11 de dez. de 2008

Fellini no Mundo da Lua


“O  dilema  moderno  é  a  solidão.  Nenhuma  celebração  pública
ou sinfonia política pode esperar libertar-se. Apenas através dos
indivíduos  ela  pode ser quebrada,  pode uma mensagem ser
passada, fazendo-os compreender a profunda ligação que
une uma pessoa a outra. Foi o que tentei expressar em
meu último filme, A Voz da Lua, e o que tentei dizer
em  A Estrada da Vida  há  tantos  anos  (...)(1)


A Voz da Lua


Ivo Salvini, recém saído de uma internação em hospital psiquiátrico, escuta uma voz e se convence que ela vem da lua. Conhece Gonnella e saem caminhando pela Emilia-Romagna, região da infância de Fellini. Os dois acabam descobrindo uma anomalia social que mistura Fascismo, comerciais de tv, concursos de beleza, Michael Jackson, catolicismo e rituais pagãos.


Ivo está apaixonado por Aldina Ferruzzi, mas ela não quer nada com ele. Ivo procura segui-la no desfile que irá escolher a Miss Farinha 1989, que ela ganha. Dali ele segue com seu amigo Gonnella até um campo de fazenda onde mulheres negras cantam sob o luar. Uma noite, quando ele vai ao quarto dela para poder vê-la de perto, ela acorda assustada e joga um dos sapatos nele. Então Ivo corre e passa a carregar o sapato na cintura.



Ivo confunde Aldina com a lua, que lembra também Marisa, um antigo e risonho amor. Ivo conhece alguns outros lunáticos. Um oboísta que vive no cemitério, outro que gosta de meditar no telhado e Gonnella, um ex-prefeito que acredita que o mundo que vemos é apenas uma ilusão visual, parte de uma grande conspiração. Quando os dois chegam numa discoteca, Ivo descobre que o sapato de Aldina serve em outras mulheres.



Perto do final do filme, a lua é capturada pelos irmãos Micheluzzi. Seria uma brincadeira de Fellini com Rocco e Seus Irmãos (Rocco e i Suoi Fratelli, 1960), dirigido por Luchino Visconti? Um deles chora, enquanto o outro, que tem um ar bufão, tenta explicar como conseguiram prendê-la num estábulo. Assistimos se formar um circo midiático bem ao estilo daquele montado pela imprensa na seqüência do milagre da aparição da santa em A Doce Vida.



Desta vez temos grandes telões rodeando a praça da cidade. O apresentador/repórter lembra ao povo presente na praça e nas televisões que assistem de longe que o homem foi à lua, mas ninguém imaginava que ela poderia vir a nós. Através de outra transmissão de televisão, podemos ver que a lua esta amarrada firmemente ao chão. Muita gente em volta olha a coisa com uma mistura de medo e incredulidade. Alguns choram, outros rezam.



Na praça, várias autoridades da política, da Igreja e da ciência discutem a questão. Todos têm seus rostos projetados nas grandes telas, e o show acaba virando propaganda oficial. O padre afirma que a lua não tem nada para revelar. “Para nós”, ele diz talvez se referindo aos católicos, "tudo já foi revelado". Vem o tumulto quando alguém pergunta por que está ali - como as perguntas que não fazemos, hipnotizados em frente de nossas televisões.


Fellini e Sua Lua


“Os   jovens   assistem   televisão   24   horas   por   dia,   não   lêem 
e raramente escutam. Esse incessante bombardeio de imagens 
desenvolveu  uma  condição  de  hipertrofia  do  olho  que
os  está  transformando  numa  raça  de  mutantes (...)

Federico Fellini
I’m a Born Liar (2)


Fellini sempre se sentiu diferente. Achou que acabaria ou louco ou seria um cineasta. O luxo de ser um cineasta, dizia, é que você pode dar vida a suas fantasias. Para ele, nossos sonhos são nossa vida real. Quando o chamavam de louco, Fellini lembrava que a loucura é uma anormalidade. Isso para ele não era um insulto. Segundo seu ponto de vista, os loucos são indivíduos, cada um com sua obsessão individual, e a sanidade é apreender a tolerar o intolerável, seguir sem gritar. Fellini visitou alguns asilos psiquiátricos, um lugar que o fascinava. Lá ele afirmou haver encontrado uma espécie de individualidade na insanidade, algo raro no assim chamado mundo “normal”. Segundo Fellini, “a conformidade coletiva a que chamamos sanidade desencoraja a individualidade” (3).


Desde A Estrada da Vida (La Strada, 1954) Fellini não fazia um filme sobre a insanidade. É que o cineasta começou a pesquisar o tema, e tudo ficou muito real. Ele se interessava pela excentricidade do “maluco beleza”. Mas Fellini não conseguiu encontrar isso no mundo real da insanidade. Encontrou apenas pessoas infelizes com seus pesadelos, prisioneiros atormentados por suas próprias mentes, prisão pior do que as paredes que os confinavam.



Mas o que realmente o fez parar sua pesquisa foi uma garotinha que ele conheceu no manicômio. Era cega, surda e tinha síndrome de Down. Mas ela reagiu ao toque de Fellini, ela gemia como um cachorrinho, nitidamente ela queria atenção, calor, humanidade. No momento que a abraçou se lembrou do filho de Giulietta Masina, sua esposa, que nasceu morto. Fellini não procurou saber dela no futuro, porque ele achava que sabia a resposta.



De certa forma, Fellini comparou A Voz da Lua (La Voce della Luna, 1990) a essa menininha quando disse que ninguém mais ama esse filme, portanto ele precisa do amor do cineasta (4). Seja como for, sugeriu Fellini, mesmo a fantasia deve ser captada a partir da observação da vida real. Para Fellini não é necessário ser um lunático para mostrar um em A Voz da Lua, mas achava também que ser cineasta maluco pode ser uma vantagem (5).



O filme é uma adaptação livre do Poema dos Lunáticos (Il Poema dei Lunatici, 1985), de Ermanno Cavazzoni. Embora o próprio Fellini tenha dito que não faz sentido algo concebido para ser escrito ser adaptado para cinema, ele o fez. Sua estratégia foi adaptar o filme ao romance e não o contrário, aplicando os meios de expressão cinematográficos aos elementos básicos do enredo e as necessidades dos personagens.



O ponto de vista do filme é o de um lunático que acabou de sair de um hospital psiquiátrico, ele é maluco num sentido romântico, e enxerga o mundo por um ponto de vista diferente dos outros. Fellini chegou a dizer que era maluco nesse sentido, ele se identificava com Ivo. Fellini explicou também que não queria deixar muito óbvio que fosse sua a visão poética e distorcida que Ivo tem do mundo. Em A Luz da Lua, o espectador decide quem é são e quem não é.



Peter Bondanella lista várias correspondências entre os personagens de outros filmes de Fellini e A Voz da Lua. Giudizio, o maluco da cidade em Os Boas Vidas e Amarcord (1973), ou o maluco Tio Teo também de Amarcord. Ou ainda Gelsomina, de A Estrada da Vida (6). Fellini admite semelhança entre Marisa e Gradisca (Amarcord), ou talvez Ivo e Gelsomina. Mas a resposta dele para as correspondências entre personagens é: não (7).



A seqüência do sapato de salto alto, que logo nos traz à lembrança a estória da Cinderela, entristece Fellini. Durante a passagem de Ivo e Gonnella pela discoteca, uma mulher consegue colocar o sapato que Ivo traz na cintura – o sapato é de Aldina, a mulher que ele procura reencontrar. Ivo descobre então que o sapato serve também em outras mulheres, ele parece muito feliz com isso. Segundo Fellini, é o nascimento do cinismo e a morte do romantismo.



Ivo não mais terá esperança novamente, não mais terá confiança total de novo. Sempre haverá vozes em sua cabeça fazendo aquelas pequenas perguntas irritantes que os românticos não fazem. Para Fellini, a própria existência do conceito de “perguntas” indica a morte do espírito romântico.

A Itália de Fellini


“Federico  deu  a  nós  os  mais  significantes  traços de  nossa  história 
nos últimos vinte anos. Ele declara que não está preocupado com 
política [...]. Mas ele está. Ele é, no final das contas, o mais  
político e sociológico de nossos autores” (8)

Lina Wertmüller cineasta italiana,
contemporânea de Fellini


Embora Fellini não acreditasse em filmes políticos e dissesse que não existe nada pior do que um filme político ruim, na opinião de Bondanella o cineasta tinha uma visão muito mais aguçada que a maioria dos comentaristas políticos italianos em relação a seu país seria capaz de elaborar. Nos anos 50 do século 20, os críticos de esquerda estavam hipnotizados pelas análises cinematográficas materialistas da sociedade italiana feitas pelos neo-realistas. Tudo que eles pareciam enxergar era a pobreza material da Itália nas telas. É fato que ela era real, mas os críticos de esquerda não pareciam capazes de ver através dela.

Paralelamente, Fellini sublinhava as raízes da cultura popular italiana no teatro de variedades, revistas de fotonovelas e a vida interiorana em Mulheres e Luzes (Luci Del Varietà, 1950), Abismo de Um Sonho (Lo Sceicco Bianco, 1952) e Os Boas Vidas, os filmes que formam sua Trilogia do Caráter. Em seguida, o cineasta aprofunda uma crítica de seu tempo com A Estrada da Vida, A Trapaça (Il Bidone, 1955) e Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957), os filmes que formam sua Trilogia da Pobreza Espiritual (9).

Na primeira trilogia, encontramos um sabor neo-realista. Na segunda, temos uma abordagem menos materialista (no sentido da esquerda), focando em problemas existenciais de pessoas alienadas, além de questionamentos religiosos (10). Com A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960), praticamente antecipa a cultura controlada pela mídia antes que ela existisse – e que agora domina todo o planeta. Em Ginger e Fred (1986), mostra os perigos de uma cultura dependente da televisão. Em A Voz da Lua, seu último filme, Fellini nos apresenta uma imagem perturbadora da Itália contemporânea que infelizmente, com o passar do tempo, parece uma avaliação mais e mais realista do lugar da imaginação artística na cultura italiana.

É Necessário Silêncio



(...) Eu penso que a televisão traiu o sentido do discurso democrático, adicionando  caos  visual  à  confusão  de  vozes.  Qual  é
a  função  do  silêncio  em  todo  esse  barulho?  (...)

Federico Fellini
I’m a Born Liar (11)


Quando Gonnella afirma é um engano acreditar que as coisas e pessoas existem apenas porque as vemos, e que tudo não passa de ilusão, Fellini acaba nos remetendo ao nosso mundo. Ivo e Gonnella já viviam, antes de nós, num mundo dominado pela mídia de massa. (na imagem acima, a lua, devidamente amarrada, "ilumina" o telão atrás das autoridades, que transformaram tudo num grande espetáculo midiático)


Na opinião de Fellini, a mídia de massa só é capaz de veicular uma irritante estática (como quando a tv está fora do ar no começo do filme, durante o strip tease) ou comerciais vulgares. Não há informação real e comunicação autêntica (que o cineasta acha crucial para um cinema de autor). A imagem da Itália contemporânea em A Voz da Lua é de barulho discordante e cacofonia, em contraste com a voz mais serena que Ivo escuta.



Bondanella afirma que, desde seu primeiro até seu último filme, Fellini manteve a crença de que os mentalmente perturbados ou pelo menos mentalmente “diferentes” possuem uma capacidade humana especial para empatia e compreensão. (imagens acima e abaixo, todos olham incrédulos para a lua amarrada enquanto suas imagens são transmitidas em tempo real para os telões e dos telões para as tv's)


A Voz da Lua também mostra com preocupação como a cultura popular na Itália moderna (ainda um país rural, dominado pela igreja, família e relações pessoais em pequenas comunidades) se tornou um reflexo da comunidade globalizada da cultura da mídia de massas, perdendo as qualidades de criação artística, relações interpessoais e comunicação humana autêntica que gerações de visitantes elogiaram e admiraram.



As vozes que o “anormal” Ivo escuta, e que não são percebidas pelos “normais”, constituem uma metáfora poética para as mensagens que Fellini acredita que todos nós recebemos do fundo de nossas psiques. Esses fenômenos inconscientes ou subconscientes sempre representaram, para Fellini, tanto a fonte da inspiração artística quanto a existência autêntica. Em A Voz da Lua, uma discoteca barulhenta e um mundo visual recheado por comerciais de tv serve como símbolos evidentes da incapacidade humana para escutar as vozes interiores. Numa gigantesca discoteca, cheia de jovens dançando ao som de Michael Jackson (12) num volume ensurdecedor, apenas Ivo e Gonnella conseguem ouvir as mensagens reais ou de uma comunicação autêntica não mediada pela televisão.


Até mesmo quando Ivo conversa com a lua, que ele identifica com sua amada Andina, Fellini nos faz sair do transe e pensar. Nessa seqüência, vemos um rosto de mulher na lua. Ela pára de falar de repente, pede licença porque esqueceu algo importante, tosse para limpar a garganta e grita: “publicidaaaaaaaddeeeee!” (ao lado). Ivo e Gonnella vivem num mundo onde até a lua é explorada pela mídia de massa para vender bens de consumo.



Um filme cheio de belas imagens, que não esconde sua fria mensagem, eis A Voz da Lua. Na seqüência final, com a lua cheia alta no céu, Ivo comenta (mais para nós espectadores do que para si): “Mesmo assim, eu acredito que se houver um pouco mais de silêncio, se todos nós ficássemos um pouco mais quietos... talvez então pudéssemos compreender” (13).


Leia também:

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz
Antonioni e o Grito Primal
A Classe Operária Vai ao Paraíso

Notas:

1. Comentário de Fellini In PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003. P. 139.
2. Idem, p. 145.
3. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995. Pp. 58-9.
4. Idem, p. 105.
5. Ibidem, pp. 172-3.
6. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 428.
7. CHANDLER, Charlotte. Op. Cit., p. 247.
8. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. P. 118.
9. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. Op. Cit., p. 427. Em 2002, portanto muito tempo depois, Bondanella lançaria um livro sobre Fellini, The Films of Federico Fellini (Cambridge University Press). Desta vez, ao referir-se ao que ele havia chamado de Trilogia da Pobreza Espiritual, Bondanella utiliza a expressão Trilogia da Salvação ou da Graça. Acreditamos que seja necessário este esclarecimento para evitar confusão, já que o próprio autor utilizou duas formas diferentes para classificar os mesmos filmes. Além disso, de posse do livro Italian Cinema. From Neorealism to the Present, um usuário menos atento aos detalhes bibliográficos pode não perceber que se trata de uma 3ª edição, lançada em 2008, de um livro originalmente lançado em 1983.
10. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present, op. cit., p. 427; The Films of Federico Fellini, op. cit., pp. 18-26.
11. PETTIGREW, Damian. Op. Cit., pp. 145-6.
12. Infelizmente, Bondanella foi apanhado por sua própria inadequação aos novos tempos e acreditou que os dj’s que estavam tocando o disco de Michael Jackson eram uma banda de rock – é assim que ele descreve a cena. Aliás, Bondanella nem sabe que era Michael Jackson cantando. Vamos dar a ele o benefício da dúvida, talvez não saiba disso porque NÃO VIU O FILME. Ou talvez, equívoco bastante comum entre aqueles que APENAS consultam os roteiros dos filmes que comentam, Bondanella acredite que TUDO que está no roteiro foi gravado no filme. A única receita para não cometer certos erros que podem fazer rolar morro abaixo toda a credibilidade de uma análise é ASSISTIR aos filmes que se comenta ou critica.
13. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present, op. cit., p. 429.