15 de mai. de 2008

As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (II)

Teorema (II)


A Burguesia e o Autoconhecimento

Em Teorema (1968) (1), Pasolini focaliza uma família burguesa italiana em 1968. Neste ano, a juventude européia estava nas ruas protestando contra o sistema. Entretanto, como nota Colleen Ryan-Scheutz, os dois filhos do casal não participam dos protestos. Sua turbulência é interna. A partir da visita de um misterioso convidado, Pietro (abaixo, à direita) e Odetta (ao lado) tomam diferentes caminhos para o autoconhecimento. Ele, obediente, procura expressar-se através da arte. Ela, rebelde, gradualmente retira-se para dentro de si mesma.


Eles pertencem a uma rica família vivendo na cidade italiana de Milão. Paolo (o pai), Lúcia (a mãe), Pietro (o irmão) e Emília (a empregada) são os outros habitantes dessa mansão. Odetta nutre uma idolatria pelo pai. Os cinco membros da família nunca se dirigem uns para os outros. Todos se relacionam com o convidado. O que aconteceria se um convidado com uma natureza divina entrasse em suas vidas, fizesse sexo com cada um separadamente, e desaparecesse dois ou três dias depois? Na opinião de Pasolini, cada um deles experimentaria uma crise profundamente destrutiva, mas também compensatória até certo ponto (2).

A empregada torna-se uma santa de cidade pequena. A mãe, um autômato sexual. O filho, um pintor frustrado. O pai, um filantropo nômade. A filha, um peso morto. Odetta entra num estado catatônico, renunciando ao mundo.

Odetta

Comparada com a imagem de sua mãe, sempre bem vestida e penteada, Odetta mostra a criança que ainda é. Sem maquiagem, rabo de cavalo no cabelo, uniforme escolar (no começo do filme) ou um vestido muito discreto, Odetta é a imagem da criança despojada e sem preocupações estéticas. Com olhos grandes e penetrantes, corre aos trotes quando está ansiosa por chegar.

Como no início do filme, quando é importunada por um admirador que tenta puxar os livros que ela traz apertado em seu peito. Com uma frase típica de colegial inexperiente, ela responde ao rapaz com um “eu não gosto de garotos”. Podemos ver que é um álbum que ela guarda com tanto zelo, lá dentro uma grande fotografia de seu pai. Outras vezes, podemos ver Odetta sentada no chão de seu quarto remexendo num baú cheio de brinquedos como se fosse um tesouro enterrado.

O jeito de menina ingênua de Odetta sugere que ela seria capaz de uma existência autêntica em alguma medida, mas sua relação com a autenticidade (no sentido pasoliniano) se mantém indireta e profundamente problemática por conta da influência opressiva de sua família e de sua classe social. Pasolini mostra esse estado de coisas através do jeito preocupado que ela esboça o tempo todo. Como ele escreve no texto de Teorema que serviu de base para o filme: “Ela é extremamente doce e preocupada, pobre Odetta, com uma testa que parece uma caixa cheia de inteligência dolorosa, ou particularmente, conhecimento” (3).










Odetta seria vítima do Complexo de Eletra (4). Presa no papel de “boa filha”, a “menina” de Lúcia e Paolo não possui uma imagem própria, senão aquela informada pelo olhar de um macho (o pai) (acima, à esquerda), que informa sua relação com o mundo a partir de um discurso patriarcal. A autoridade masculina e os códigos burgueses restringem a existência de Odetta, que não tem voz ou personalidade. O vazio de Odetta é informado pela falta de uma imagem materna, já que Lúcia é vítima do mesmo estado patriarcal e burguês. Como é evidente na maioria dos casos, a presença física dos membros dessa família sob o mesmo teto não supre a ausência de uns na vida dos outros. Lúcia vive seu próprio dilema espiritual, o que torna sua presença simbólica fraca diante de Odetta, tornando a filha mais dependente do pai.

Pasolini cria um triângulo entre Odetta, o convidado (que também preenche o vácuo deixado pela ausência Lúcia) e o pai. Odetta começa a tornar-se consciente de sua personalidade. Quando Paolo cai doente, o triângulo se solidifica. Através dessa divindade esotérica e mística que é o convidado, Odetta começa a perceber tanto seu interesse nele quanto as dimensões míticas que ela atribui ao pai até esse instante. Paolo fica doente e o convidado cuida dele sob o olhar dela. A devoção cega de Odetta pelo pai muda. Ela abandona sua adoração por ele e passa a estudá-lo, tornando-se consciente das fraquezas e mortalidade de Paolo. Enquanto seu pai está convalescente no jardim em companhia do convidado, Odetta fotografa os dois. Antes ela fotografava apenas o pai, mas agora ela descobre o corpo do convidado.

Essa de a nova realidade que o convidado representa. Odetta tira o convidado de perto de seu pai, puxando-o para o quarto dela. Sentada no chão, entre as pernas scoberta faz com que ela perca o controle ao abrir-se para receberdele, que está logo acima dela, sentado na cama. Odetta mostra seu álbum de família (comparando o passado e o futuro). De repente ela olha para cima na direção do rosto dele. Ela consente o sexo.

Para Pasolini, o sexo constitui uma das formas mais genuínas de auto-expressão e interação humana. Instintivo, ele transcende o poder da autoridade moral e dos códigos sociais. A união sexual de Odetta com o convidado levou a uma maior consciência dela e aceitação de uma personalidade mais autêntica.

O mesmo sentimento sensual que subjugou os outros membros da família captura Odetta também. Isso é evidente na forma como ela fotografou e analisou as imagens do pai e do convidado (depois que já havia transado com ele). No caso pai ela só olha. No caso do convidado, Odetta observa demoradamente o rosto, seus ombros, seu tórax e sua pélvis (5).

Como no caso dos outros habitantes daquela família, ao saber que o convidado vai embora Odetta faz o seu monólogo para ele. Ela explica como veio a conhecer uma essência pura e sagrada em sua vida. Afirma que através do contato físico com ele encontrou a solução para seu dilema. Odetta livrou-se de seu medo de infância em relação aos homens, assim como de perder seu pai. Ryan-Scheutz nos mostra algo da fala de Odetta como Pasolini escreveu no livro: “Você me ajudou a encontrar a solução correta, a abençoada solução para minha alma e minha sexualidade”.(...)”A miraculosa presença de seu corpo (que contém um espírito tão grandioso) de jovem macho e pai, liberou meu selvagem e perigoso medo de menina”. Agora o monólogo completo de Odetta no filme:

“Nosso encontro fez de mim uma garota normal. Finalmente, encontrei uma solução para a minha vida. Antes, eu não conhecia os homens. Tinha medo deles. Só amava meu pai. Mas agora, partindo, não só me atira para frente, mas me faz seguir adiante. Era isto que queria? Agora a dor de perder você provocará em mim uma nova queda mais perigosa do que o mal que havia dentro de mim antes da minha breve cura devido à sua presença. Eu nunca havia conhecido esse mal, mas agora sim. Através do bem que você me fez, me conscientizei do meu mal. Como poderei substituir você? Talvez exista alguém. Acho que não poderei mais viver”. (6)

Tendo como opção sua realidade burguesa, Odetta gradualmente se retira de sua função de filha. Depois que o convidado vai embora, ela revisita os lugares da casa onde ele esteve e pensa sobre sua ausência (ela chega a medir as distancias com uma régua). Odetta olha para a rua pela grade do portão. No roteiro Pasolini descreve a rua como o vazio mais doloroso e ofensivo, embora ainda assim uma realidade mais normal que nunca. Agora Odetta sabe que uma ausência indica uma presença. Ela percebe que o vazio aponta para a realização de algo que o preencha, e que a identidade profana da família burguesa sinaliza as possibilidades autênticas que se encontram para além dessa família (7).

Odetta volta para o quarto e pega o álbum de fotografias em seu baú de brinquedos de infância. Agora, além das fotos de seu pai, temos as fotos do convidado que ela tirou no jardim quando ele estava junto de seu pai convalescente. Ela toca o corpo dele nas imagens com o dedo. Quando ela chega à pélvis dele (em seu sexo), Odetta fecha o punho, deita-se na cama e não levanta mais. Ela escolhe uma identidade de ausência do mundo burguês de forma a existir como indivíduo. Ryan-Scheutz cita Maurizio Viano, outro conhecedor do trabalho de Pasolini:

“Após seu encontro com a paixão, Odetta encontra sua força de vontade, a força de vontade para rejeitar o texto que não permite que ela tenha uma imagem própria. Portanto Odetta não cai passivamente presa de um ataque catatônico. Ela escolhe o departamento psiquiátrico, porque ela agora prefere incorporar a loucura a ser um apêndice do Pai. Por conseguinte, ela se faz ausente, recusando emprestar seu corpo novamente para um texto que não possui um lugar real para ela”. (8)

A jornada de Odetta ao autoconhecimento através do encontro com o convidado combina o sexual e o espiritual, o instintivo e o intelectual. Sexo, em Teorema, é a última esperança da humanidade por autenticidade. Através do convidado, afirma Pasolini, cada um passou a conhecer alternativas à tendência predominante. De fato, lembra Ryan-Scheutz, essa passagem do indivíduo para fora é o elo perdido no teorema de Pasolini.

“No caso específico da família burguesa, cada membro é muito fraco ou inseguro para verdadeiramente agarrar a diversidade e o não conformismo, conectando-os enquanto uma força central em suas vidas. Apenas a empregada, Emília, que vem da camada trabalhadora mais humilde, tem capacidade de transformar seu encontro num evento comunal e unificador. Ao contrário, após a partida do convidado, a unidade familiar se desintegra na disfunção e alienação. Um depois do outro, cada membro da família trilha um caminho solitário em direção ao fim”. (9)


Como Odetta, talvez Paolo, o pai, também tenha optado por um afastamento radical em relação à família. Enquanto ela tirou sua máscara, ele tirou suas roupas. Inicialmente, como fez Lúcia, Paolo também vai procurar um substituto para o convidado que se foi. É o início da cena final do filme quando ele procura um garoto de programa na estação de trem de Milão. Neste momento, uma criança muito nova esbarra nele. Isso o faz mudar de rumo em direção a uma profunda mudança. De repente deixa cair sua identidade literalmente tirando a roupa no meio da estação. Ele se retira da sociedade e caminha para o deserto nu (ao lado, abaixo).



“Paolo se despe e abandona a sociedade para vagar no deserto, símbolo de uma sociedade árida e de um vazio espiritual. Alternativamente, a mãe ficará na sociedade, como o filho, Pietro, apesar de suas similaridades com Odetta. Pietro não consegue internalizar, e na possui uma visão clara do convidado ou da personalidade [do seu eu]. É por essa razão que ele não consegue reproduzi-los na tela e nem mesmo em sua mente o suficiente para imaginá-los. A experiência o confundiu, enquanto clarificou as coisas para a menina, sua irmã. A empregada, Emília, não apenas fica em sociedade, mas literalmente se enterra nela, desejando regenerar raízes puras, simples e autênticas no meio da Milão industrial”. (10)

É como se através da filha o pai que inibia o nascimento dela renascesse para si mesmo. Pasolini sugere que a determinação pessoal da filha permitiu que ela resistisse à opressão cultural. Apesar de parecer que a catatonia significa que Odetta não consegue se libertar, paradoxalmente sua liberdade consiste em fechar-se para o mundo profanado em torno de si: a “saída” de Odetta mostra que a revolução deve enraizar-se no indivíduo antes que possa tomar forma na sociedade. Ao contrário de concluir que seu olhar fixado no teto do quarto e seu punho cerrado significam que ela não conseguiu captar sua essência, essa paralisia prova que ela a percebe profundamente. Inclusive que, apesar do preço de perder seu lugar na sociedade, ela resolveu não deixar essa essência escapar. Odetta se torna um Outro como o convidado – uma desviante sem lugar na sociedade.


“No final, Odetta desaparece da sociedade tão misteriosamente quanto o convidado, provando a inabilidade da sociedade burguesa em aceitar ou receber, de uma forma durável ou significante, a ‘diversidade encarnada’. No nível cívico, a partida de Odetta tem ramificações lúcidas se interpretada como a morte de uma nova e esperançosa dimensão familiar. Contudo, se sua morte simbólica leva a uma nova vida no pai, há esperança de que a sociedade mais ampla possa se restaurar com maior consciência do (e contato nu com o) sagrado”. (11)


Notas:

Leia Também:

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

1. Lançado em dvd no Brasil pela Versátil Home Vídeo em 2003.
2. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Toronto: University of Toronto Press, 2007. Pp. 107-8.
3. Idem, p. 248n13.
4. Ibidem, p. 109. O equivalente feminino do Complexo de Édipo é o Complexo de Eletra. Freud afirmava que as crianças são sujeitas ao desejo sexual e que o objeto desse desejo freqüentemente são os próprios pais. Além do complexo de Édipo, em que o filho deseja sexualmente a mãe (Na tragédia grega desse nome, Édipo se casa com sua mãe, sem o saber), Freud admitiu também o Complexo de Eletra, como a inveja que a menina tem do pênis do menino, e chamou a criança de um "perverso polimorfo". Assim, no complexo de Édipo temos o apego erótico do filho pela mãe, com o desenvolvimento paralelo de ódio pelo pai. Enquanto no complexo de Eletra, a filha encontra na mãe uma rival que compete com ela na disputa das simpatias do pai. A lenda grega onde Freud se baseou é a de Eletra e seu irmão Orestes, filhos de Agamêmnon e Clitemnestra. Eletra ajudou o irmão a matar sua mãe e o amante dela, um tema da tragédia grega abordado, como pequenas variações, por Sófocles, Eurípedes e Ésquilo.
5. Ibidem, pp. 110-1.
6. Retirado do dvd de Teorema (ver nota 1).
7. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 112.
8. VIANO, Maurizio. A Certain Realism: Making Use of Pasolini’s Theory and Practice (1993) IN RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 113.
9. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 114.
10. Idem, p. 249n27.
11. Ibidem, p. 115.