22 de mar. de 2013

Satyricon Felliniano



 A pré-estréia nos
Estados Unidos foi no 
Madison Square Garden, 
depois de um show de rock. 
Havia uma sintonia fantástica entre os hippies, as imagens e
o  ar  carregado  de  drogas. 
Uma revelação da  ligação 
entre  a  Roma  Antiga
e  aquele  futuro?

Opinião de Fellini a respeito do evento (1)


Ficção e Realidade

Quando Federico Fellini apresentou seu novo filme em 1969, Satyricon de Fellini (Fellini – Satyricon), muitos imaginaram que o cineasta estava abandonando definitivamente as temáticas que o caracterizaram desde a década de 1950 do século passado. Para quem era lembrado pela nostalgia, teatro de revista e circo, em Os Boas-Vidas (I Vitelloni, 1953), Mulheres e Luzes (Luci del Varietà, co-dirigido por Alberto Lattuada, 1950) e A Estrada da Vida (La Strada, 1954), pelo retrato de Roma em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960), seu novo filme parecia evitar tanto as histórias sobre a Itália contemporânea quanto o caráter autobiográfico. Contudo, Peter Bondanella afirma que A Doce Vida, Satyricon de Fellini e Roma de Fellini (Roma, 1972), formam uma trilogia em torno do significado da Cidade Eterna. Nestas obras devotadas às dimensões mitológicas da mais antiga cidade italiana – centro do governo, local da história mais ilustre do país, lar dos Papas e da Cinecittà -, Fellini não apenas explorou a história de Roma na imaginação ocidental, mas criou imagens surpreendentes e originais dela, que atravessaram a cultura popular do pós-guerra e chegaram até nós (2). “Em sentido figurativo, procurarei operar uma contaminação de pompeiano com psicodélico, de arte bizantina com arte pop, de Mondrian e Klee com arte bárbara... magmática liberação das imagens” (3). (imagem acima, Encólpio prestes a sair do labirinto; abaixo, à direita, Eumolpo resmungando a respeito do estado da arte romana de sua época)







(...) A própria Roma 
é um antigo vaso quebrado,
constantemente sendo remendado
para ficar inteiro,  mas  mantendo insinuações     de     seus 
segredos originais (...)

Federico Fellini (4)





Fellini até afirmou que leu o Satyricon de Tito Petrônio (Titus Petronius) na época de escola, mas na hora de montar o roteiro sua releitura não foi muito sistemática. Sabe-se que o texto de Petrônio é fragmentário, mas a questão não é essa. O ponto é que Fellini nunca realizou uma leitura profunda das obras literárias que se propôs a adaptar. Do texto original de Petrônio, apenas a cena do banquete (que também vem a ser a mais completa no próprio original) foi fidedignamente reproduzida no filme. Antes de mais nada, o cineasta italiano considera tudo sobre esse passado longínquo algo tão inverossímil que ele chegou a classificar seu Satyricon como uma obra de ficção científica (com a diferença que, ao invés de apontar para o futuro, falará do passado imemorial). Ao relacionar filmes históricos e fábulas apenas à imaginação, Fellini dizia sentir-se livre para explorar o reino da fantasia sem precisar se amarrar a regras do tempo presente (muito mais difícil de fantasiar). Em Satyricon de Fellini, o cineasta mostrou um tempo tão remoto em relação ao nosso que não podemos nem mesmo imaginar como era. Contudo, Fellini deixou bem claro: “Eu estou interessado na estrutura do enredo e na realidade apenas na medida em que servem à imaginação. Mas a realidade, ou melhor, a ilusão de realidade, é necessária mesmo na imaginação, ou o espectador não conseguirá simpatizar ou criar uma empatia” (5).

Entre o Estático e o Móvel




Paradoxalmente,
a  estrutura  do  filme
parece       mais      governada 
pela mitologia cristã do Novo 
Testamento (pecado, punição, 
expiação) do que pelo
paganismo (6)





Para Bondanella, não é difícil concluir que Fellini se serviu de um texto clássico para fazer comentários sobre o mundo moderno, assim como A Doce Vida empregou uma história moderna para sugerir o quanto perdemos de nosso passado (7). A fragmentação do texto original até estimulou a sempre rápida fuga de Fellini para o reino da fantasia. Glauber Rocha, que elogiou A Doce Vida como sendo o único filme depois da Segunda Guerra Mundial que revolucionou o moralismo (sobretudo católico) e abriu novos caminhos eróticos. Contudo, Rocha não gostou de Satyricon de Fellini porque concluiu que o cineasta italiano não sabia fazer cinema (porque não filmou com zoom!) (8). Tomando um caminho oposto, Bondanella afirma que o que aconteceu foi que Fellini mudou radicalmente seu estilo de filmar em Satyricon, buscou a distância e a alienação mais do que a identificação com os personagens. Como resultado, a câmera característica de Fellini (que Bondanella classificou como “móvel”) foi substituída por uma série de tomadas bastante estáticas. De fato, concluiu Bondanella, o plano lateral em movimento que segue Gitão e Encólpio através do bordel romano está quase fora de lugar na atmosfera irreal de um filme repleto de planos estáticos. Segundo Bondanella, o abismo cronológico entre a Antiguidade decadente e o mundo atual será transposto por uma “ponte felliniana” que, como sempre nos filmes do cineasta italiano, não aponta para um final feliz tranquilizante: “mito eterno: o homem de pé sozinho diante do fascinante mistério da vida, todo o seu terror, sua beleza e sua paixão” (9).







As sequências
do  hermafrodita
 e  da  bruxa  Oenothea
sugerem que a religião pagã
foi    mais    dominada    pela
feitiçaria e a mágica do
 que por qualquer
força moral (10)







De acordo com Bondanella, Fellini ligou os vários episódios discrepantes através da visão de um mundo pagão caótico, desumanizado e em desintegração, com importantes analogias para nós hoje. Tudo isso concentrado em duas preocupações principais: a situação da arte na Roma Antiga e os mitos antigos dos tempos pagãos. Uma crítica em relação ao teatro romano se junta às reclamações de Eumolpo, para quem as relíquias do passado nos museus deixam a arte romana de então confusa e envergonhada. Na opinião de Bondanella, Eumolpo parece ser o único personagem genuinamente comovido pela recitação das tragédias clássicas gregas durante o banquete de Trimálquio (imagem abaixo). Fellini estaria seguindo uma dica do próprio Petrônio ao reduzir um épico com Ulisses às proporções cômicas  de Encólpio: ao invés de uma saga na volta ao lar, uma busca sexual para curar sua “espada sem corte”. Encólpio até encontra o Ciclópe, mas é na figura do caolho Lichas (o parceiro homossexual com quem se casa) que ocupa o lugar da fera mitológica. Quando está no labirinto enfrentando o Minotauro, que acaba tirando a máscara e oferecendo seu amor homossexual, enquanto Ariadne foi reduzida a uma mera prostituta.




“(...) Encólpio comete uma transgressão e sua impotência, o oposto da ressurreição da carne, é a punição para a qual ele busca redenção. O casamento de Lichas e Encólpio soa como a paródia de um sacramento pré-cristão. Assim como a visita ao hermafrodita representa o equivalente pagão de uma peregrinação a um santo, adoração pelos crentes que esperam obter um milagre de seus poderes e que nos lembram dos crentes modernos em Noites de Cabíria [Le Notti di Cabiria, 1957] e A Doce Vida, procurando em vão por um milagre que nunca acontece. A sequência de encerramento, a ingestão do corpo de Eumolpo por seus herdeiros, é uma paródia clara da eucaristia cristã. É muito significativo que os jovens, que Fellini apresenta como ancestrais dos hippies da Piazza di Spagna e que estão em busca de uma nova moral em nossa época, rejeitem esse horrível sacramento. Eles levantam âncoras para novas terras, novas aventuras e, presumivelmente, padrões de conduta novos e formulados de maneira incompleta, que ainda não calcificaram em novas leis e tradições (...)” (11)

Do Peplum ao Corpo Nu 



Um   monstro
marinho em forma
 de baleia pescado  em   
Satyricon de Fellini não 
estaria no texto de Petrônio,
só   pode   ser   um   parente
do    monstro    marinho 
em   forma   de  arraia
  pescado no  final de  
A Doce Vida!





Geralmente, e o próprio cinema italiano é culpado disso, quando buscamos filmes que nos mostrem a Antiguidade Clássica, nos deparamos com gladiadores, princesas romanas ou gregas perseguidas por monstros e salvas por lutadores musculosos. Encontramos também reis conquistadores lutando contra os povos que insistem em resistir ao seu domínio (normalmente denominados “bárbaros”). Sem esquecer, é claro, daqueles com monstros de efeitos especiais (os exemplos mais antigos eram feitos com bonecos de massa plástica, cujo movimento era obtido pela técnica de stop motion). Peplum era o nome deste filão mercadológico, também conhecido pelo nome de “capa e espada”. Embora esse tipo de filme possa ser encontrado desde o cinema mudo italiano, ele é mais conhecido como a tendência que antecedeu à moda do faroeste espaguete no cinema italiano. Esses “espetáculos mítico-históricos” construíram uma espécie de ponte entre o filme histórico e o filme de ação. Hollywood não ficou de fora, Ben-Hur (direção William Wyler, 1959) é um clássico do gênero, tendo sido filmado justamente na Itália (porque era mais barato). Satyricon de Fellini também é ambientado nessa época imemorial dos homens-deuses e das mulheres-rainhas-bruxas-prostitutas sagradas. Contudo, de acordo com Àngel Quintana Satyricon de Fellini é um anti-peplum. Nada de heróis musculosos, apenas Encólpio. Para Quintana, a Roma concebida por Fellini não é real no sentido histórico, e muito menos mítica (à maneira dos Pepluns e suas mensagens de virilidade masculina, no fundo homo-erotismo enrustido); mas uma Roma espectral, capital de uma civilização em crise devorando a si mesma (12).






Satyricon
de Fellini foge
  do  padrão dos  Pepluns 
que até então apresentavam
a Antiguidade como um
tempo heróico 
e mítico






Anti-peplum também porque, apesar da arquitetura labiríntica dos cenários, Satyricon de Fellini não é um filme de ação no sentido tradicional; a ação é interna, intensiva, aquela arquitetura forma o espectador a ser-no-mundo. Resgatando uma observação de André Bazin e uma hipótese de Gilles Deleuze, Angelo Restivo procurou compreender os meandros dos cenários de Satyricon que Glauber Rocha pareceu desdenhar (porque pensou apenas no movimento de câmera?) (13). Bazin destacou a cena final de Noites de Cabíria, quando a personagem de Giulietta Masina olha direto para a câmera (isto é, para nós). Restivo percebeu que Bazin não deu nenhuma importância ao grupo que rodeava Cabíria e que a levou com sua música. Para Deleuze, a relação mútua entre vida e espetáculo em Fellini acontece com uma expansão infinita (nós entramos em nós mesmos através do olhar de Cabíria dirigido a nós, assim como ela recebe os músicos que a rodeiam como um olhar direto dela da vida sobre si mesma). Na opinião de Deleuze, Fellini não quer saber onde estão as saídas, só as entradas. O italiano começou realizando filmes de andanças (fotonovela, foto-investigação, music-hall, festas...), onde só se fazia fugir, partir, ir embora. Cada vez mais Fellini realizará filmes onde o que se fará é entrar num novo elemento, multiplicar as entradas. Deleuze esclarece: há entradas geográficas, psíquicas, históricas, arqueológicas, etc (14).









Fellini 
não estava em
busca de algumas
saídas, mas de 
entradas









Sejam entradas no mundo dos palhaços ou em Roma. Às vezes, continua Deleuze, uma entrada é dupla, como na passagem do Rubicon em Roma de Fellini, trata-se de uma evocação histórica, mas também é cômica, por conta de uma lembrança da escola. Em Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963), temos lembrança de infância, pesadelo, distração, devaneio, fantasma, já-vivido. “(...) Daí a apresentação em forma de alvéolos, as imagens emparedadas, os compartimentos, os nichos, camarotes e janelas que marcam Satyricon, Julieta dos Espíritos [Giulietta degli Spirit, 1965], A Cidade das Mulheres [La Città delle Donne, 1980] (...)”. Desta forma, explicou Restivo mais preocupado com questões topográficas, o espetáculo, que está sempre em expansão na obra de Fellini a ponto abranger tudo, encontra uma representação nas imagens de espaços particulares que são continuamente divididos entre entradas e saídas, que não são apenas teatrais (embora Restivo insista que “alas” teatrais são centrais na construção do espaço nas boates de Fellini, por exemplo), mas geográficos, psíquicos, históricos, arqueológicos... Uma topografia de Roma nesses termos teria sido alcançada em A Doce Vida. Roma se torna repleta de “buracos” (sejam as ruas, sejam os corredores, os porões, etc.) que levam uns aos outros. (imagem abaixo, o bordel)




“(...) Uma imagem tornada literal por Fellini na sequência do bordel em Satyricon, onde os ‘quartos’ parecem ser cavados na pedra e são apresentados para nós numa tomada de movimento lateral [lateral dolly shot] que revela uma sucessão de quadros ou ‘especialidades’. Esta visão – de que o cinema de Fellini é constituído por uma imagem que se divide e prolifera infinitamente – nos ajuda a compreender porque, nos filmes de Fellini depois de meados dos anos 60, as cenas se contraem para dimensões cada vez menores, a ponto de que críticos (norte-americanos) consideram a obra posterior de Fellini como ‘indisciplinada’ ou ‘auto-indulgente’” (15)





É curioso
que, para um cineasta
perseguido pela Igreja Católica
acusado de obscenidade em seus 
filmes  apenas   uma    vez   ele 
 tenha  mostrado  um 
nu total






Poderíamos até dizer que Fellini abre em si mesmo uma dessas entradas de que nos falou Deleuze ao liberar a nudez em seu Satyricon. Gérard Legrand nos lembra que, para Fellini, uma mulher nua é uma monstruosidade tão interessante quanto um caolho ou um anão (que, aliás, estão presentes em Satyricon de Fellini). Além disso, a nudez feminina para o cineasta italiano se restringiu basicamente à obsessão mamária, com Anita Ekberg em As Tentações do Doutor Antônio (episódio de Boccaccio ’70, 1962) e a dona da tabacaria em Amarcord (1973), no erotismo de Saraghina em Fellini 8 ½, no bordel em Roma de Fellini e nas peladas em Cidade das Mulheres. Sem falar na anatomia do corpo feminino sugerido no tobogã-vagina deste último filme, o ídolo-gôndola em Casanova de Fellini (Il Casanova di Federico Fellini, 1976) e na lua sendo chamada de “cu de pedra” em A Voz da Lua (La Voce della Luna, 1990). Apesar desses exemplos (e de outros tantos que remetem mais ao erotismo do que à nudez do corpo), Legrand afirma que apenas uma vez Fellini abordou realmente a questão da nudez (não apenas feminina), foi em seu Satyricon. É claro que vemos muitos tapa-sexo, e o sexo gigante da bruxa também não será mostrado claramente. Contudo, é neste filme que encontraremos a única cena de nu integral na obra de Fellini. Trata-se da escrava negra que se entrega a Encólpio e Ascilto (16).

De Little Nemo a Heligábalo 



(...) Acho [algumas]
transposições de uma arte 
para outra monstruosas, ridículas, 
fora de propósito. Minhas preferências
são  por  temas  originais  escritos para o
cinema.   (...)   Interpretação   literária   de
eventos   não   tem   nada   a   ver   com
a     interpretação     cinematográfica   
dos     mesmos     eventos.    São 
dois  métodos  de  expressão 
completamente distintos”

Federico Fellini (17)




É verdade que a estética de Satyricon de Fellini (assim como também é o caso de Os Palhaços , I Clowns, 1970) deve muito à influência de quadrinhos como Flash Gordon (realizados por Alexander Raymond, 1909-56) e Little Nemo (a história de um garoto que vai dormir e tem sonhos fantásticos, realizados por Winsor McCay, 1869-1934) sobre o cineasta quando ainda criança (18). Fellini admitiu tudo isso sem problemas, mas achou um exagero quando sugeriram que ele deveria ser homossexual ou bissexual, uma vez que em seu Satyricon a homossexualidade é bastante direta. O mesmo tipo de lógica já havia levado jornalistas a concluírem que Fellini gostava da vida fútil da via Veneto entre celebridades, já que as havia retratado em A Doce Vida (19). Quanto a esse caso, vale lembrar a relação direta que se traçava (e da qual Fellini não reclamou) entre o personagem do jornalista frustrado vivido por Mastroianni, o fato de este ator ser considerado um alter-ego de Fellini, e a relação deste personagem com o frustrado Moraldo, em Os Boas-Vidas. Contudo, ainda que seu Satyricon não seja considerado um de seus filmes autobiográficos, seria razoável esperar esse tipo de confusão em torno de sua figura, uma vez que ele mesmo sempre pareceu interessado em criar uma zona cinzenta entre sua autobiografia e seus filmes/personagens. Embora também não se deva esquecer que o próprio cineasta já se referiu a si mesmo como um grande mentiroso.




(...)  Se  eu  quero
 retratar  um  lunático,
  como  em  A Voz da Lua,  
eu não tenho de ser  maluco  
ainda que em minha profissão isso possa ser uma vantagem 
e alguns também tenham sugeridos que eu era”

Federico Fellini (20)





Tullio Kezich considerou infrutífera a especulação quanto a considerar ou não Satyricon de Fellini uma reflexão autêntica a respeito do mundo romano decadente. As partes menos surpreendentes do filme, insistiu Kezich, são aquelas que oferecem conexões históricas (o assassinato do imperador, o suicídio dos nobres e o banquete de Trimálquio). Satyricon de Fellini poderia ser comparado a Heliogábalo, ou o Anarquista Coroado (1934), de Antonin Artaud (1896-1948), no sentido de que o filme ajuda a esquecer a história que aprenderam. Para começo de conversa, a ambientação da história de Fellini em Roma estaria incorreta, já que no texto de Petrônio (escrito, presumivelmente, no primeiro século d. C.) (21) tudo acontece nas províncias – nas cidades da chamada Magna Grécia (região bem ao sul da Itália, que havia sido colonizada pela Grécia séculos antes), muito diferentes da capital. Com relação à diferença entre seu Satyricon e os filmes anteriores, Fellini explicou que as obras realizadas antes da crise com A Viagem de G. Mastorna (um filme que o cineasta nunca conseguiu realizar) e de sua doença foram resultado de inspiração, enquanto que com Toby Dammit (episódio de Histórias Extraordinárias, 1968) e Satyricon o cineasta aprendeu a realizar filmes por contrato e ao acaso. Procurando por extras, Fellini fez uma grande busca por rostos entre os açougueiros em matadouros, ciganos acampados nos arredores de Roma, o povo da periferia e os camponeses. Apenas as cenas no mar foram realizadas fora do estúdio em Cinecittà, foi a maior produção no local desde Ben-Hur (22).

Vontade de Fazer Filmes  

 

Nino Rota
foi  de  pouca  ajuda
neste     projeto.    Fellini 
optou   por    usar    músicas
 folclóricas   da   África,   Japão, 
Bali, Afeganistão, Tibete e dos
ciganos húngaros, além de algumas sonoridades
obscuras (23)





Toda a vontade de contratar nomes famosos para o elenco teve de ser refreada por uma simples questão monetária – Fellini queria chamar Boris Karloff para atuar como o Trimálquio, o ator recusaria por motivo de saúde, vindo a falecer naquele ano. Mas havia a necessidade de contratar atores ingleses, já que havia planos de dublar o filme em inglês. No final das contas, Fellini só pedia para que os atores recitassem números. Enquanto o italiano Salvo Randone (que atuou como Encólpio) preferiu recitar um monólogo de Henrique IV, de Luigi Pirandello (1867-1936). Mario Romagnoli (Il Moro), que ficou com o papel de Trimálquio, não conseguia lembrar suas falas e ficou constrangido demais para recitar números (chegou a contar até 138) - como ele tinha um restaurante, pediu para recitar o cardápio. Quando Fellini começou a trabalhar em Satyricon, Alfredo Bini, produtor italiano que havia registrado o mesmo título em 1962, resolveu realizar seu filme na mesma época. Alberto Grimaldi, produtor de Fellini, não conseguiu evitar na justiça. Foi por este motivo que a obra foi registrada como Fellini – Satyricon, como forma de distinguir seu trabalho do Satyricon produzido por Bini e realizado por Gian Luigi Polidoro – este filme chegou a ser elogiado por ninguém menos que Michelangelo Antonioni, mas foi logo proibido em função de uma acusação de obscenidade.






(...) Fellini foi
ao    mesmo   tempo 
 honesto e esperto quando 
disse   que  seu  filme  é  uma 
jornada no desconhecimento, [...]    para     enfatizar    a
anormalidade de seu 
Satyricon (24)






Fellini acreditava que o caráter fragmentário do texto de Petrônio ajudava mais do que atrapalhava a realizar Satyricon, um filme que Jean-Max Méjean considerou de uma “beleza monstruosa” (25). Essa fragmentação, que se reflete em nossa compreensão do mundo Antigo, no fundo nos permitiria aumentar nossa percepção em relação ao mundo contemporâneo que nos cerca. Assim como a fidelidade histórica não responde (além de ser impossível em relação a um passado fragmentário e com parca documentação arqueológica) grande parte de nossas perguntas quando pretendemos adaptar um texto da Antiguidade Clássica, geralmente temos uma visão muito fragmentada de nosso próprio tempo (quando não de nossas próprias vidas). É disso que Fellini está falando quando caracteriza seu Satyricon mais como um filme de ficção científica do que histórico (de resto, nossas próprias vidas poderiam ser vistas como uma grande ficção com um final aberto, da qual só poderíamos concluir algumas poucas coisas baseados naquilo que já nos aconteceu). Por falar em final aberto, lembramos da fala de Deleuze (para quem Fellini só estava interessado em entradas, mas não em saídas) quando Jean-Max Méjean compara as sequências finais de Noites de Cabíria, A Doce Vida, Satyricon de Fellini e Entrevista (Intervista, 1987) (26).







(...)   Liberdade
de   costumes    (ou
decadência?)   [Satyricon
de   Fellini]   foi   o  espelho
do ano de 1969 que, como 
todos sabem, foi um 
‘ano erótico’” (27)






Méjean mencionou um quadro do pintor espanhol Francisco Goya que serviu de inspiração para Fellini (duas velhas com rosto bizarro, uma delas cujo nariz quase cobre a boca; esta última realmente lembra uma personagem de Satyricon). Méjean também chamou atenção para o fato de que o filme começa e acaba com a imagem de um muro (na cena final ele tem afrescos em ruínas), a vida de Roma acontece entre essas duas paredes que vem de encontro ao espectador (é como se não houvesse saída, só entrada!). Fellini comentou que corria o risco de estar certo ao sugerir que a decadente Roma Antiga se parece muito com o mundo no qual ele estava vivendo em 1980: uma mania obscura de aproveitar a vida, a mesma violência, a mesma falta de princípios, o mesmo desespero, a mesma fugacidade. Os personagens de seu Satyricon, como Encólpio e Ascilto, seriam muito semelhantes aos hippies, obedecendo apenas ao próprio corpo, procurando uma nova dimensão na droga e rejeitando os problemas. Quando estamos a ponto de concluir que Fellini nos está dando uma pista sobre a possível articulação entre a Antiguidade e o mundo de hoje, ele fecha a discussão dizendo que todas essas explicações contam muito pouco. De repente, o cineasta mudou de assunto e explicou que com este filme ele redescobriu uma vontade de fazer cinema que acreditava perdida (28). Seria este sopro de vida na carreira de Fellini a única contribuição da ficção da Antiguidade romana para a ficção de sua vida? “Eu ainda quero fazer filmes!”, seria este o verdadeiro significado de Satyricon de Fellini?




“Eu não estou interessado na história do homem como estou na história da imaginação do homem. Eu me descreveria como um contador de histórias. Dito de forma simples, eu amo inventar histórias. Das cavernas de Titus Petronius, aos trovadores e a Charles Perrault e Hans Christian Andersen, eu gostaria de estar nessa tradição com filmes que não são nem ficção nem não-ficção, mas autobiografia aproximada, contos arquetípicos de vida intensificada, contada com alguma inspiração. É isso o que eu tento fazer. Às vezes eu falho, às vezes tenho sucesso, mas raramente desejo ver meu filme depois de terminado porque não acredito que consiga colocar o que sinto totalmente numa tela. Se me desapontar muito com o que ver, talvez isso iniba outra tentativa sincera minha, e apenas aquilo que se faz com o coração vale a pena fazer” (29)


Leia também:

Ettore Scola e o Milagre em Roma

Notas:

1. GRAZZINI, Giovanni. Fellini par Fellini. Entretiens Avec Giovanni Grazzini. Paris: Flammarion, 1984. P. 140.
2. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. Pp. 29-31.
3. FELLINI, Federico. Fazer Um Filme. Tradução Mônica Braga. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. P. 147.
4. Idem, p. 171.
5. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995. P. 171.
6. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008. P. 236.
7. Idem, p. 234.
8. ROCHA, Glauber. O Século do Cinema: Glauber Rocha. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Pp. 261, 269.
9. BONDANELLA, P. 2008. Op. Cit., p. 237.
10. Idem, p. 236.
11. Ibidem, pp. 236-7.
12. QUINTANA, Àngel. Federico Fellini. Paris: Le Monde/Cahiers du Cinéma, 2007. P. 56.
13. RESTIVO, Angelo. The Cinema of Economic Miracles. Visuality and Modernization in the Italian Art Film. Durham & London: Duke University Press, 2002. Pp. 38-9.
14. DELEUZE, Gilles. Cinema 2: A Imagem-Tempo. Tradução Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990. Pp. 110-1.
15. RESTIVO, A. Op. Cit., p. 39.
16. LEGRAND, Gérard. Fellini (Federico). In: BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. 1991. Pp. 158-9.
17. TESTA, Carlo. Masters of Two Arts. Re-Creations of European Literatures in Italian Cinema. Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 2002. P. 46.
18. BONDANELLA, P. 2002. Op. Cit., pp. 10-1.
19. CHANDLER, C. op. Cit., p. 172.
20. Idem, p. 173.
21. MÉJEAN, Jean-Max. Fellini, un Rêve, une Vie. Paris: Éditions du Cerf, 1997. P. 95.
22. KEZICH, Tullio. Federico Fellini. His Life and Work. New York/London: I.B. Taurus, 2006. Pp. 287, 289, 290-2.
23. Idem, p. 294.
24. Ibidem, p. 286.
25. MÉJEAN, J-M. Op. Cit., p. 95.
26. Idem, pp. 96, 100.
27. Ibidem, p. 103.
28. FELLINI, F. Op. Cit., pp. 140, 143, 144-5, 177.
29. CHANDLER, C. Op. Cit., p. 174.