7 de mai. de 2008

As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (I)

Teorema (I)


“Eu sei muito bem
o quanto contraditório
alguém tem de ser para
ser verdadeiramente
consistente”


Pier Paolo Pasolini



Um Filme Onde a Burguesia Não Tem Chance

Foi em Teorema (1968)(1) a primeira vez que Pasolini apresentou uma personagem feminina que faz sexo fora do casamento por razões outras que não a prostituição. Foi também a primeira vez que Pasolini filmou a tão detestada burguesia: “Até o momento, eu nunca tinha feito isso, porque de fato não suportaria ter de conviver com essas pessoas por meses a fio”. O cineasta desenvolve a noção das virtudes secretas de uma mulher através de algumas ações simbólicas que giram em torno do sexo. Lúcia rejeita seu papel como esposa dócil recusando o sexo conjugal e afirmando seu ego através de casos extraconjugais – primeiramente com o convidado da família, depois com substitutos que encontra pela rua.

O enredo do filme gira em torno de um misterioso jovem de extraordinária beleza que é o convidado de uma família rica italiana por um breve período – segundo alguns interpretes, ele seria Deus, para outros, um anjo (imagem acima). Terence Stamp, convidado para fazer o papel, chegou a ficar confuso com as explicações de Pasolini sobre seu personagem. Disse que ele não era Cristo, era um visitante do Velho Testamento e não do Novo. Stamp ignorava o que Pasolini queria dizer. Pediu ajuda a Silvana Mangano, a atriz italiana que faria o papel de Lúcia, a esposa do industrial (ao lado). Ela explicou que ele seria um rapaz com uma natureza divina (2).

Ele semeia tal confusão que todos os membros da família, incluindo a empregada, têm suas vidas completamente questionadas. Depois ele vai embora. Segundo Pasolini, e também segundo Paolo (o esposo de Lúcia), ele “veio para destruir”. Entretanto, o marido, que também caiu nas graças do convidado, refere-se aqui à capacidade do forasteiro de destruir os valores falsos que faziam de sua vida uma mentira. O convidado tira as pessoas de suas órbitas costumeiras, despertando energias e emoções que eles não suspeitavam existir.

O filme de Pasolini examina a influência do sagrado no cotidiano da burguesia (3). O sagrado ou, mais exatamente, a falta dele no mundo burguês focado na cultura do dinheiro. Encontramos também o tema dos pais contra os filhos, recorrente em toda sua obra (4). A intenção era mostrar que a sociedade industrial formou-se em oposição total aos camponeses. Burguesia que se articulava com uma Igreja que institucionalizou o sagrado, o qual também foi profanado pelo poder e substituído pela ideologia materialista do bem-estar. A dimensão do sagrado que ainda não tinha sido corrompida, afirmava Pasolini, encontrava seu campo fértil entre os mesmos camponeses que aos poucos estavam sendo transformados em burgueses (5). Talvez não seja por acaso que a única personagem que parece estar em sintonia com a presença do estranho convidado é Emília, a empregada. Na concepção de Pasolini, apenas essas pessoas simples seriam capazes de perceber a vida para além do poder e do dinheiro.

“Assim, em Teorema a aparição de Deus provoca nos burgueses casos de consciência enquanto que na empregada de origem camponesa, a epifania produzia um caso miraculoso. Para o mundo burguês – capitalista ou comunista – que substituíra a alma pela consciência, Pasolini não via salvação. O filme termina com o grito primal do industrial [Paolo] no deserto, imagem evocadora, na visão de um desiludido marxista, do impasse atual do neocapitalismo”. (6)

Não podemos esquecer também de lembrar que Teorema foi um desses filmes em que Pasolini fez questão de não tornar mais fácil a interpretação do espectador. Sua intenção seria distanciar-se dos produtos da sociedade do espetáculo, reconhecíveis pelo caráter pouco profundo ou de compreensão instantânea (7). Produtos que não respeitam a capacidade do pensamento, tornando as pessoas intelectualmente indolentes, com preguiça de pensar ou elaborar um raciocínio mais complexo que não tema confrontar-se com abstrações.

Lúcia

“(...) Sexo em Teorema significa a última esperança
da humanidade por autenticidade”

Coleen Ryan-Scheutz

Lúcia é uma típica mulher da burguesia italiana. Bem de vida, casada com um industrial, dois filhos e uma casa grande e bem servida. Representante da mulher moderna de seu tempo, mas reprimida e enfraquecida por uma falta de autoconsciência e liberdade social. Não aparenta ter uma ocupação formal e está sempre bem vestida, maquiada e com corte elegante no cabelo.

Violando os códigos morais do casamento, Lúcia consegue alcançar uma compreensão maior a respeito de si e seu papel na sociedade. Ela desafia as diretivas prescritas por esta sociedade direcionando sua busca a partir de um comportamento sexual transgressor. Primeiro ela lê o livro do convidado, depois analisa a roupa dele, e então oferece seu próprio corpo.


Quando a câmera olha para ele, do ponto de vista de Lúcia, como ela vemos uma luz do sol vindo por traz como uma aura (imagem acima). Tempos depois, quando ele diz que vai embora, a família toda entra em crise. Com a perspectiva de voltar a sua vida vazia, Lúcia fala da falta de interesses e desejos reais num monólogo (imagem abaixo, à direita):

“Percebo agora que nunca tive qualquer interesse real em nada. Não quero dizer grandes interesses, mas até pequenos interesses naturais como o que meu marido tem por sua fábrica, de meu filho por seu trabalho escolar, ou de [minha filha] Odetta pela família. Eu nada (8). E não sei como entender como pude viver nesse vazio; apesar disso eu vivi. Se alguma vez eu tive um pouco de amor instintivo pela vida, ele secou... como um jardim... que ninguém visita. Na realidade, esse vazio estava cheio de valores pobres e falsos, originados de uma horrenda acumulação de idéias erradas. Agora eu vejo isso. Você preencheu minha vida com um interesse real e total. De modo que partindo você não está destruindo nada que fosse parte de mim antes, a não ser a reputação de ser uma burguesa casta... quem se importa! Contudo, partindo você destrói na verdade tudo que deu para mim, amor dentro do vazio de minha vida”. (9)

Lúcia vê a si mesma como um nada: “eu nada” (io nulla). Collen Ryan-Scheutz nota, entretanto, como essa afirmação pode conter um efeito contraditório. Quando ela diz “Eu nada”, ela está afirmando um “Eu”. Se ela diz “eu”, ela existe como enquanto sujeito. Ao mesmo tempo, se dizer “eu” significa “adotar uma posição sexualizada” e “identificar-se com os atributos socialmente designados como apropriados para as mulheres”, então sua existência, sugere Pasolini, é uma não-existência (10). Em algum nível, entretanto, Lúcia parece aliviada por perceber esse vácuo e finalmente enxergar a verdade. É como se, ao reduzir-se a nada, ela pudesse identificar a semente genuína de sua individualidade. A partir de dentro desse vazio ou estado de não-ser, talvez ela possa recuperar uma dimensão genuína de sua vida. O convidado será aquele que incitará em Lúcia essa auto-reflexão e fará com que ela perceba seu primeiro interesse real: o Outro, o misterioso, o sagrado. Para Pasolini, essa nova consciência é mais poderosa que todos os interesses do resto da família juntos. O desafio de Lúcia será preservar este novo estado depois que o convidado se for.

Finalmente Lúcia se vê não apenas em função de sua família, mas também em relação à sociedade como um todo. Sua fala anterior mostra que ela percebe que seu status como “burguesa casta”, construído sobre uma “horrenda acumulação de idéias erradas” lhe é imposto pela sociedade, que condicionava sua noção de individualidade. Mas como poderia, nos perguntamos com Ryan-Scheutz, esse potencial recém nascido sobreviver num mundo que impõe falsos valores? O monólogo de Lúcia é maior na versão impressa do texto de Teorema. No filme, Pasolini deixa que os rostos dos personagens e as vizinhanças expressem uma tese “horrenda”. No trecho que segue, e que não aparece no filme, ela utiliza muitas vezes o adjetivo “horrendo” para designar seu dilema espiritual: é como se em seu vazio Lúcia personificasse os falsos valores da cultura dominante. Então, ela diz:

“Todas as crenças erradas com que uma mulher burguesa vive: As horrendas convenções, o horrendo senso de humor, os horrendos princípios, as horrendas obrigações, as horrendas graças, a horrenda democracia, o horrendo anticomunismo, o horrendo fascismo, a horrenda objetividade, o horrendo sorriso. Ah, como eu me conheço bem, você dirá. É uma consciência que eu adquiri magicamente – e minha fala é como o monólogo de um personagem numa tragédia!“.(11)

Esse “universo horrendo” seria uma metáfora para “sociedades neo-capitalistas”, cujo materialismo e hegemonia retiraram da humanidade suas características genuínas, belezas e prazeres. De acordo com o crítico Giancarlo Ferreti, essa visão de um mundo natural e imóvel é típica da burguesia industrial enquanto um grupo de pessoas doentes que corrompe toda civilização antiga e contamina seus oponentes até que todo o mundo seja igual a ela, exceto alguns bolsões precários e transitórios que são mais inertes do que resistentes (12).

As escapadas sexuais de Lúcia expõem uma mulher solitária que com este ato resiste contra seu eu casto e burguês. Como sua filha Odetta, que renuncia a seu falso eu e passa a um estado de catatonia, o monólogo de Lúcia marca o esvaziamento de seu eu para resistir à codificação pelo “universo horrendo”. Contudo, Lúcia não consegue encontrar um substituto para a presença do convidado que não está mais lá. Suas aventuras sexuais com rapazes jovens não a levam a encontrar alguém cujo mundo ainda não esteja condicionado e adulterado. Ela começa a desmoronar. Física e emocionalmente perdida, seu estado é claramente traduzido quando ela pergunta a um desses garotos: “Como eu volto para Milão?” Sugestiva para um debate a respeito das críticas de Pasolini à política italiana é a resposta de um deles: "À esquerda e depois à direita".

Mas antes de voltar, Lúcia havia ido com ele e seu amigo até um campo próximo à estrada. Lá se aproximaram de uma velha igreja. Ela transa num buraco na terra do lado de fora do prédio sagrado. É curioso notar que no final do filme, Emília, a empregada que virou santa, também procura um buraco na terra para enterrar-se. Esse buraco não fica próximo de uma igreja, mas havia lá uma parede ostentando o símbolo comunista da foice cruzada com o martelo. Emília não pretendia se enterrar para morrer, mas para chorar. De suas lágrimas brotaria uma fonte de água. Aparentemente, o buraco que Lúcia encontrou não a levou à redenção. Na volta para Milão, retorna à mesma igreja. Quando entra, um raio de luz surge por trás como quando fez sexo com o convidado (imagem acima, à esquerda).

Na verdade, conclui Ryan-Scheutz, Lúcia caminhando dentro da igreja vai em direção ao seu eu da única forma possível na ausência da presença física do convidado. Se esse for o caso, aquele lugar de orações faz o papel de um útero escuro, fechado, onde ela pode se refugiar e se proteger das influências exteriores que a tornam vazia – um lugar onde ela pode começar a encontrar seu eu e preenchê-lo (13).

Como o peregrino de Dante, que desceu ao inferno antes de encontrar o caminho da redenção, Lúcia chega ao ponto mais baixo de sua existência através de atos casuais e aleatórios de sexo e um desorientado nível de rebelião. Procurando duplicar a realidade “pura” e instintiva que encontrou com o convidado, Lúcia só encontra o “estado horrendo” de sua existência. Por esta razão, afirma Ryan-Scheutz, seu pecado da carne é autêntico, constituindo um importante precursor, dentro do contexto do cinema de Pasolini, às falas e atos sexuais que iremos encontrar nos filmes que compõem a futura Trilogia da Vida (14).

Notas:

Leia também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz
As Deusas de François Truffaut

1. Lançado em dvd no Brasil pela Versátil Home Vídeo em 2003.
2. NAZÁRIO, Luiz. Todos os Corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007. Pp. 63-4.
3. SCHWENK, Bernhart; SEMFF, Michael (eds.). P.P.P. - Pier Paolo Pasolini and Death. Ostfildern-Ruit, Germany: Hatje Cantz Verlag, 2005. P. 195. Catálogo de exposição.
4. AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. P. 78.
5. NAZÁRIO, Luiz. Op. Cit., p. 63.
6. Idem, p. 65.
7. AMOROSO, Maria Betânia. Op. Cit.
8. No filme de Pasolini, escutamos ela dizer: Io nulla. Na legenda do dvd lemos: “Eu? Nada”. No livro de Collen Ryan-Scheutz (ver nota seguinte), o texto nos dá a frase: “Eu nunca tive nada”. Como em sua fala no filme Lúcia não parece utilizar a entonação de uma pergunta, conclui que a tradução mais exata é simplesmente: “Eu nada”.
9. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 168.
10. Idem, p. 169.
11. Ibidem, p. 170.
12. Ibidem.
13. Ibidem, p. 172.
14. Ibidem.