28 de fev. de 2019

Meus Caros Amigos


“Para mim, funerais são a coisa mais cômica que existe. Eu vou ao
 funeral de amigos porque quando vejo outros amigos começo
 a  fazer  piada  com  a  proximidade  da  mortalidade  deles. 
 Este tipo de humor é bastante divertido, não macabro” (1)

Mario Monicelli

Infância Eterna

Amigos desde a juventude, Necchi (tem um bar e uma esposa que apesar de desprezada não o abandona), Perozzi (jornalista, tem um filho e uma esposa que se cansou de ambos e foi embora), Sassaroli (médico, rico, colecionador de prostitutas) Melandri (arquiteto e poeta, tem o hábito de se apaixonar “cegamente” por mulheres, sendo “salvo” várias vezes por seus amigos) e Mascetti (um nobre falido que gosta de dar trambiques até em seus únicos amigos e inventou um dialeto muito particular) são cinco homens de meia idade que vivem em Florença e passam a maior parte do tempo descobrindo maneiras de rir dos outros e de si mesmos. Sempre cantando, a maioria das traquinagens é seguida ou antecedida por uma melodia – especialmente Bella figlia dell'amore, do terceiro ato de Rigoletto (1851), ópera de Giuseppe Verdi, geralmente lembrada por Melandri. Mesmo em sua velhice, não abandonam o comportamento infantil e continuam arquitetando mil trapalhadas. Em certo ponto, Mascetti sofre um ataque que o deixa paralítico. Mas isso apenas serve de estímulo para que o bando faça da clínica geriátrica onde eles mesmos o internaram um lugar inseguro para os outros velhinhos. (imagem acima, Sassaroli se veste de diabo em mais uma armação do quinteto, Meus Caros Amigos 3)

Sinal de Inteligência 


No final da carreira, quando surge o roteiro de Meus Caros Amigos, 
que coescreveria com Monicelli, Pietro Germi seguiu um viés anti-
ideológico, seu espírito zombador mas melancólico se mistura
ao anseio por um estado natural não contaminado do ser (2)


Como muitas comédias italianas da década de 1970, Meus Caros Amigos (Amici Miei, 1975) se apresenta como uma série de vinhetas aleatórias, breves fatias da vida desse grupo de amigos em busca de camaradagem autêntica e alívio cômico. Assim Rémi Fournier Lanzoni define o trabalho do cineasta Mario Monicelli nos dois primeiros dos três filmes da série, explicando também que se trata da reedição da antiga arte da beffa, prática de humor cínica e cruel (ao estilo da Toscana, onde se localiza a Florença do filme) ligada às antigas raízes da farsa medieval, tão ao gosto de Boccaccio em seu Decameron ou dos fabliaux franceses. Monicelli defende a crueldade e cinismo de certas cenas de humor afirmando que “a falta de compaixão é um sinal de inteligência: é aquele que aguça a mente. Eis porque, entre o riso e a tragédia, escolhi, e continuo a escolher, o riso” (3). Suas ações acabaram tornando-se parte da cultura popular italiana, como a cena na estação de trem Santa Maria Novella – fingindo dar adeus, os cinco adolescentes de meia idade esbofeteiam os passageiros que estão nas janelas (4). 

“Não resta dúvida de que os filmes cômicos dos anos 1970 começaram a perder seu brilho talento para chicotear e insultar uma sociedade que apesar de tudo foi capaz de sustentar um forte sistema de valores. Ainda que os cineastas italianos parecessem ter menos prazer em contar suas histórias, também é verdade que as comédias dos anos 1970 talvez representem as imagens instantâneas mais emocionantes desses monstros tristes (por exemplo, em Meus Caros Amigos, de Monicelli): o descolamento do tecido social da Itália; a recessão que se seguiu ao boom econômico e seus efeitos nas classes mais fracas e desprivilegiadas; o colapso dos relacionamentos tradicionais de família; o surgimento de uma nova forma de religião secular e – acima de tudo – uma nova religião sexual; a perda total de confiança no governo e nos políticos; grupos sociais inteiros retornando a condições de vida sub-humanas; depressão; uma deficiência material e emocional por toda a sociedade italiana; um colapso na comunicação social; e uma enxurrada de insegurança e medo. Muitas comédias desse período parecem ter sido contaminadas pelos filmes de terror. Não obstante, muitos cineastas ansiavam pela euforia da década anterior, as comédias realizadas durante os anos 1960 – e mesmo até 1975 – nos fornecem uma visão global que poderia ter sido utilizada num relatório anual de estatísticas sociológicas documentando a transformação na sociedade italiana” (5)



 Originalmente, o papel do jornalista Perozzi era para Ugo Tognazzi
  e o falido Mascetti seria para Marcello Mastroianni. Contudo, 
  quando resolveu optar por atuar em A Comilança (1973), 
  o francês Philippe Noiret assumiu o personagem (6)


De acordo com Lanzoni, talvez a marca registrada do humor de Meus Caros Amigos seja representada pela invenção da arte juvenil da supercazzola, aperfeiçoada por Ugo Tognazzi (que atuou como Mascetti, o falido), num discurso em que frases sem sentido são utilizadas para confundir os interlocutores – neologismos meio inventados e palavras meio comuns em italiano compõem um discurso completo que leva a comunicação a um estado de total confusão. Outra invenção que cativou o público da época foi a zingarata (passeios ciganos ocasionais), perambulações sem destino, objetivo, planejamento ou regras. Dos muitos exemplos, poderíamos citar três. No primeiro filme resolvem se passar por especialistas que chegam numa pequena cidade e vão marcando locais a serem demolidos. Quando todos estão em pânico, o grupo dá a missão por cumprida e desaparece. No segundo filme, eles se passam por uma equipe de manutenção da Torre de Pizza e fazem os turistas os ajudarem a impedir que a torre desabe. A seguir, resolvem participar de um concurso de canto, no qual substituem a letra original da música por conteúdo obsceno.
Apesar do sucesso de público, muitos críticos condenaram o uso indiscriminado de linguagem ofensiva, ao que Monicelli respondeu: “A beffa é sempre vulgar... O toscano é vulgar... Uma comédia sem linguagem chula é impensável, na época parte da linguagem cotidiana. Atores falando uma linguagem inventada teria atenuado a força da comédia, a qual emana do povo e transpira realidade. A vulgaridade é necessária. Ela se torna o elemento em torno do qual a amizade dos protagonistas é construída, levando-os a estabelecer um rito de camaradagem baseado numa associação sem limites” (7)
Crítica ao Infantilismo


 Vinte anos antes, Fellini havia realizado algo 
similar em  Os Boas Vidas  (I Vitelloni, 1953)


Meus Caros Amigos, maior sucesso de Monicelli durante a década de 1970 aconteceu quase por acaso. Pietro Germi, que também estava elaborando o roteiro juntamente com ele, iria dirigir o filme, mas ficou doente e pediu a Monicelli que assumisse a direção. Após alguma hesitação, Germi admitiu que Monicelli mudasse o enredo da cidade de Bolonha para Florença, vindo a falecer no primeiro dia de filmagem. Curiosamente, acompanhando as duas sequências, que alcançariam a década seguinte (o último filme foi dirigido por Nanni Loy em 1985), nota-se que a morte é o ponto conclusivo da história. Lanzoni explica que, naquele ano de 1975, a Itália vivia uma fase de desilusão durante os anos de chumbo (digamos que se tratava de uma democracia instável), cuja consequência foi a falta de envolvimento das pessoas com a comunidade e a sociedade. Neste contexto, Monicelli apresentou um filme focado no valor da amizade incondicional, a camaradagem e o riso de cinco amigos.
Lanzoni enxerga certa semelhança entre a empreitada de Meus Caros Amigos e Os Boas Vidas, realizado por Federico Fellini duas décadas antes, na medida em que o tributo à amizade vem acompanhado por uma desmistificação de sua própria imagem. Em Meus Caros Amigos, a série de momentos lúdicos e brincalhões louvando a vida vem acompanhada de uma séria condenação do infantilismo. Os cinco evitam sistematicamente assumir responsabilidades, crescer e se integrar na sociedade. Alberto Cattini resumiu o quadro dizendo eu ao se defenderem do mundo e dos homens, esses personagens cristalizaram a regressão. Na opinião de Lanzoni, esse clima pessimista e desiludido é reforçado pelas imagens da Florença da classe operária, muito distante dos cartões postais para turistas. O que se vê são céus de chumbo e clima de inverno, incluindo cenas reais da catastrófica enchente que abalou a cidade em 1966.

Era para ser Engraçado


(...) A necessidade de produzir riso,  ironia e cinismo
de   maneira   a   afastar   a   imagem   da   morte   estava
no  centro  da  lógica [de Meus Caros Amigos] (...)  (8)


Lanzoni insiste na ideia de que a alta frequência de gags e risadas produzidas pelo filme está contaminada com numerosos elementos de melancolia e tristeza. A comicidade dos protagonistas possuiria uma dimensão de amargura e tristeza. Ao final de cada ato de rebelião, explica Lanzoni, um véu de tristeza cai sobre o grupo, como o espetro da morte que vagarosamente se aproxima. De fato, a commedia all’italiana é permeada pelo desencantamento e perda de esperança que caracterizava a Itália durante aqueles anos. Assim, a cumplicidade daquele grupo serve como uma resposta à crise existencial gerada pelo ambiente apático e indiferente. Os cinco amigos experimentam as contradições de uma existência normal contra a nostalgia dos desejos juvenis, cuja lacuna afetiva é preenchida pelo ciclo de irmandade muitas vezes materializado ao fugirem da família e do trabalho. A morte é a única coisa levada a sério por eles, já que não consideram que a vida deva sê-lo. 
É Gian Piero Brunetta quem explica que “enquanto explorava uma ampla gama de temas, [Mario Monicelli] sempre enxergou o mundo em tons sombrios” (9). Por outro lado, de acordo com Lanzoni, foi para homenagear Pietro Germi que Monicelli utilizou a sequência do funeral de Perozzi para aprofundar o simbolismo da morte através do elemento cômico. Na opinião do próprio Monicelli, a associação do funeral com o humor é óbvia: “Para mim, funerais são a coisa mais cômica que existe. Eu vou ao funeral de amigos porque quando vejo meus outros amigos começo a fazer piada com a proximidade da mortalidade deles. Esse tipo de humor é bastante divertido, não macabro” (10). Segundo Lanzoni, para os autores de Meus Caros Amigos, o ato de exorcizar a morte através do humor, seja na vida real ou na tela, foi o derradeiro ato de escárnio. De certa forma, concluiu Lanzoni, era uma proposta óbvia prolongar o estado de felicidade infantil esquivando-se das responsabilidades e vicissitudes de uma vida adulta aborrecida, incluindo a sombria imagem da morte. Aqui o público italiano da época se deparou com uma conclusão incomum, a precariedade de uma humanidade sem perspectiva real, distante dos finais felizes das comédias italianas da década de 1950 e sua costumeira dimensão edificante.

Leia também:


Notas:

1. LANZONI, Rémi Fournier. Comedy Italian Style. The Golden Age of Italian Film Comedies. New York/London: Continuum, 2008. P. 209.
2. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A guide to Italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. P. 221.
3. LANZONI, R. F. Op. Cit., pp. 205-6.
4. Idem, p. 204-9.
5. BRUNETTA, G. P. Op. Cit., p. 185.
6. LANZONI, R. F. Op. Cit., p. 225n14.
7. Idem, p. 208.
8. Ibidem.
9. BRUNETTA, G. P. Op. Cit., p. 186.
10. LANZONI, R. F. Op. Cit., p. 209.