22 de mar. de 2011

Mussolini, o Cipião Africano




“O cinema
será a arm
a
mais forte”


Benito
Mussolini





O Passado Maquiando o Presente

Públio Cornélio Cipião foi um general que comandou os exércitos de Roma durante a Segunda Guerra Púnica no século 2 a.C., derrotando o general cartaginês Aníbal na batalha de Zama - pelo feito recebeu o apelido de “o africano”. O filme épico Cipião, o Africano (Scipione l’Africano, direção Carmine Gallone, 1937) reproduz a saga do general foi produzido pelo filho de Benito Mussolini, havendo a explicita intenção de traçar um paralelo entre a defesa que Cipião fez do império romano e as pretensões colonialistas de Il Duce na África. Cipião, o Africano se apresentava como um prelúdio de algo que deveria se completar no presente vivido pelos espectadores – que estavam ou deveriam estar condicionados pelos interesses do regime fascista. Épico histórico que reconstitui um momento particular do passado imperial (que, supostamente, teria uma relação direta com a república fascista italiana), seu objetivo era projetar personalidades do cenário nacional contemporâneo a Mussolini cuja função seria abrir o caminho para um futuro inevitável. Se o ciclo de filmes em torno de homens musculosos e de retidão moral com Maciste serviram ao fascismo para legitimar o uso da força para alcançar seus objetivos, Cipião, o Africano substitui a ação da força física pela estetização da ação política (1). (imagem acima, Cipião volta para casa depois da batalha; abaixo, à direita, durante a batalha de Zama, ele dispara na frente da tropa)





A  batalha de Zama é coreografada
como  uma  monumental   exibição
de  atletismo
,   não  muito  diferente
de    demons
trações   coletivas     de
atletismo incentivadas pelo regime






Se em filmes como o épico Cabíria (direção Giovanni Pastrone, 1914), os personagens agiam pela defesa heróica de indivíduos inocentes, em Cipião, o Africano eles são líderes comprometidos com os grandes interesses da não. O atletismo do homem musculoso é substituído pela força da ação militar. Stephen Ricci afirma que esta substituição ecoa a descrição retórica do próprio regime fascista em relação a suas iniciativas cívicas em termos militares: as batalhas pelos grãos, pela lira, pelo crescimento demográfico, etc. Contando uma história sobre o Império Romano, Cipião, o Africano invoca uma herança imperial para explicar a evolução do fascismo e afirmar um destino manifesto para justificar o imperialismo italiano na África nas décadas de 20 a 40 do século XX. É assim que o expansionismo fascista no mediterrâneo reedita a luta entre Roma e Cartago pelo Mare Nostrum – latim para “nosso mar. Sendo assim, o expansionismo colonialista de Mussolini sobre a África era uma questão de “luta de vida ou morte”. (imagem abaixo, à esquerda, na saudação do povo à Cipião nota-se o padrão da saudação à Mussolini e Hitler)

Quem Não Conhece o Passado...



Levar uma
questão ao povo
é  fazer  aquilo  que
é
   melhor   para
a  nação?





De acordo com Ricci a relação entre o filme e a guerra de conquista que a Itália empreendia na África fica evidente logo na primeira cena. Somos apresentados a um tapete de corpos de soldados romanos caídos no campo de batalha de Cannae. Então um soldado se levanta e ergue o estandarte destruído sobre o campo de batalha para prometer: “Nós vingaremos Cannae!”. Ao reunir suas tropas, Cipião apresenta o mesmo estandarte ao seu exército e promete que eles irão “vingar Cannae”. Ao final da batalha de Zama, a cena inicial se inverte. Agora os cadáveres pertencem aos soldados de Cartago, enquanto o estandarte é erguido e um soldado grita: “você vingou Cannae, Aníbal foi derrotado”. Esta promessa de vingança é idêntica à que o regime fascista fez circular pouco antes da invasão italiana da Etiópia em outubro de 1935 (dois anos antes do filme): o primeiro objetivo da guerra era capturar a cidade de Adowa, local de uma desastrosa derrota dos italianos em 1896 – o regime proclamava no rádio, “nós vingaremos Adowa!”. Ricci mostra que a associação entre as duas batalhas era feita pela platéia em 1937.






Cipião,  o  Africano  invoca  a
Roma Imperial como justificação
 para   o   imperialismo    italiano, 
além de sugerir que o Fascismo
é o desenvolvimento  natural
desse passado no presente





Por sua vez, o personagem de Cipião se distingue dos políticos tradicionais romanos por seu militarismo e sua identificação com a vontade do povo. No começo do filme ele propõe que para livra Roma e a Itália de Aníbal a guerra deve ser levada ao solo africano. Os senadores romanos demonstram receio de que o general esteja usando a situação para proveito próprio. Perguntado se romperia com o senado e “levaria a questão para o povo”, Cipião responde que “fará aquilo que for melhor para a nação”. Ricci chama atenção para esta maneira de autorizar a estratégia militar através da fusão entre um nacionalismo anti-parlamentar e uma vontade democrática subjetiva (2). Imediatamente depois desta resposta, Cipião deixa o senado para ser aclamado por uma multidão. Esta fala de Cipião no senado é entremeada por comentários de gente do povo, cidadãos de várias regiões do país – um dos problemas da unificação da Itália era a profusão de dialetos, e Mussolini foi uma peça chave na implantação do idioma italiano unificado. Ao agrupar os vários grupos sociais distintos sob a mesma bandeira, Roma Imperial é apresentada como a origem do regime fascista.(imagem acima, à direita, soldado romano ergue o estandarte ao final da batalha e lembra a todos que Aníbal foi derrotado e a morte dos romanos em Cannae foi vingada)

... Está Condenado a Repeti-lo!



Desvalorizar
o inimigo é
prática
mi
lenar e o cinema se prostituiu rapidamente, assumindo esta função
em nossa sociedade
c
ontemporânea




Outra articulação entre o que supostamente acontecia no passado e o presente fascista da Itália de Mussolini, Stephen Ricci apontou na cena em que Cipião volta para casa depois da triunfal seqüência do senado e recebe as jóias da própria esposa para ajudar na guerra – e o filho do general brinca com o capacete do pai. Na idílica ordem familiar romano-fascista, a família deve se sacrificar quando os interesses da nação estão em jogo. Contudo, Ricci chama atenção de que coincidentemente a forma desse sacrifício remete diretamente a uma prática fascista da década de 30. Quando lá pelo final de 1935 o custo da guerra de conquista colonialista na Etiópia começava a abalar a economia italiana o regime passou a encorajar as mulheres a doar suas jóias – em particular, Ricci chamou atenção, as alianças de ouro. Portanto, a sugestão de Ricci é que esta seqüência de Cipião, o Africano enriquece o significado dessa prática fascista ao localizar sua suposta origem num costume que contribuiu para a glorificação da Antiga Roma. (imagem abaixo, à direita, a esposa de Cipião doando suas jóias para o esforço de guerra)



Para garantir que
a massa “entenda as
instru
ções corretamente”,
sempre existe um político
para demonstrar que
os fins justificam
certos os meios




Ricci deixa claro que essa associação entre a Antiga Roma e o fascismo não é abstrata. Em 1939, o Ministro das Corporações (uma espécie de Câmara dos Deputados) Giuseppe Bottai (que também foi Ministro da Educação, 1936-1943) escreveu: “O herói se torna o espantalho para outro herói, que reclama o direito de progenitura; e, na realidade, é esse segundo que chama nossa atenção e dissolve o primeiro. Cipião, para as crianças, não é o herói romano, mas Mussolini. As ações de Cipião, em virtude de sua transposição, evocam as ações de Mussolini. A analogia se torna identidade” (3). Esta declaração, conclui Ricci, é nada menos do que uma instrução de uso, onde o Estado demonstra a forma “correta” de entender o esquema representacional de Cipião, o Africano. Durante todo o filme Aníbal é contrastado a Cipião, da mesma forma os soldados cartagineses e os romanos. Ao contrário dos primeiros, estes são organizados e disciplinados. Os africanos são apresentados como uma massa assalariada individualista e desordenada, enquanto os romanos são cidadãos altruístas de uma nação hierarquizada. (imagens abaixo, à esquerda, os romanos se preparam para a batalha, em primeiro plano pode-se ver três fasci, um símbolo que será resgatado por Mussolini no próprio nome do movimento que instaurou: Fascismo; à direita, Cipião discursa no senado)

A Casa de Mussolini  



Cipião, o Africano
trazia de volta os símbolos

romanos  que  Mussolini
desejava  re-introduzir
na paisagem de Roma




O paralelo entre a Roma clássica e a moderna também poderia ser percebido na reorganização do espaço da Roma contemporânea. De uma forma ou de outra, Cipião, o Africano participava do projeto do regime e de Mussolini de se sobrepor a Roma moderna – seus símbolos e ícones – à Antiguidade. A paisagem urbana italiana estava mudando. Entre 1932 e 1940, onze novas cidades foram construídas, como Saubadia, Littoria, Pontinina, Guidonia, Aprilia e Mussolinia (atual Arborea). São todas “cidades de fundação”, onde algumas instruções urbanísticas eram fornecidas pelo próprio Duce (4). Roma sofreu uma série de intervenções, foram demolidos trechos de habitações degradas e cortiços (por mais historicamente relevantes que pudessem ser) para dar lugar a grandes avenidas e prédios públicos, pontes e ministérios de uma antiguidade “modernizada” – incluindo uma grande cidade dos esportes e o Foro Mussolini (atualmente conhecido como Foro Itálico). Uma série de monumentos e ruínas romanas passou a ser visível a distância. A Roma Imperial da Antiguidade foi reciclada no interior da simbologia fascista, incluindo uniformes, estatuária, sinais de transito, design gráfico e até mesmo nas histórias em quadrinhos.




Muito da arquitetura
que  se  pode  ver  e
m Roma é
fruto do planejamento urbano
durante a Era Fascista





Em 1934, por exemplo, os professores eram obrigados a vestir o uniforme fascista na sala de aula, completo com insígnias e fasci romano. A suposta data da fundação de Roma Antiga virou feriado nacional na Itália. O regime organizava exposições públicas para mostrar “sua” herança romana, especialmente na Mostra della Rivoluzione Fascista (em 1932, 1937 e 1940), estabelecendo um ponto de contato literal com Cipião, o Africano. Na verdade, o cenarista e decorador do filme foi um dos responsáveis pela organização da edição de 1937 – a Exibição da Romanidade. Ao restaurar as ruínas da antiga Roma (visível para os espectadores do filme também na sua experiência cotidiana na metrópole contemporânea), a cenografia também evoca seu renascimento e renovação na arquitetura neoclássica fascista. Mudanças foram introduzidas no próprio calendário. De acordo com o calendário Cristão, o Fascismo se instalou no governo em 1922. A esta data, o regime se referia como Anno I E.F. – Ano I da Era Fascista. Nos créditos do próprio filme o ano de produção é XVI E.F. – quer dizer, 1937.



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Notas:

1. RICCI, Steven. Cinema & Fascism. Italian Film and Society, 1922-1943. Berkeley: University of California Press, 2008. Pp. 90, 96-105, 201n16.
2. Idem, p, 98.
3. Ibidem, p. 100.
4. CESAR, Janaína. Cidades do Duce Recuperadas. Rio de Janeiro: Comunità Italiana, Ano XV – nº. 127, janeiro de 2009. P. 26.