27 de jun. de 2012

Michelangelo Antonioni Entre o Rio e o Deserto





O cineasta só desejava
realizar um filme sobre
a pesca e os pescadores
e não sobre o ambiente 

Giorgio Tinazzi (1)



No Meio da Paisagem Realista

Obsessão (1943), de Luchino Visconti, e Gente del Po (1943-47), de Michelangelo Antonioni, foram rodados em locações não muito distantes entre si no entorno de Ferrara, no vale do rio Po - o mesmo rio onde acompanharemos a deriva do corpo de um guerrilheiro antifascista morto pelos nazistas em Paisà (direção Roberto Rossellini, 1946). O conceito de “paisagem” (paesaggio) circulou entre os componentes do grupo da revista Cinema, com o qual Antonioni esteve associado por um breve período durante a década de 40 do século passado, sendo muito mencionado na coincidência de locações entre Obsessão e Gente del Po. Karen Pinkus conta que Giuseppe De Santis, assistente de direção em Obsessão, escreveu um conhecido artigo em Cinema (Por Uma Paisagem Italiana, 1941), onde postulou uma correspondência psicológica entre a paisagem e os personagens do cinema, que parece conter as sementes de uma abordagem neorrealista. Por outro lado, Antonioni publicaria em Cinema um ensaio fotográfico (Para um Filme Sobre o Rio Po, 1939) antecipando Gente del Po onde demonstra maior interesse nas possibilidades do cinema (e da fotografia) para realmente moldar, não a paisagem no sentido de De Santis, mas o ambiente (locações, cenários construídos/alterados por um arquiteto ou diretor de arte e o “ambiente natural” habitado por seus personagens) (2).


“Primeiro filme
a cores de Antonioni
O DesertoVermelho 
é sobre devastação
ecológica”

Karen Pinkus (3)


Os filmes de Antonioni não surgem da história ou do personagem, mas de um ambiente, de uma locação. Mas também de certa ambiência, certa sensação de estar rodeado por todos os lados. Além disso, Antonioni se interessa cada vez mais pelo elemento aleatório na filmagem. Como ele próprio explica: “Eu chego à locação num estado fixo de ‘virgindade’. Eu faço isso porque eu acredito que os melhores resultados são obtidos pela ‘colisão’ que acontece entre o ambiente no qual a cena será filmada eu meu próprio estado mental particular nesse momento específico. Eu não gosto de estudar ou pensar sobre uma cena na noite anterior, ou até mesmo dias antes de realmente começar a filmar. E quando eu chego lá, eu gosto de estar completamente só, comigo mesmo, para que eu possa começar a sentir o ambiente sem ter ninguém a minha volta. A forma mais direta de recriar uma cena é entrar em relação com o próprio ambiente; é a maneira mais simples de permitir que o ambiente nos sugira alguma coisa” (4). Desta forma, conclui Pinkus, tudo está misturado, locações, condições meteorológicas, paisagem, e até o tema ou conteúdo do filme.

Do Gelo ao Po 


Ao contrário
de seu filme sobre
o rio Po, Antonioni
admitiu desconhecer o
povo do ártico, o qual
pretendia retratar em
seu filme sobre a
Groenlândia (5)



Pelo que foi colocado em relação ao interesse pelo ambiente, Karen Pinkus considera Antonioni o poeta cinematográfico da “mudança climática”. Se para aqueles que buscam conhecer Gente del Po existe a necessidade de uma grande tolerância (além de procurar cobrir as eventuais lacunas deixadas pelos cortes das censura de Mussolini, temos de nos contentar com uma cópia não restaurada em condições relativamente precárias), que dizer do interesse gerado pela notícia de um roteiro não filmado de Antonioni sobre a mudança do clima na Groenlândia. Baseado num ensaio de Guido Piovene, Antonioni pretendia contar a história de um grupo de pessoas forçado a se deslocar para o litoral e depois para o mar em função de mudanças climáticas. Datado do começo da década de 40, e mais de vinte anos antes de O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, 1964), o cineasta já se propunha filma Green Land a cores – em suas palavras: “Não para ser extravagante ou como mera decoração, mas parte integral da história” (6). De fato, afirmou Pinkus, a mudança é mais bem indicada pelas cores do que por efeitos especiais, edição ou narração: “e ainda que eu possa argumentar que em certos pontos Antonioni talvez force cores (ou objetos) a corresponderem a estados psicológicos, seja por manipulação do cenário, utilização de filtros coloridos ou pintando diretamente a película, em outros pontos – em O Deserto Vermelho articularmente – efeitos de cor irrompem de contenções como estas e começam a agir por si mesmos de forma incontrolável e inesperada” (7).



 Nove minutos
truncados foi tudo
o que restou de Gente 
del Po, a maior parte
se perdeu ou foi
sabotado



Na opinião de Pinkus, está claro que o rio Po forneceu um local ideal para Antonioni explorar a relação especial do cinema em relação à mudança ambiental e a adaptabilidade humana. Sam Rohdie escreveu que esse rio tinha um interesse visual e filosófico para Antonioni. O cineasta usou a neblina e a bruma do rio para distorcer as formas e superfícies, para misturar e alterar as perspectivas, criando uma atmosfera de incerteza e fragilidade. Mas o interesse de Antonioni pela mutabilidade do rio, Rohdie esclareceu, estava mais articulado ao interesse do cineasta pelas possibilidades visuais oferecidas pela mudança do que em suas implicações filosóficas e sociais. Para Noa Steimatsky, já em seu ensaio fotográfico sobre a proposta do filme Antonioni levantou questões sobre a forma como a filmagem em locações complica a relação da ficção com o documentário (8). Em última análise, contudo, Pinkus insiste que tanto Gente del Po como Green Land foram concebidos como filmes a respeito de pessoas. Antonioni se confessou tocado por aquela gente que fazia parte da paisagem desde sua infância. Por outro lado, o cineasta diria numa entrevista (incluída no DVD de O Deserto Vermelho lançado pela distribuidora norte-americana Criterion) que, mais do que os personagens, o meio está na origem do filme (9).

Contextualizando


Para um filme
“cabeça”, O Deserto
Vermelho toca bastante
em questões sensíveis da
economia e da política
italianas da época



Uma das coisas que mais dificulta o entendimento de questões presentes em filmes mais antigos é saber se eventualmente cenas e/ou diálogos se comunicam de alguma forma com a sociedade na qual foram produzidos. O contexto político de O Deserto Vermelho se articula com Gente del Po, pelo menos no que diz respeito ao desenvolvimento da região em torno do rio Po. Nacionalismo e energia são dois elementos de múltiplo significado cultural que marcam a paisagem em torno de Ravenna, ao passo que Antonioni escolheu justamente essa paisagem como pano de fundo de O Deserto Vermelho. Enquanto pano de fundo, Pinkus esclarece que Mussolini já havia (sem sucesso) encontrar petróleo na Itália e suas colônias na África. A gasolina vendida pela AGIP (Agenzia Generale Italiana Petroli, a companhia estatal de petróleo) durante o ventennio Fascista era importada – algumas descobertas chave no período pós-guerra foram um campo de metano em Caviaga (Milão), em 1944; um campo de gás natural próximo a Cremona, 1947, e ainda outro em Cortemaggiore, 1948; este último era tão importante que a gasolina vendida nos postos da AGIP se chamava “supercortemaggiore”, ainda que a maior parte fosse importada. Uma década antes de O Deserto Vermelho, Enrico Mattei foi nomeado presidente da recentemente formada ENI (Ente Nazionale Idrocarburi, a companhia estatal responsável pela pesquisa, produção e transporte de hidrocarbonetos no vale do Po) (10).




O tema de 
O Deserto Vermelho é o
efeito estufa?





Apoiado pela ala esquerda dos Democrata-Cristãos, Mattei encorajou a prospecção no norte da Itália (onde gás natural e metano haviam sido descobertos no início da década de 40), como parte de uma estratégia de defesa dos interesses coletivos e contra os interesses do capital. Quando um grande campo de metano foi descoberto próximo a Ravenna, Mattei implantou uma série de usinas petroquímicas (aquelas vistas em O Deserto Vermelho) – principalmente para fabricação de plástico, borracha sintética, carbono negro (utilizado em pneus) e fertilizantes. Em 1962, Mattei morre misteriosamente num acidente aéreo – polêmica mostrada em O Caso Mattei (Il Caso Mattei, direção Francesco Rosi, 1972). Na opinião de Pinkus, grande parte dos primeiros espectadores de O Deserto Vermelho devem ter visto aquelas fábricas como símbolos do Milagre Econômico (Il boom), assim como o compromisso entre os Democrata-Cristãos e o Estado com o capital privado; sem falar como sintomas deletérios da rápida industrialização. No entanto, seja no caso da usina petroquímica, a usina elétrica e até mesmo o hotel da AGIP onde Corrado ficou hospedado, Pinkus insiste que se trata de combustíveis fósseis e gases do efeito estufa – mesmo que Antonioni o tenha feito sem saber. Curiosamente, observa Pinkus, em vários filmes Antonioni utiliza o mesmo estilo arquitetônico presente no que ficou conhecido como “estilo AGIP” – a decoração dos postos de gasolina/restaurantes de beira de estrada da AGIP -, um modernismo frio que enquadra os personagens em retângulos. “Não obstante, a mera indicação desse contexto amplo cairia no campo da paisagem como tema, se não fosse pelo desenvolvimento no filme de uma poética do ambiente” (11).



Notas:

Leia também:
Roma de Antonioni

1. PINKUS, Karen. Antonioni’s Cinematic Poetics of Climate Change. In: RASCAROLI, Laura; RHODES, John David (orgs.). Antonioni. Centenary Essays. London: Palgrave MacMillan/BIF, 2011. P. 273n36.
2. Idem, pp. 256, 271n8.
3. Ibidem, p. 263.
4. Ibidem, pp. 257-8.
5. Ibidem, p. 260.
6. Ibidem, p. 259.
7. Ibidem, p. 271n26.
8. STEIMATSKY, Noa. Italian Locations. Reinhabiting the Past in Postwar Cinema. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008. P. 2.
9. PINKUS, K. Op. Cit., pp. 261-2, 273n33 e 36, 274n42.
10. Idem, pp. 264-5, 274n45 e 48.
11. Ibidem, p. 265.