Pier Paolo Pasolini
Mitos e Verdades
Em certos meios intelectuais, muito se fala a respeito de um “cinema de poesia” que Pier Paolo Pasolini identificou em alguns filmes da década de 60 do século passado. Em seu artigo, intitulado justamente Cinema de Poesia, ele defendeu a hipótese de que certo tipo de abordagem cinematográfica poderia ser compreendido a partir do mesmo ponto de vista lingüístico utilizado na distinção entre a prosa e a poesia. (imagem acima, Pasolini nas locações de O Evangelho Segundo São Mateus. De túnica branca, Enrique Irazoqui, que fez o papel de Jesus Cristo)
De acordo com Pasolini, no cinema é mais difícil distinguir entre “língua da prosa” e “língua da poesia” porque não sabemos com clareza qual é a “língua do cinema”. Ele não sabia dizer se existe uma correspondência entre palavra e imagem (planos, seqüências, etc.). Pasolini admitiu que a distinção que fez entre a prosa e a poesia no cinema era muito empírica e mais uma espécie de piada: a língua da poesia é aquela onde se sente a câmera, como na poesia se podem sentir imediatamente os elementos gramaticais de função poética; na língua da prosa, não sentimos a câmera, a presença do autor e seu estilo não são aparentes (1). (imagem abaixo, nas filmagens de Accattone vemos, da direita para a esquerda, o então assistente, Bernardo Bertolucci, Pasolini em seguida, se abaixando)
Pasolini admite que o naturalismo da língua da prosa leve ao limite a própria vocação naturalística do cinema: com uma só imagem, o cinema pode mostrar um rosto em detalhe. Na superação do naturalismo, a língua da poesia, que não é natural, inundaria a imagem com metáforas: construção de um vocabulário de comunicação através de imagens; inventar as próprias imagens. Entretanto, conclui Pasolini, “(...) isto depende em primeiro lugar dos poderes e da qualidade da metáfora e das abstrações do cineasta. Mas não acredito que nenhum filme tenha nunca ultrapassado este limite – nem mesmo o mais poético dos filmes” (2).
O Filme Dentro do Filme
Existem filmes da Nouvelle Vague que trazem dentro de si um segundo filme. Este segundo é aquele que o autor não pode ou não teve coragem de fazer. Por conta disso, ele utilizou o que Pasolini chamou de subjetiva livre indireta, que vem a ser a utilização do personagem para passar as suas próprias questões. O que não quer dizer que não existam filmes onde o autor conta a história em primeira pessoa. O estilo não consiste apenas em fazer de si o objeto da obra, mas em ver o mundo através de si mesmo, interiorizar o mundo. “É a razão pela qual não existiu nunca monólogo interior, discurso livre, individual e total, no cinema até hoje”.
À tentação de sugerir que Fellini tenha conseguido Pasolini rebate, dizendo que ali a interiorização é apenas um pretexto para tornar o espetáculo mais onírico, menos realista (3). É inevitável, sugeriu Pasolini, que no cinema de poesia a narração (o espetáculo) tenda a desaparecer. É claro que, no cinema de poesia, o autor escreva poesia. Poesia cinematográfica e não mais contos cinematográficos. O cinema de poesia tem como objetivo último escrever histórias onde, mais do que as coisas ou os fatos, o protagonista é o estilo.
O Cinema de Pasolini Era de Poesia?
Embora a referência ao “cinema de poesia de Pasolini” seja uma constante, quando escreveu seu artigo, caracterizando alguns filmes de sua época como cinema de poesia, ele não se incluiu como exemplo. Citava alguns filmes de Bernardo Bertolucci, Michelangelo Antonioni, Jean-Luc Godard, Milos Forman e Glauber Rocha. Numa entrevista em 1965, portanto ainda teríamos muitos filmes seus produzidos depois dessa afirmação, ele explica que,
“provavelmente, meus filmes não pertencem a esta corrente. Ou então só em parte: isso valeria exclusivamente para meu último filme, O Evangelho Segundo São Mateus [Il Vangelo Secondo Matteo, 1964]. Mas Accattone, Mamma Roma, A Ricota [imagem acima, à esquerda] foram feitos segundo a sintaxe clássica; aquela do cinema de Chaplin a Bergman, de Mizoguchi a Dreyer” (4)
No Evangelho Segundo São Mateus, observa Pasolini, podemos sentir muito a câmera, muitos zoom, falsas uniões intencionais. Mas, sobretudo, foi pensando neste filme que veio ao cineasta a idéia do discurso livre indireto. Pasolini tinha a seguinte questão em mente, não podia contar essa história como uma narração clássica porque ele era ateu. Não poderia narrar uma história na qual não acreditava. Pasolini revirou toda a sua técnica cinematográfica,
“(...) e assim nasceu esse magma estilístico que é próprio do ‘cinema de poesia’. Porque, para poder contar o Evangelho, tive de emergir na alma de um crente. Nisto consiste o discurso livre indireto: por um lado, a história é vista através dos meus olhos; por outro, é vista pelos olhos de um crente. É o uso deste discurso indireto livre que causa a contaminação estilística, o magma em questão” (5)
A variação entre preto e branco e colorido em A Ricota (La Ricotta, 1963) não quer dizer que existam dois filmes (imagem ao lado, Mamma Roma). Segundo o próprio Pasolini, trata-se apenas da técnica da citação ou colagem. No caso, trata-se de citação de dois pintores, Rosso Fiorentino e Pontormo, segundo o estado de alma a partir do qual o cineasta que aparece no filme (personagem de Orson Welles) representaria a Paixão de Cristo.
Pasolini pretendia criar uma polêmica com o excesso de bom gosto daqueles que dirigiam filmes bíblicos naquela época. Tudo é muito formal em A Ricota, reconstruções muito exatas e muito refinadas, exatamente o contrário do que Pasolini afirma ter feito em O Evangelho.
Accattone é um poema cinematográfico, admitiu Pasolini. Mas no sentido dos cânones clássicos e não enquanto cinema de poesia. Ele submergiu no mundo de Accattone, a ponto de receber críticas por não haver feito um juízo sobre esse mundo, por não haver se colocado suficientemente de fora e mostrar a relação entre uma universalidade marxista ou burguesa e a particularidade desse subproletariado. (ao lado, O Evangelho Segundo São Mateus)
Em A Ricota, ao contrário, Pasolini não se perdeu no personagem de Stracci, que é um personagem menos poético que Accattone. A crise que Accattone mostra remete a problemas da sociedade italiana e não a problemas do próprio Pasolini. Até Accattone, Pasolini só percebia os problemas sociais italianos imergindo na especificidade italiana. Com A Ricota, isso se tornou impossível. A sociedade italiana mudou, e Pasolini só conseguia ver a questão do subproletariado romano enquanto um fenômeno do Terceiro Mundo. Stracci não é mais um herói do subproletariado romano, como um problema especificamente italiano, mas como um herói símbolo do Terceiro Mundo. A Ricota fecha uma fase épico-lírica, no sentido de poema popular (6).
Pasolini disse que a grande dificuldade de O Evangelho Segundo São Mateus era precisamente de não demolir a história de Mateus. Foi necessário um equilíbrio entre o ponto de vista pessoal de Pasolini e aquele do crente, um equilíbrio entre duas narrações. Na cena em que Cristo caminha sobre as águas, a presença do crente é maciça (imagem ao lado). A presença de Pasolini é maciça nas cenas onde existem referências (citações) às pinturas de Piero della Francesca, Masaccio, Pollaiolo.
Se tudo fosse contado em primeira pessoa, as referências seriam colocadas em outro nível. Pasolini afirma que conseguiu fazer com que todas as referências se mantivessem sob o mesmo plano estilístico (imagem abaixo, a mãe de Pasolini no papel de Maria em O Evangelho Segundo São Mateus). Em 1967, portanto dois anos depois de Cinema de Poesia, publicado em Empirismo Herético (7), Pasolini comentou que seria idiota buscar os limites precisos e codificáveis entre certo cinema de prosa e certo cinema de poesia. Tomada isoladamente, essa afirmação chega a ser desconcertante, pois conhecemos o esforço que ele fez no artigo citado para conceituar o termo. Entretanto, para Pasolini, mais importante do que isso tudo é a realidade, ou melhor, a forma de remontá-la cinematograficamente: em que medida o tempo no cinema se aproxima ou se afasta do tempo da realidade?
Segundo Pasolini, “(...) o cinema está baseado, ao contrário, na abolição do tempo como continuidade, e, portanto, na sua transformação em realidade significativa e moral, sempre (mesmo nos filmes comerciais, nos quais naturalmente significação e moral estão degenerados)” (8). Pasolini uniu essa descontinuidade do tempo no cinema à poesia: “falando, porém, de cinema de poesia eu sempre entendi poesia narrativa. A diferença era de técnica: em lugar da técnica narrativa do romance, de Flaubert ou de Joyce, a técnica narrativa da poesia” (9).
Leia também:
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Pasolini, o Corvo Falante
Notas:
1. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) Pier Paolo Pasolini per il Cinema. Milan: Mondadori, 2 vols. 2001. Entrevista concedida ao Cahiers du Cinéma, nº 169, agosto de 1965. Vol. II, p. 2891.
2. Idem, p. 2893.
3. Ibidem, p. 2898.
4. Ibidem, p. 2899.
5. Ibidem.
6. Ibidem, p. 2902.
7. PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Eretico. Milão: Garzanti, 2000 [1972]. O artigo Cinema de Poesia, constante desta coletânea está datado de 1965.
8. PASOLINI, Pier Paolo. Os Sintagmas Vivos e os Poetas Mortos In Diálogo Com Pasolini. Escritos 1957-1984. Tradução Nordana Benetazzo. São Paulo: Nova Stella/Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1986. P. 110. Datando de 1967, este artigo também pode ser encontrado em Empirismo Eretico, sob o título I Segni Viventi e I Poeti Morti.
9. Idem, p. 112. A ênfase é minha.