30 de jan. de 2008

Fellini: Infantilismo e Fascismo na Sociedade Italiana





“A melhor e
scola de
cinema é ver filmes”

Bernado Bertolucci
cineasta italiano








Federico Fellini inovou ao abordar em seus filmes o movimento liderado por Benito Mussolini, destacando-o daquele capitaneado por Adolf Hitler. Ao contrário de Roberto Rossellini e do neo-realismo em geral, Fellini não tratou da guerra em si, da catástrofe. Em vários de seus filmes, insere elementos que mostram a profunda imbricação entre as noções fascistas e a visão de mundo italiana. Para Fellini, a relação entre fascismo e cinema também está ligada ao caráter de espetáculo das aparições do primeiro. Mais uma das lições do regime italiano; embora o nazismo também tenha se destacado nesse particular, não podemos esquecer que o fascismo precedeu seu correlato alemão em 10 anos.

“Em Os Palhaços (1970), o chefe da estação apela para um oficial fascista, a fim de calar a bagunça dos colegiais. Evidenciam-se, então, na análise de Fellini, tanto a raiz doméstica, quanto o objetivo pedagógico do fascismo, como instrumento de dominação, adequado a uma população infantilizada” (1). Em Roma de Fellini (Roma, 1971), o diretor insere uma locução num jornal cinematográfico, onde o fascismo é apresentado como algo autenticamente italiano. Em Amarcord (1973), há um entrelaçamento inovador de temas tradicionais do cinema italiano como o Fascismo, o amor e a família (2). Na opinião de Fellini, viver durante a vigência de um Estado repressor fez com que as pessoas não desenvolvessem sua individualidade, apenas defeitos patológicos. O Fascismo seria uma degenerescência a nível histórico de uma fase (a adolescência) do desenvolvimento individual. Ainda segundo o diretor, não podemos lutar contra essa infantilização fascista se não a identificamos com nosso eu ignorante, miúdo e impulsivo. Os personagens de Amarcord são psicológico e emocionalmente fascistas: ignorantes, violentos, exibicionistas. Examinados individualmente, exibem apenas... 

“Manias, tiques inócuos: ainda assim, é o suficiente para os personagens se reunirem para uma ocasião como essa [a visita do federale], e lá, de excentricidades aparentemente inofensivas, suas manias adquirem um significado completamente diferente. A reunião de 21 de abril, assim como a passagem do Rex [o navio de Mussolini], a queima da grande fogueira no início [do filme], e assim por diante, são sempre ocasiões de total estupidez. O pretexto de estar junto é sempre um processo de nivelamento... É apenas o ritual que os mantêm juntos. Uma vez que nenhum personagem possui um senso real de responsabilidade individual, ou têm apenas belos sonhos, ninguém tem força para não tomar parte no ritual, permanecer em casa fora dele.”(...)”A província de Amarcord é aonde somos todos reconhecíveis, o diretor antes de tudo, na ignorância que nos confunde. Uma grande ignorância e uma grande confusão. Não que eu queira minimizar as causas econômicas e sociais do Fascismo. Eu apenas quero dizer que hoje o que ainda é mais interessante é a forma psicológica, emocional de ser um Fascista... É uma espécie de bloqueio, um desenvolvimento suspenso durante a fase da adolescência... A Itália, mentalmente, ainda é a mesma. Para dizer de outro modo, eu tenho a impressão de que Fascismo e adolescência continuam a ser, em certa medida, fases permanentes de nossas vidas: adolescência de nossas vidas individuais, Fascismo de nossa vida nacional” (3) 

Diferentemente de outros diretores italianos que trataram do Fascismo, Fellini adotou o ponto de vista cômico. Já foi observado que inicia seus filmes como testemunha de acusação e termina como testemunha de defesa, tratando o passado de forma nostálgica. O sucesso alcançado por Amarcord na Itália sugere uma identificação com essa forma de tratamento do tema. Os italianos identificaram a si próprios no único passado que eles e Fellini tiveram – a Itália de Mussolini era um país muito fechado para o mundo. “Por esse motivo, eram condenados a recordar esse passado com uma mistura de remorso e nostalgia, mas não conseguiam mudá-lo”. (4)  





Fellini definiu a visita do fascista (federale) como a sequência crucial em Amarcord. Ao contrário do que possa parecer aos que não conhecem os detalhes, a sátira não é
apenas um exagero do estilo fascista personificado em Mussolini. Na verdade, Fellini se concentrou na figura do fascista de carteirinha Achille Starace (1889-1945), o verdadeiro autor das coreografias de massa e comportamentos estapafúrdios que caracterizavam as aparições públicas dos líderes fascistas. A cena em que o federale corre pela cidade (e todos o seguem) era típica do comportamento oficial – acreditavam que isso evidenciava sua juventude, vitalidade e disciplina. Starace insistia em utilizar a saudação típica do antigo Império Romano. O passo de ganso germânico também era uma preferência, que ele identificava como o “passo Romano”. Ele frequentemente pulava sobre baionetas e cavalos para demonstrar sua força física e nunca andava a cavalo, sempre trotava (5). Quem já viu cenas de documentários sobre a Segunda Guerra Mundial deve ter reparado uma ou duas cenas onde Mussolini aparece sem camisa, com uma pá na mão cavando buracos; às vezes uma picareta – enquanto Hitler está sempre debaixo de um uniforme.

Segundo Fellini, o Fascismo era capaz de pegar pessoas perfeitamente normais na juventude e fazê-las se comportar de forma imprevisível e perigosa. Ele sempre se refere a “um estado regressivo adolescente”, não apenas em relação ao comportamento das massas, mas também em relação à repressão sexual. O Fascismo só tolerava o sexo no casamento ou com prostitutas – os bordéis eram regulados pelo Estado. Masturbação e homossexualismo não eram tolerados. A culpa acompanha o sexo na vida de Amarcord. Gradisca (imagem no início do artigo), o objeto de desejo de todos os homens da cidade, deixa clara a conexão entre uma moral sexual reprimida e o Regime Fascista, quando vai ao êxtase com a simples visão do federale desfilando aos trotes através da multidão. A vadia Volpina (imagem abaixo), a ninfomaníaca da cidade, vive solta pelas ruas. Fácil demais para os homens, talvez por isso a desprezem. No fim, talvez ela seja a única personagem que é de todos e de ninguém.  




Fellini mostra, em Roma de Fellini e Amarcord, como o fascismo, substituindo os pais na tarefa doméstica de criação dos filhos, impõe um adestramento das crianças. Decorrente dessa situação é a própria infantilização dos adultos. O Nazismo parece ter aprendido a lição, não esqueçamos da Juventude Hitlerista. No Nazismo, produziam-se filmes com o intuito específico de desqualificar a autoridade paterna e materna, indicando o Partido como o melhor educador e Hitler como único pai. Nas palavras de Fellini, “ainda hoje, o que mais me interessa é a maneira psicológica, emotiva de ser fascista: uma forma de bloqueio, algo como ficar preso à adolescência…” (6).

“Sobre os laços recíprocos do fascismo e da cultura italiana, diz Fellini: ‘O fascismo fe
z parte de minha paisagem, desde cedo. Com todas as demais imposições, o pai, a mãe e o padre, que era também o hierarca [autoridade eclesiástica]. Por outro lado, naquela província romanhola [a região onde Fellini nasceu], um pouco estúpida e obscura, quem poderia imaginar que se pudesse viver de outro modo? (…) Não havia como imaginar que Nenni estivesse no exílio, e Gramsci, na prisão. Em cima da cátedra [a cadeira do mestre] estava essa espécie de espantalho, com a caçarola na cabeça [Mussolini de capacete]; do outro lado, o Rei, com um penacho de plumas, no meio, o Papa, e abaixo, pequeno, pequeno, o crucifixo. Esta era toda a realidade. Política e metafísica”. (7)

 
Leia também:  

Mussolini, o Cipião Africano 
Federico Fellini e sua Biografia: Mitos e Verdades 
Fellini e os Trapaceiros do Crucifixo

Notas: 

1. MARTINS, Luiz Renato. Conflito e Interpretação em Fellini. São Paulo: Edusp, 1993. P. 71.
2. Idem, p. 68.
3. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. P. 128.
4. Idem, p. 130.
5. Ibidem.
6. MARTINS, Luiz Renato Op. Cit., p. 71, n.39.
7. Ibidem, p. 70, n.38. 

29 de jan. de 2008

O Porteiro da Noite


Viena, Áustria, 1957. Um ex-ofical das SS trabalha disfarçado como porteiro noturno de um hotel. Ele faz parte de uma organização secreta de ex-nazistas que eliminam todos aqueles que podem identificá-los e denunciá-los para os exércitos que ocuparam o país após a derrota de Hitler. Certo dia surge no hotel uma mulher. O porteiro e ela se reconhecem imediatamente. Eles tinham uma relação sadomasoquista quando ela era prisioneiro no campo de concentração onde ele servia. Ela não só não o denuncia como acaba voltando para ele, que tenta desesperadamente protegê-la da organização secreta – passam a viver confinados em um dos quartos do hotel. O filme mostra a lenta degradação física e mental a que ambos se submetem para manter viva sua relação.


Lançado em 1974, entre outros méritos O Porteiro da Noite (Il Portiere di Notte), dirigido pela cineasta Liliana Cavani, tem a capacidade de nos fazer repensar e problematizar mais profundamente as relações entre as pessoas. No fundo, o filme trata da complexidade das relações humanas, exemplificada pela relação sadomasoquista entre os protagonistas. Podemos dizer que o filme também problematiza, ou permite uma problematização, da forma como o cinema e a televisão podem (ou desejam) distorcer a realidade que pretendem mostrar.

Ficamos tão perplexos com essa insólita relação entre uma prisioneira de campo de concentração e um nazista que tomamos a parte pelo todo. O escândalo talvez nem seja o sadomasoquismo posto a nu, mas a percepção de quão profundamente estamos ligados mais a clichês e estereótipos sobre o que é a vida do que a ela propriamente.

Acostumamo-nos a ver, transplantados (e é mesmo como se fosse uma operação cirúrgica em nossas mentes) para os filmes de guerra e sobre o Holocausto, um desfile de clichês que gira em torno da oposição Bem x Mal. Os soldados americanos estão sempre do lado do Bem, enquanto os nazistas representam o Mal – como se soldados americanos nunca tivessem cometido atrocidades no campo de batalha; às vezes eu acho que eles nem falavam palavrões. Quando um soldado americano ou inglês não larga sua arma até o último tiro, é porque são heróis. Quando um soldado nazista faz o mesmo é porque ele é um fanático. Esta maneira de recontar a história não se restringe aos filmes ficcionais, muitos documentários abordam a questão dessa maneira. Referem-se de forma diversa quando falam da resistência feroz no campo de batalha em relação aos americanos e ingleses ou aos soldados nazistas. Na verdade, este é o discurso daqueles que venceram a guerra. Se os nazistas tivessem vencido, fariam o mesmo. A verdade não interessa!

Quando o caso é com os judeus, invariavelmente eles são as vítimas. Sempre que um filme mostra alguém que discorda de um judeu, essa pessoa passa a ser taxada de anti-semita – e Liliana Cavani certamente sofreu tal acusação. É como se os judeus estivessem sempre certos. É como se ninguém pudesse discordar dos judeus a respeito de coisa alguma – brigar então nem se fala. Qualquer coisa é motivo para os judeus afirmarem que estão sendo perseguidos. E nem vou entrar no mérito da atitude que o exército israelense adota em relação aos palestinos. Toda essa cortina de fumaça em torno da realidade torna menos evidente a complexidade das relações humanas. A divisão entre Bem e Mal pode facilitar a compreensão da vida ao reduzir tudo ao preto e branco. Só que a vida é cheia de tons de cinza.

É isto que mostra O Porteiro da Noite: a identificação entre vítima e torturador. Prato cheio para análises psicanalíticas, psiquiátricas, antropológicas, sociológicas e filosóficas a respeito do sadomasoquismo, o filme foi muito combatido apenas porque rompia com o estereótipo do Bem contra o Mal, além de colocar uma vítima como agente de seu próprio sofrimento.

Claretta Tonetti traça um paralelo entre O Porteiro da Noite e O Último Tango em Paris, filme dirigido pelo cineasta Bernardo Bertolucci. No que diz respeito ao sadomasoquismo, o filme de Bertolucci seria como que um precursor do filme de Cavani. No Último Tango temos, embora com muito menos ênfase, referências à patente militar de coronel de Paul - personagem de Marlon Brando. Jeanne, a personagem de Maria Scheneider, também se veste com o uniforme dele. No Porteiro, a personagem de Charlotte Rampling vai um pouco mais longe. Além de vestir o uniforme da SS nazista, ela dança para vários oficiais com os seios desnudos. A diferença de idade entre homem e mulher é grande nos dois filmes, o que daria uma coloração incestuosa as relações. No Último Tango, Paul dá banho em Jeanne, enquanto no Porteiro, como um pai ou mãe fariam, o ex-oficial da SS alimenta a mulher com uma colher e depois a veste como se ela fosse uma criança inexperiente. Todos esses elementos como botas longas, armas, quepes e uniformes militares, carregam uma mensagem clara de violência e poder (dominação). (1)

Ao contrário do que seria razoável, o escândalo não foi mostrar uma relação sadomasoquista na tela do cinema, mas mostrar uma vítima de campo de concentração que amava ser torturada por seu homem – o oficial nazista que administrava o campo de concentração onde se conheceram.

Naturalmente não estou sugerindo que todos os judeus e judias gostaram de ser torturados antes de morrer. Também não estou negando o holocausto. Absolutamente não! Entretanto, espremer todas as vítimas do lado do Bem e todos os nazistas do lado do Mal impede a constatação do óbvio: o universo das relações humanas ultrapassa qualquer redução a clichês e estereótipos. A polêmica na época do lançamento de O Porteiro da Noite ilustra muito bem o que acontece quando utilizamos aquilo que são apenas muletas para uma compreensão inicial e limitada do mundo (clichês e estereótipos) como se fossem nossas próprias pernas (nosso espírito crítico).


Leia também:

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz


Notas:

1. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci: the cinema of ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 136. 
 

Pasolini, o Corvo Falante



“Vocês têm o mesmo olhar maligno. São medrosos, inseguros,  desesperados  (ótimo!),  mas  também  sabem como ser
prepotentes
, chantagistas, convencidos, descarados:
prerrogativas pequeno
-burguesas, meus amigos”

O PCI Aos Jovens! (notas em verso para um poema em prosa)
Pier Paolo Pasolini


Pier Paolo Pasolini, pensador italiano do pós Segunda Grande Guerra, detestava a cultura de massas, que considerava uma espécie de doença do consumismo agindo nas entranhas da sociedade italiana. Percebia seus tentáculos mesmo nos movimentos estudantis das décadas de 60 e 70 do século passado, desnudando um espírito burguês que se apossava das mentes (ou nunca havia saído delas) daqueles que supostamente haviam tomado consciência das manipulações à que o povo é submetido pelo sistema. Segundo Pasolini, burguesia não é uma classe social, mas uma doença contagiosa que infecta aqueles que a combatem. Nessa história, uma verdadeira crise moral sem precedentes, todos os operários querem ser burgueses! O pensador é explícito: “a burguesia está triunfando, está tornando burgueses os operários e os camponeses. Através do neocapitalismo, toda a história do mundo passa a coincidir com a burguesia [seus interesses e gostos]”. (1)

“O burguês – digamos espirituosamente – é um vampiro, que não fica em paz enquanto não morde sua vítima no pescoço. Pelo puro, simples e natural prazer de vê-la se tornar pálida, triste, feia, desvitalizada, disforme, corrompida, inquieta, cheia de sentimentos de culpa, calculista, agressiva, terrorista, tal como ele mesmo”. (2)

Pasolini lutava contra um pragmatismo burguês que procurava (ainda procura? Ou, ainda precisa procurar?) apagar as memórias, as lembranças e as contradições (esse motor) da vida, tornando-as inócuas, prontas para as massas (e seu consumismo bovino). Todos ficam calmos e entretidos enquanto estão consumindo; até ao minuto seguinte, quando o vazio de sentido pede mais uma dose, um comprimido, um cigarro, comida, etc. O importante é esquecer (e esquecer-se de si; e de preferência esquecer-se que esqueceu), procedimento chave do infantilismo contemporâneo. “O que, aliás, não é muito diferente do raciocínio de muitos – pós-modernos ou não – que recusam o passado, já que não tê-lo torna mais leve o presente – a síndrome da leveza -, uma dádiva reservada só às crianças”. (3)

Em Gaviões e Passarinhos (Uccellacci e Uccellini, 1965-66), que marca uma virada em sua cinematografia, temos três personagens: um pai, um filho e um corvo falante - que é uma projeção de Pasolini. Pai e filho têm uma mente inocente, mas o animal está sempre fazendo comentários marxistas. Enquanto as aventuras dos dois homens se desenrolam, o corvo não pára de falar, mais preocupado em conhecer e analisar o mundo do que em viver nele. Na cena final, pai e filho concordam em comer o pássaro, mas continuam pela estrada sem saber aonde ir ou o que fazer. Antes da morte do pássaro, Pasolini interpõe material documentário registrando os funerais de Togliatti, símbolo e líder do Partido Comunista Italiano (PCI) (4). E, prenunciando seu futuro, ele próprio, o corvo, é assassinado em 1975.




O corvo se apresenta: “Eu venho de longe. Meu país se chama ideologia, vivo na capital, na cidade do futuro”.(...)”Meus pais são o Sr. Dúvida e a Sra. Consciência”. O corvo resolve contar uma história, nela Pasolini coloca o pai no papel de don Ciccillo, um frei que recebeu de São Francisco de Assis a incumbência de apaziguar a eterna luta entre gaviões e pardais – fatal para os últimos. Don Ciccillo conclui ser impossível conciliar os animais – “porque gaviões são gaviões e pardais são pardais”. São Francisco discorda: “É preciso mudar este mundo, frei Ciccillo; é isso que vocês não entenderam! Andem e comecem tudo outra vez, em nome do Senhor”. Pasolini conta alegoricamente o problemático diálogo entre as classes sociais. Ele mostra que, nessa luta de classes, precisamos compreender que os tempos mudam.

Na opinião de Pasolini, a cultura de massa afasta as pessoas de si mesmas. Primeiro, tornando-as hipócritas e covardes, para então suborná-las com a síndrome da leveza. A espetacularização da política e da religião (mostrada em A Ricota) (5) são apenas mais dois nós dessa corda com a qual nos enforcaremos. Em 1966 declara:

“(…) nessa altura, conheceu-se na Itália o que seria depois denominado cultura de massa, e seus instrumentos, os mass media; foi nesse momento que fiquei assustado e incomodado e não quis mais continuar fazendo filmes simples, populares, porque, caso contrário, seriam de certo modo manipulados, mercantilizados e desfrutados pela civilização de massa. E então fiz filmes difíceis, começando com Gaviões e Passarinhos, Édipo Rei, Teorema, Pocilga, Medéia, filmes mais aristocráticos e difíceis, que seriam portanto dificilmente desfrutáveis”.(6)

Pasolini era muito crítico em relação à Italia. Sua vida na periferia dos grandes centros urbanos, seu discurso (auto-crítico) de esquerda (alertando para a necessidade de abandonar os esquemas tradicionais do marxismo) (7), sua capacidade fina de observação da realidade, são características que alimentaram uma horda de inimigos de todas as cores e rótulos. Ele denunciava uma “cultura do dinheiro” que estaria consumindo a consciência dos italianos, o que era antes um modo de ser, torna-se cada vez mais o único modo de ser – “era como se houvesse uma só maneira de viver, de desejar, de pensar” (8).

Em A Ricota (La Ricotta, 1962-3), o personagem de Orson Welles, um diretor de cinema, numa conversa com um jornalista: “(…) E tem orgulho de ser um homem comum! Um homem-massa. É o que quer seu patrão. Mas o senhor não sabe o que é um homem comum? É um monstro. Um delinqüente perigoso. Conformista! Colonialista! Racista! Escravista!”. (9)

“Em 1964, portanto, Pasolini já anunciava que uma mudança profunda na sociedade italiana estava em andamento. A Itália humanista, do Renascimento, tão amada pela sua cultura (diversificada, celebrada e admirada no mundo todo), achava-se em vias de desaparecer. O que ia se afirmando como a nova Itália (a da “Pós-história”) era uma cultura de homens que só pensavam em produzir e consumir, seguindo à risca os dogmas da nova sociedade”. (10)

Até que ponto estamos, enquanto pessoas ou enquanto brasileiros, realmente dispostos a mudar? Acomodados numa ética covarde que não deixa perceber a virulência com que atacamos todos os atos cotidianos que representam alguma mudança. A marca da mudança nos choca. Por fora, posamos com nossas máscaras de espíritos livres, que vivem e deixam viver. Por dentro, não passamos de burgueses conservadores, que só compreendem/aceitam a vida enquanto estiver amordaçada por clichês e estereótipos. Tudo isso perfeitamente sincronizado com a segmentação mercadológica baseada na lógica do consumo: consumidores e neuróticos, esse é o horizonte da felicidade?

Enquanto isso, duas frases da terra brasileira. Em Triste Fim de Policarpo Quaresma (livro de Lima Barreto, publicado em 1911; filme dirigido por Paulo Thiago, 1997) (11), o próprio afirma: “o Brasil não é para ser descoberto, é para ser inventado”. Terra em Transe (1967), filme do cineasta brasileiro Glauber Rocha, mostra Eldorado, república fictícia mergulhada em corrupção. De repente, uma pergunta direcionada ao ditador de plantão: “Um dia, quando for impossível impedir que os famintos nos devorem, então veremos que a falta de coragem, a falta de decisão... O que é que você é Vieira? Diga? Um líder?”

Quem somos nós, os brasileiros de hoje? Somos os Policarpos ou os Vieiras?


Leia também:

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Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

Notas:

1. AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac & Naify. P. 78.
2. Pasolini. P. P. O Caos – crônicas políticas. São Paulo: Brasiliense, 1982. P. 26.
3. AMOROSO, Maria Betânia. Op.Cit. , p. 116. O grifo é meu.
4. Idem, p. 66.
5. Ibidem, p. 46.
6. Ibidem, p. 68.
7. Ibidem, pp. 44-5.
8. Ibidem, p. 45.
9. Ibidem, p. 27. A Ricota, episódio de Rogopag. Relações Humanas. Versátil Home Video.
10. Ibidem, p. 42.
11. Lançado com o título Policarpo Quaresma, Herói do Brasil


Pier Paolo Pasolini e a Trilogia da Vida

Os Contos de Canterbury

Poeta, romancista, tradutor, pintor, jornalista, teatrólogo, editor, crítico de arte, muitas são as facetas daquele que (quando muito) é lembrado por seu trabalho como diretor de cinema (e ainda assim uma lembrança equivocada, baseada em estereótipos sexuais). Seu berço e também seu algoz foi a Itália; foi assassinado no ano de 1975, em circunstâncias controversas. Nos filmes da trilogia, como de resto em todos os outros que dirigiu, Pasolini critica a sociedade que a Itália vinha se tornando no pós-guerra. A Itália da década de 70 do século 20 era um país periférico, um Brasil europeu. Lá, como cá, a cultura de massas e um hedonismo consumista dominavam corações e mentes. Pasolini não aceitava essa distorção da idéia de felicidade. Sabemos bem o que isso quer dizer, felicidade passou a ser um estado de espírito circunscrito àqueles que possuem os meios materiais para se manter escravos de um mercado de consumo. Felicidade, enquanto um conjunto de prazeres simples fruto da convivialidade, passou a ser cada vez mais um discurso vazio, coisa de fracassado (entenda-se por fracassado aquele que não têm dinheiro para galgar a posição de consumidor-pessoa feliz). Toda a sua obra é uma denúncia contra esse estado de coisas, o que pode explicar a quantidade de inimigos que tinha e que talvez desejassem vê-lo morto – de todos os credos e bandeiras.

Odiado pela Democracia Cristã (partido tradicional de direita) pelos motivos já expostos; “excomungado” pelo partido comunista (desde 1949) porque era nacionalista demais. Sua preocupação maior era a morte da cultura camponesa. A crescente hegemonia dos valores da sociedade de consumo lhe parecia muito próxima do ideal fascista com o qual convivera em sua adolescência: valores únicos para todos, facilitando por isso mesmo sua legitimação. Um episódio que marcará sua vida nos lembra também em muito algo ainda reinante na escola brasileira, incluindo as universidades. Certo dia um professor lê um poema de Arthur Rimbaud. Ato incomum numa escola marcada pela estética oficial de Mussolini, como também por academicismos e provincianismos (1). A desobediência crônica como traço de personalidade parece ter surgido desse encontro com Rimbaud. Acaba chegando a Roma e, sem dinheiro, vai morar na periferia. Lá ele encontra uma população que parece viver em outro tempo que não o do centro da cidade, um mundo de pobreza material e sensualidade sem regras; um mundo sem doçura e egoísta (2) – mais uma vez encontramos semelhanças com o cotidiano dos despossuídos no Brasil. O comentário de Pasolini nos dá a dimensão de um tipo de interesse inexistente nas classes burguesas e nos falsos revolucionários dos países do terceiro mundo:

"Quando viajo para o Terceiro Mundo, é por prazer, por puro egoísmo, porque ali me sinto melhor. Quando chego num destes países perco de vista a injustiça e a miséria que aí reinam, o regime reacionário que o dirige. É uma reação sentimental que sobrepuja a ideologia. Detesto tudo o que toca o ‘consumo’, eu o abomino no sentido físico do termo". (3)

Exaltar a vitalidade sexual e a corporeidade como formas primitivas, simples, míticas e sagradas, esta foi a maneira escolhida por Pasolini para protestar contra o moralismo hipócrita de uma sociedade que transforma tudo em produto vendável, incluindo o corpo e o sexo. Em carta póstuma, Pasolini afirma que renunciou à sua trilogia em função da neutralização de sua mensagem, uma vez que os três filmes passaram a ser vistos apenas como pornografia. Originalmente celebrando a criação através do sexo e da poesia, os filmes foram explorados comercialmente a partir de uma ênfase no apelo erótico. Na sociedade sexualizada e hedonista onde vivemos, tal exploração neutralizaria a visão poética que não liga o sexo a uma lógica de mercado capitalista, alienada e consumista. Os filmes da trilogia não tratam de uma apologia ao sexo gratuito como um fim em si mesmo – como o fez a indústria de filmes pornográficos, crescente a partir da década de 70 do século 20. Desta forma procurou-se inverter as coisas e os filmes, que pretendiam servir como elemento de crítica, e que foram reduzidos àquilo contra o que lutavam. Sobre essas distorções hipócritas, típicas da civilização judaico-cristã, Baudelaire também nos dá seu veredicto em Mon Coer Mis à Nu:

“Todos os imbecis da burguesia, que pronunciam, sem cessar, as palavras, imoral, imoralidade e moralidade na arte, bem como outros disparates semelhantes, me trazem à memória Louise Villedieu, puta de cinco francos. Um dia, quando me acompanhava ao Louvre, onde nunca estivera antes, ela começou a corar, a esconder o rosto e, puxando-me a todo instante a manga, perguntava-me, perante as numerosas estátuas e quadros imortais, como era possível exibirem-se publicamente tais indecências”.

* * *

Nas palavras do próprio Pasolini: "Eu fiz este grupo de filmes que chamei de Trilogia da Vida, pois são trabalhos sobre a parte física do homem. Eu criei estes filmes para opor ao consumismo atual um passado recente no qual o corpo humano era, sobretudo, real". O Decameron (Il Decameron, 1970-1) é baseado em livro homônimo do escritor italiano Giovanni Boccacio (1313/1375) e foi filmado em três países, Itália (Nápoles, Amalfi, Vesúvio, Ravello, Sorrento, Caserta, arredores de Roma e Viterbo, Nepi, Bolzano, Bressanone), França (vale do Loire) e Yemen do Norte (Sana'a). Pasolini escolheu nove dentre os cem textos originais, neste que é considerado o filme mais acessível da trilogia. Em pelo menos dois momentos o filme contrapõe matéria e espírito. Na última estória dois homens, um devasso e outro celibatário, discutem sobre o sexo e os pecados associados a ele. O devasso transa com a comadre muitas vezes e morre, então volta e diz para o celibatário que isso nem é considerado pecado lá em cima. Pasolini aparece no filme como um pintor de afrescos em catedrais. Certa noite o pintor têm uma visão. No final do filme o afresco está terminado e todos comemoram, o artesão Pasolini olha para a pintura e desabafa, “por que criar uma obra de arte se sonhar com ela é tão mais doce?”

Os Contos de Canterbury (I Racconti di Canterbury, 1971-2) foram baseados nas histórias eróticas escritas por Geofrey Chaucer no século XIV e foi filmado na Inglaterra (Canterbury, Abadia de Battle, Warwick, Maidstone, Cambridge, Bath, Hastings, Lavenham, Rolvenden) e na Itália (Sicília). Em termos sexuais, esse filme é mais explícito que o anterior. Um clima de humor permeia as estórias e culmina na cena do inferno ao final do filme, uma espécie de quadro de Hieronymus Bosch em movimento. Humor e uma crítica ferrenha às distorções produzidas no ceio do cristianismo dominante afloram principalmente quando o anjo pede (no final do vídeo abaixo): “Ei, Satanás, levante o rabo! Mostre onde guarda os monges no inferno”. Então Satanás, de quatro, começa a peidar e ao mesmo tempo expelir monges pelo anûs. Anticlerical sem dúvida nenhuma!

O mais contemplativo dos três, As Mil e Uma Noites (4) (Il Fiore Delle Mille e Una Notte, 1973-4), foi filmado fora da Europa, no Terceiro Mundo que Pasolini tanto gostava (Irã, Nepal, Etiópia, Índia, Yemen do Norte, Yemen do Sul, desde 1990 os dois últimos foram unidos numa República do Yemen). Quinze histórias giram em torno das desventuras de um casal que o destino separa. Um jovem é escolhido por uma bela e espirituosa escrava para ser seu dono. Os dois se apaixonam de imediato, mas logo ela é raptada. A escrava consegue se libertar e foge para o deserto, enquanto seu amado vaga por diversas cidades a sua procura. Há controvérsias quanto àquilo que os puritanos mais odeiam nos filmes de Pasolini, a nudez dos corpos ou sua capacidade de gozo sexual.

“Os ricos gozam com o poder, os pobres só têm seus corpos, mas o gozo dos pobres é uma afronta ao poder dos ricos (porque mostra que o gozo do poder é meramente imaginário, realizado por suposição). [Em As Mil e Uma Noites], uma cena evidente dessa regra geral pasoliniana é aquela em que Franco Citti, de cabelos vermelhos, interpreta um demônio que mantém como prisioneira uma jovem alva e linda. Um rapaz penetra por acidente o santuário do demônio, e não consegue resistir à pura beleza da moça, que também se apaixona por ele. Quando o demônio reaparece, não há nada mais que ele possa fazer: corte-lhe os braços, corte-lhe as pernas, a moça é ainda capaz de fazer amor com os olhos”. (5)

Um detalhe salta aos olhos nos filmes de Pasolini: A utilização de atores não profissionais; na maioria dos casos, pessoas fora do padrão de beleza. Poderíamos dizer que as pessoas são feias. Na verdade, na maioria dos casos, elas são normais. São como na vida real, onde existem manchas na pele, espinhas, acne, dentes trepados, dentes faltando, cabelos maltratados, seios caídos, defeitos físicos e físicos não malhados ou maquiados. A escrava que protagoniza As Mil e Uma Noites é uma mulher negra tão comum como qualquer empregada, menina de rua ou garota de programa da periferia brasileira. Curiosa é a sensação nas cenas de sexo, em princípio imagens desinteressantes porque desprovidas de corpos belos. Na verdade, e isto também explica porque o sexo nos filmes de Pasolini agrega algo mais, como não se segue o padrão Hollywood de beleza (e muitos não conhecem outro), tais cenas seriam um grande incentivo para aquelas pessoas que (normais como nós todos) têm vergonha de investir numa conquista amorosa/sexual por achar que “não têm corpo”. Os filmes de Pasolini nos permitem concluir com certo alívio: isso não é Hollywood!



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(IV), (V), (VI), (VII), (VIII), (IX), (X), (XI), (XII)
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Notas:

1. AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. P.15.
2. Idem, p. 23-4.
3. GARDNIER, Ruy. As 1001 Noites. CONTRACAMPO Revista de Cinema. http://www.contracampo.com.br/60/1001noites.htm
4. Lançado em dvd no Brasil em 2004 pela distribuidora Playarte com o título Arabian Nights.
5. GARDNIER, Ruy. Op. Cit.