse, 1965) as legendas se refiram a Quando o Amor é Mentira... Existem erros similares noutras entrevistas!
5. MANZOLI, Giacomo. Op. Cit.
6. Idem, p. 81.
7. Ibidem, p. 80.
8. No caso do filme de Zurlini, a referência foi o comentário de Piero de Bernardi, nos extras de A Moça com a Valise. No caso de Pasolini, Todos os Corpos de Pasolini (São Paulo: Perspectiva, 2007. P. 59), de Luis Nazário.
9. MANZOLI, Giacomo. Op. Cit., pp. 82-3.
10. Em entrevista nos extras de A Primeira Noite de Tranquilidade, lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo.
11. Idem.
12. MANZOLI, Giacomo. Op. Cit., p. 84.
13. Ver nota 10.
14. Idem.