25 de fev. de 2008

Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (I)



 “Acho que 
o amor limita 
a pessoa. Algo
de errado que
cria um vazio
em volta” 

Valentina para Giovani em A Noite




Segundo o ponto de vista de Seymor Chatman e Paul Duncan, na trilogia o cineasta Michelangelo Antonioni nos apresenta um mundo sem esperanças. Ainda assim, admitem que aquilo que parecem considerar como uma visão pessimista do diretor em relação ao mundo contemporâneo torna-se menos relevante do que a forma como ele nos apresenta. As imagens que Antonioni criou para mostrar a crise do homem e da mulher da burguesia italiana, enquanto tentam construir uma relação afetiva na sociedade européia do pós-guerra, vão além da simples montagem de seqüências de cenas que apenas ilustram o texto dos personagens. Nesta primeira parte seguiremos o ponto de vista de Chatman e Duncan a respeito daquele que já foi chamado de o “poeta do tédio”. Talvez eles nos ajudem a esclarecer se os críticos do cineasta ficavam/ficam entediados com os filmes de Antonioni, ou com aquilo que os filmes mostram de vidas que não têm criatividade para espantar o próprio tédio. 


Gostaria de
não amá-lo ou
amá-lo muito
melhor

Vittoria para Piero em O Eclipse




Na opinião de Michelangelo Antonioni, os relacionamentos afetivos entre casais parecem nunca encontrar uma saída satisfatória. Quando assistimos aos filmes da Trilogia da Incomunicabilidade, somos tomados por uma pergunta-agonia: a falta de comunicação entre os casais modernos é um dado definitivo e tão sem solução que devemos passar a considerá-lo um elemento “normal” em qualquer relação? Que tipo de normalidade é essa?

Nesse caso, para quê manter uma relação se não procuramos romper essa submissão aos fantasmas que nos mantém sob suas botas? Para quê estabelecer uma relação conjugal que vai me tratar com tanto desprezo quanto o mundo já me trata?

Em princípio, poderíamos dizer que A Aventura (1960) é o filme mais enigmático da trilogia. O fato de girar em torno de um desaparecimento sem solução poderia dar a impressão de redundância desnecessária, com a sensação de que o filme poderia ser reduzido para não mais que vinte minutos. Ficam procurando uma mulher que sumiu, nunca a encontram e a história parece não ter mais nenhum elemento de interesse. Entretanto, este é justamente o ponto que tornaria sua longa duração relevante. Estamos por demais viciados no padrão hollywoodiano para aceitar que a lógica dos filmes de ação possa não ser (ou ter sido) uma unanimidade na cinematografia mundial. Uma mulher desaparece. Na verdade, a forma como esse fato é tratado pelos personagens sugere uma incapacidade das pessoas em reter a atenção em torno de uma falta. Anna desapareceria não apenas fisicamente, mas também das mentes de seus amigos e seu amante.

Antonioni descrevia A Aventura como um filme de mistério invertido, referindo-se ao fato de não se encontrar a vítima ou a arma do crime. Nem mesmo fica claro se foi cometido um crime - Antonioni se considera no pólo oposto em relação ao mestre do suspense Alfred Hitchcock (1). Uma espécie de texto cinematográfico aberto, que não oferece conclusões prontas ao público. Sandro, parceiro da desaparecida, e atual parceiro de Cláudia, a amiga dela, têm uma afeição desmesurada por mulheres. Cláudia, personagem de Mônica Vitti, perdoa Sandro muito rapidamente. Sandro padece do que Antonioni chamou de doença dos sentimentos. Na opinião do diretor italiano, em tal comportamento sexual obsessivo estaria implícita uma doença de Eros. As coisas estariam melhores “se Eros fosse são, e por são entendo justo, adequado à medida e à condição do homem. Existe um incômodo,(…), e como em todos os incômodos, o homem reage, porém mal, apenas segundo o impulso erótico, e é infeliz” (2). 



“Alguma
certeza deve
porém existir,
se não a de amar
bem, ao menos a
de não amar

Dylan Thomas,

poeta inglês do século XX
  


Sandro negligenciou sua carreira artística em favor de um trabalho lucrativo como arquiteto. Não encontrou um equilíbrio entre o amor e o trabalho útil, utilizando o primeiro para compensar a incapacidade de alcançar o segundo. Os personagens secundários do filme têm problemas semelhantes, são aborrecidos, apáticos e insatisfeitos com suas vidas, mas são incapazes de reunir a energia necessária para modificá-las. Cláudia é o único personagem com certo potencial, apesar de sua atitude complacente com os excessos de Sandro poder comprometer o equilíbrio de sua vida futura (3). As ilhas onde foram rodadas as seqüências iniciais do filme são já uma metáfora das relações humanas. Pequenas ilhas pedregosas, quase inacessíveis; bem próximas entre si, ao alcance da vista uma da outra, porém separadas por uma distância que sua natureza rochosa estabelece como definitiva.

A partir de A Aventura, Antonioni passa a utilizar os diálogos entre os personagens mais para ocultar seus pensamentos e sentimentos do que para explicar ao público aquilo que pretendem. No lugar do diálogo, elementos visuais como gestos corporais e expressões faciais (4). Desta forma, ao assistir A Aventura, o público sequer pode esperar que uma análise das expressões faciais possa dar-lhe as respostas, pois Antonioni pretendia que os atores não demonstrassem suas emoções. Portanto, um mérito (que é confundido com chatice tediosa) neste filme é obrigar o público a continuamente tentar adivinhar o pensamento dos personagens. Mas, então, perguntam Seymor Chatman e Paul Duncan, qual é a aventura? Segundo Antonioni: “Os personagens vivem uma aventura emocional – implica a morte e o nascimento de um amor -, uma aventura psicológica e moral que os faz agir contra as convenções e os critérios de um mundo que hoje se considera fora de moda (5).

Em A Noite (1961), acompanhamos Lídia e Giovanni, mais um casal insatisfeito com seu casamento, mas que também não sabe definir o motivo. Em vários momentos, a arquitetura da cidade moderna parece sufocar Lídia, com edifícios que dissolvem o sentido comunitário mais do que o consolidam. Filmando essas paredes, Antonioni mostra, sem a necessidade de explicações verbais, o ambiente desestruturante que só poderia aumentar a quantidade de pessoas angustiadas – por induzir principalmente ao isolamento em relação a si mesmo.

Como em A Aventura, não existem conexões óbvias ou relações de causa e efeito entre várias seqüências, o que faz com que o público considere aborrecidos os filmes de Antonioni. Mas o diretor italiano insiste em deixar ao espectador a responsabilidade de estabelecer o sentido da trama. Deixar a certos públicos tal responsabilidade seria como empurrar o filme para o fracasso de bilheteria. Talvez exatamente esta postura do diretor seja a chave para compreender o tema central de seus filmes – a incapacidade das pessoas em aceitar a responsabilidade de decidir por si mesmas o que pensar e o que sentir; a desumanização e o distanciamento de si mesmos que a modernidade inoculou em todos. A expectativa do espectador, esperando (sentado na poltrona, mastigando alguma coisa) que o filme lhe apresente uma relação causal pronta, marca a acomodação na incapacidade em atrever-se a produzir sentido para o mundo e para si mesmo. Nesse universo antonioniano existe alguma esperança para as mulheres. (Imagens abaixo, Cláudia, A Aventura; Lídia, A Noite; Vittoria, O Eclipse).




Antonioni aponta para uma mulher desiludida, desesperançada
, confusa, hesitante e em eterna crise existencial que, assim como os homens de seu universo, não consegue apostar em si mesma o suficiente para semear uma relação afetiva. Entre A Aventura, A Noite e O Eclipse, assistimos a trajetória de casais em direção a um mundo sem amor. Apesar disso, Cláudia em A Aventura, Lídia em A Noite e Vittoria em O Eclipse, são as personagens mais estáveis na trilogia. Antonioni tem uma afinidade com os personagens femininos, acredita que são mais honestos. As mulheres são contaminadas pelos problemas dos personagens masculinos, que não percebem as necessidades delas.

Antonioni também criava “problemas” para o público do ponto de vista da construção das imagens (6). Ele procurava se afastar dos métodos tradicionais, tanto cinematográficos quanto de narração. Dizia que seu objetivo era a busca da simplicidade, cometendo de propósito o que a ortodoxia consideraria erros técnicos. Utilizava de maneira pouco ortodoxa o campo e o contracampo, o tempo morto, e fazia os atores mudarem de eixo. Essa mudança de eixo desorienta o espectador ao mostrar um ator pela direita e, na seqüência seguinte, mostrá-lo pela esquerda sem uma explicação geométrica que justifique o deslocamento. No caso do tempo morto, Antonioni esticava ao máximo momentos do filme que seriam considerados inexpressivos. A seqüência final de O Eclipse é o maior exemplo disso, ficamos esperando o encontro do casal, mas a única coisa que vemos é uma seqüência infinita de imagens da cidade, suas esquinas e o cotidiano de espera vazia no ponto de ônibus, até que chegue a noite – então o filme acaba.

A seqüência inicial de O Eclipse (1962) está ligada à última pela via das frias paredes da cidade. Antonioni colocou Vittoria e Riccardo morando num bairro residencial que havia (de fato) sido criado pelo conhecido ditador italiano Benito Mussolini, onde se pretendia combinar o estilo da Roma Antiga com a arquitetura moderna. Nos primeiros minutos do filme encontramos um casal vivenciando um rompimento. Estão numa sala, um espaço arquitetônico caustrofóbico como uma jaula. Vittoria, a personagem de Mônica Vitti, anda para um lado e para o outro como um animal confinado, enquanto Riccardo está sentado, catatônico. Por vezes, só conseguimos ver o rosto da mulher através de reflexos de espelho, pois ela está de costas para nós – como que negando acesso ao rosto, ponto de concentração do sentido aquilo que estamos condicionados a procurar quando queremos respostas. Na cena final, a mulher marca um encontro com Piero, personagem de Alain Delon, numa esquina de rua. O filme termina sem que ninguém apareça. Estamos novamente, como no início do filme, às voltas com a arquitetura da cidade moderna.

Antonioni mostra várias imagens da cidade que (constrói) e abriga pessoas que não conseguem se comunicar. Vittoria faz traduções do espanhol para o italiano, mas a única tradução que ela é capaz de fazer sobre o porquê de seu comportamento evasivo é “não sei, não sei, não sei”! No filme O Silêncio (1963), o diretor de cinema sueco Ingmar Bergman colocou uma das personagens como lingüista. Coincidência ou não Bergman cria, um ano após Antonioni, uma personagem que também tinha por profissão a compreensão dos significados da linguagem, ao mesmo tempo que não conseguia compreender aquilo que seu comportamento está comunicando dela ou para ela.  



A  caixa  d'água  no  formato  de  um  cogumelo  atômico  é  uma
metáfora tão perfeita que parece elemento cenográfico
plantado  pelo  cineasta  italiano


Quando, ainda na cena inicial, Vittoria abre a cortina da janela pela segunda vez (na primeira vemos o reflexo de seu rosto no vidro), percebemos uma espécie de caixa d’água com o formato de uma explosão atômica. Então ele, Riccardo, diz que “só queria fazê-la feliz”. Vittoria responde dizendo que quando eles se conheceram ela era feliz. Segundo seu ponto de vista, fazê-la feliz não é suficiente, pois ela teria que ser feliz independentemente do interesse dele na felicidade dela.

“Antonioni não concebeu os três filmes como uma trilogia, mas eles foram assumindo essa forma e, ao fazer o terceiro, o cineasta esclareceu o falso mistério que cerca Ana no primeiro filme. O Eclipse de que trata o filme é o da espécie humana. No mundo sem amor, sem comunicação, as pessoas somem na última cena e fica só o cenário da cidade, num entardecer que expõe a desolação do mundo desumanizado. Ana desaparece no primeiro filme pelo mesmo motivo. Outro diretor, um cineasta de Hollywood, por exemplo, talvez usasse o fato para uma enquête do tipo policial. A de Antonioni é existencial e isso faz toda a diferença”. (7)

“Espaços vazios de acontecimentos, casais vazios de sentimentos, habitados por esse vazio: Antonioni encerra sua chamada Trilogia da Incomunicabilidade mais ciente de estar lidando com os sintomas de um mal-estar da civilização. O que O Eclipse reafirma é que a enfermidade de Eros, o cansaço do amor, é uma doença própria da sociedade moderna. Seria preciso traduzir, portanto, de forma diversa o diálogo entre Vittoria (Mônica Vitti) e sua vizinha africanista. O que quer dizer à vizinha não é que na Europa, ao contrário da África, ‘tudo é muito trabalhoso, [até] o amor’, como foi traduzido aqui. O que diz é: ‘Aqui, há um grande cansaço, inclusive no amor’ “(…)“Delon, que só se deixa envolver depois de um momento de baixa e frustração na Bolsa de Valores, representa o homem moderno em sua vacuidade de espírito; Vittoria, a mulher moderna em seu infantilismo. Não é que Antonioni despreze a modernidade . A cada filme, é como se a modernidade e seus signos fizessem o cineasta reencontrar e voltar a perder de vista as suas questões pessoais ”. (8)

Leia também:


Notas:

1. CHATMAN, Seymor; DUNCAN, Paul. (ed.).Michelangelo Antonioni. Filmografia Completa. Köln: Taschen, 2004. Pp.59 e 75.
2. Idem, pp. 63 e 71.
3. Ibidem, p. 71.
4. Ibidem, p. 79.
5. Ibidem, p. 71.
6. Ibidem.
7. MERTEN, Luis Carlos. Antonioni e a crise do casal burguês. Estadão.com.br. 21/10/2002.
8. Tiago Mata Machado. Antonioni Traduz Mal-estar Moderno. 05/06/2005.
 Na edição de O Eclipse distribuída em dvd no Brasil pela Versátil Home Video, o texto com erro de tradução se encontra aos 37 minutos.

20 de fev. de 2008

Antonioni e as Cores do Deserto Vermelho (II)


“Suas pinturas são
como meus
filmes
são  sobre  nada...
com precisão”


Antonioni para 

Mark Rothko

Parece inevitável concluir que todo esse movimento em direção à abstração carregue um impulso anti-realista correspondente. Relacionando cenas curtas e pinceladas rápidas, além de cenas fora de foco, sem falar no seu desinteresse em lentes que criam a profundidade de campo necessária para uma imagem realista, Antonioni vai criando o universo visual e subjetivo de O Deserto Vermelho. O cineasta afirmou que o uso de cores fez com que encurtasse o tempo das tomadas. Ao contrário das longas tomadas que havia criado nos filmes anteriores, neste filme Antonioni justifica as cenas curtas pela semelhança a grandes borrões ou pinceladas rápidas: “Como se elas fossem pulsações penetrando caoticamente nos personagens” (1).


As imagens fora de foco, que podemos encontrar fartamente no filme, são fruto da necessidade que sente Antonioni por expressar a realidade em termos não completamente realísticos: “A linha branca abstrata que entra na tomada da pequena estrada cinza me interessa mais do que o carro que está vindo em nossa direção” (2).

Seu uso de lentes telefoto teve como objetivo evitar a profundidade de campo: “Frequentemente utilizei lentes telefoto para evitar a profundidade de campo; a qual, certamente, é um elemento essencial no realismo. O que me interessa agora é colocar os personagens em contato com as coisas, porque hoje o que conta são as coisas, objetos, matéria” (3).

Peter Brunette sugere que as técnicas utilizadas em O Deserto Vermelho nos levam à “questão Caligari”: qual ponto de vista está sendo expresso aqui? Caligari é o personagem principal do antológico filme alemão do tempo em que a cena era muda, O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinet des Dr. Caligari, direção Robert Wiene, 1919). Este filme é reconhecido por seus cenários expressionistas tortuosos e um manicômio com direito a um diretor louco. A dúvida que se pode ter em relação a ele diz respeito a quem atribuir as formas do cenário? À mente do diretor louco ou ao próprio filme?




No caso de O Deserto Vermelho, Brunette pergunta a quem se referem as imagens fora de foco e o choque de cores? Seriam uma projeção da mente neurótica e suicida de Giuliana ou pertencem ao ponto de vista de uma terceira pessoa (o diretor ou o “filme”) no campo industrial destruído? Curiosamente, a única seqüência que não sofreu nenhuma manipulação de cor, (portanto onde as cores são “naturais”) é uma expressão direta do ponto de vista de Giuliana. Refiro-me a estória do “Vento Norte” que ela conta para seu filho, onde uma menina vive sozinha porque prefere assim. A vida dessa menina contrasta com a vida que Giuliana está levando. O comentário de Antonioni sobre este momento do filme:


“Nesta seqüência, o enredo é suspenso, como se o olho e a consciência do narrador [presumivelmente, o narrador do filme] tivesse se distraído noutra parte. De fato, esta seqüência, na qual cada elemento – e antes de tudo a cor – conta um fragmento de experiência humana, mostra a realidade como Giuliana gostaria que fosse – quer dizer, diferente do mundo que aparece para ela como transformado, alienado, obsessivo a ponto de ser deformado monstruosamente” (4).

Onde está Antonioni em seus filmes? Brunette se pergunta também que em medida é legitimo ou produtivo interpretar o filme em termo de intencionalidade autoral. Em O Deserto Vermelho, comenta Brunette, a situação é ainda pior, pois aqui o lugar do autor é ainda menos claro do que normalmente. Por exemplo, o caso de seguirmos muitos que concluem que Antonioni está denunciando o deserto industrial contemporâneo. O próprio cineasta não só nega como afirma que sua intenção é mostrar a beleza da paisagem industrial (5). Na opinião de Antonioni, em toda mudança existem aqueles que se adaptam e aqueles que não conseguem. Afirma que sua intenção não é denunciar nada, mas sim descrever o abismo entre a industrialização e as emoções humanas naquelas pessoas que ainda estão ligadas ao mundo anterior às fábricas, como conseqüência sentindo-se fora de lugar. Não se acomodar enquanto se vive nesse tipo de ambiente industrial significa para Antonioni mudar sua moral, seus sentimentos, sua psicologia.

A trilha sonora também seria ambígua. Zumbidos eletrônicos que oscilam entre significar o elemento tecnológico ou a própria neurose. Como se o zumbido eletrônico representasse tanto a fábrica quanto seu efeito colateral negativo ecoando dentro da cabeça daqueles que não se adaptaram aos novos tempos. Como definiu Antonioni: “a música eletrônica, uma espécie de transfiguração de ruídos reais – especialmente na primeira metade do filme, a parte sobre as fábricas – encontra um contraponto nos sons que Giuliana escuta. Essa é a única partitura musical que parece adequada a essas imagens” (6).

A definição que Antonioni deu do título também trás uma ambigüidade. “Deserto vivo, cheio da carne dos homens”. A região da cidade de Ravenna, onde estão as fábricas rodeadas por imagens horríveis de poluição que Antonioni nos mostra, também é o lugar de muitos sítios arqueológicos. A fábrica é colorida, mas o lixo que ela gera é cinza. As fábricas representam o presente, a arqueologia remete a uma nostalgia do passado. A própria Giuliana pretende vender cerâmica na loja que está montando – um elemento que remete ao barro e aos objetos pré-industriais.


 
Temos uma cena em que Giuliana entra no quarto do filho e desliga um robô de brinquedo que anda de um lado para o outro. A primeira interpretação apontaria para o robô como um símbolo do medo dos homens em relação a uma estandartização da cultura. Novamente Antonioni enxerga as coisas sob um prisma completamente diferente. O cineasta acredita que brinquedos como esse ajudariam a preparar a criança para o tipo de vida que a espera.



 Referências ao expressionismo abstrato em todos os cantos.
Desde  um  galpão  até  o  canto do teto da loja  de  Giuliana

O Deserto Vermelho, assim como outros filmes que o cineasta dirigiu, são cheios de referências ao expressionismo abstrato. Certa vez, em visita ao atelier de Mark Rothko, então renomado expoente do gênero, Antonioni afirma: “Suas pinturas são como meus filmes – são sobre nada... com precisão” (7). Para o cineasta, a imagem no cinema é abstrata. Na opinião de Brunette, os filmes de Antonioni são mais como pinturas animadas por personagens e narrativas do que tramas típicas do cinema, nas quais o espectador responde se identificando com o personagem de uma forma convencional “humana”. Como toda arte abstrata, o problema começa quando se procurar determinar precisamente o que estes filmes estão dizendo. Segundo Brunette, os filmes de Antonioni são uma mistura de crítica social e expressionismo abstrato (8).

Após o vermelho da  cena  da  orgia,  o  cinza
da próxima tentativa de suicídio de Giuliana


Leia também:

Antonioni e as Cores do Deserto Vermelho (I), (final)

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz


Notas:

1. Relato de Antonioni em “Red Desert”, parte de “The Architecture of Vision” IN BRUNETTE, Peter. The Films of Michelangelo Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 95.
2. Idem.
3. BRUNETTE, Peter. Op. Cit.
4. Idem.
5. Ibidem, p. 96.
6. Ibidem, p. 98.
7. Citado em Seymor Chatman, ‘Antonioni or the Surface of the World” (1985) IN BRUNETTE, Peter. P. 157 n21.
8. BRUNETTE, Peter. P. 11. 


16 de fev. de 2008

Antonioni e as Cores do Deserto Vermelho (I)




Com  o  advento  da
cor
, o espaço no cinema
torna-se importante em si
mesmo
, mais do que apenas representando   o   espaço
do  drama  ou  o reflexo
de um ser humano?







Já que o mundo real é colorido para os olhos humanos, normalmente acredita-se que o uso da cor no cinema leva a um maior realismo. Até 1963, Antonioni havia insistido no preto e branco. Enquanto o mundo já estava colorido nas telas desde o final da Segunda Guerra Mundial, ele e alguns outros cineastas europeus, como o sueco Ingmar Bergman, insistiam no que para muitos era um anacronismo. Primeiro filme colorido de Antonioni, O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, 1964) não é apenas mais um filme colorido. Para Antonioni a cor se torna um tipo de apoteose da abstração. Ironicamente, essa “campanha anti-realista” levada a cabo pelo cineasta acaba levando ao aumento da expressividade da linha e da forma, diminuindo assim a importância da narrativa e do personagem (1). Em O Deserto Vermelho, Antonioni levou o elemento artificial da cor ao seu máximo. Muito do que se vê não corresponde à cor natural daquela fruta, daquela parede, daquela rua, daquela paisagem.

Inicialmente, o nome do filme era Celeste e Verde. Mas Antonioni mudou e comentou com Godard que esse título não seria “suficientemente viril”. No final, verde é a cor do casado de Giuliana nas cenas iniciais (imagens acima, à esquerda). Cor que ela também escolherá para o teto da loja que está montando, enquanto as paredes seriam azul celeste. Peter Brunette chama atenção para a conexão entre virilidade e abstração. Essa atitude faz eco aos comentários dos pintores do expressionismo abstrato da década de 50 do século 20 (2). Antonioni está interessado na distinção entre cores quentes e frias. Ele mesmo enfatizou o fato de que a cena da orgia tinha que ter paredes vermelhas, e que cortaria a cena caso o filme tivesse sido feito em preto e branco. Entretanto, Brunette afirma que, ao contrario do que fazem muitos críticos de Antonioni, não se deveriam indicar significados simbólicos específicos a certas cores que aparecem no filme. As cores devem ser tomadas apenas como sugestivas de uma forma emocional, como um realce do elemento gráfico. O que não se deve fazer nos filmes de Antonioni é tomar certas cores como indicações de conceitos e temas. A questão é que essa ênfase na cor levava a uma nova ênfase no foco da câmera enquanto elemento significante. Isso era novo tanto para Antonioni quanto para a história do cinema (3).



A cena da orgia teria sido cortada caso o filme não fosse colorido

Segundo Brunette, essa tendência de condicionar certos significados simbólicos a algumas cores específicas é fútil e gera confusão. Muitos críticos enfatizam a importância do vermelho. Biarese e Tassone insistem que são as cores brancas e frias que predominam. Seymor Chatman faz uma leitura muito literal da cor quando conclui que Giuliana obteve “alívio” sexual porque as cores do hotel mudaram de branco para rosa. Já Marie Claire Ropars-Wuilleumier, que Brunette parece aprovar, coloca O Deserto Vermelho no contexto de alguns outros cineastas que começaram a utilizar a cor no início dos anos 60. Segundo ela, “não é um acidente que a mudança para a cor acompanhe, tanto nos filmes de [Alain] Resnais quanto em Antonioni, uma quebra na busca pelo tempo e o desenvolvimento de um espaço invasor. Com a cor, o espaço no cinema torna-se importante em si mesmo, mais do que apenas representando o cenário do drama ou o reflexo de um ser humano” (4).


Muitas vezes Antonioni
põe as coisas fora de foco


Várias cenas começam fora de foco, lentamente os elementos da cena apresentam, organizando o espaço e permitindo ao espectador a construção do sentido visual. Alguns mais apressados fuzilariam Antonioni, dizendo que o cineasta não sabe como utilizar uma câmera. Entretanto, afirma Brunette, o principal efeito desse uso criativo que o cineasta faz do foco é colocar em primeiro plano o poderoso desejo interpretativo do espectador, que sempre busca estabelecer um sentido coerente a partir de um campo visual confuso. Desde os créditos iniciais, as imagens fora de foco da fábrica sugerem a profunda crise na visão explorada no filme. Em seguida, vemos alguns trabalhadores passando, longe demais para conseguirmos um foco. Quando finalmente aparece alguém próximo o bastante para entrar em foco, vemos Giuliana. Ironicamente, ela está de costas para nós (imagens do início do artigo).



Até O Eclipse (1963), conta Antonioni, o interesse estava no embate entre indivíduos. Em O Deserto Vermelho, os objetos entram não como acessórios, mas como personagens. Podemos ver seres humanos apequenados por gigantescas formas industriais. Temos também a cena onde dois homens são envolvidos por uma nuvem de fumaça da fábrica (imagem a direita, acima). Desta, temos imagens apenas das máquinas, sem humanos por perto. Noutro momento, temos os padrões no estilo do expressionismo abstrato de Mark Rothko na parede da loja inacabada de Giuliana (20min:58s). (imagem a direita, embaixo).

Citando Sam Rohdie, Brunette aprofunda a análise da importância do elemento abstrato neste filme. Como na cena em que vemos uma imagem abstrata em tons de branco. Em seguida, vemos um elemento branco mais claro surgir na parte de baixo da tela. Então vemos Corrado surgir com um casaco escuro num movimento para cima. Percebemos então que a primeira imagem abstrata era uma parede e a segunda era o teto branco do carro (19min:05s). Rohdie explica:




“Os códigos representacionais do cinema tendem a privilegiar o volume sobre a superfície, a figura sobre a imagem. Expedientes narrativos são importantes nesse equilíbrio [se, por exemplo, a parede tivesse tido significância narrativa poderia ter sido reconhecida mais cedo pela platéia como uma parede]..., [porém, nesta seqüência] a figuração é suspensa, todo o volume e profundidade nos quais as coisas se localizam nas narrativas parecem momentaneamente ausentes, em seu lugar aparece o ‘vazio’ de uma imagem superficial, desamarrada, não identificável, uma narrativa vazia, um tipo de eclipse de narrativa dentro da abstração”.

“A parede se materializa do nada, tanto narrativamente quanto visualmente; mas quando ela aparece seu outro status como imagem persiste: enquanto uma parte da pressão da cena vai em direção à construção de ‘fatos’, de ‘incidentes’, dando suporte ao personagem e a ação (uma corrente de eventos: Corrado estaciona seu Alfa numa rua próximo da loja de Giuliana, eles se encontram, eles conversam), outra parte da cena se move na direção da dissolução, do nada, de um abandono do personagem, de um tempo morto sem ação: uma superfície sem cor; movimento ao longo da parede que muda sua intensidade de luz, altera volume e densidade; o personagem se torna apenas um objeto estampado na paisagem, como Corrado e Giuliana momentaneamente imóveis ao lado do vendedor de frutas. Aqui a narrativa é suspensa, não pela remoção de personagem ou figura, mas por libertá-los de qualquer função narrativa, igualando-os à paisagem”. (5)

Durante uma entrevista com Godard em 1964, Antonioni negou que a pintura abstrata fosse um elemento importante neste e noutros de seus filmes. Entretanto, esta afirmação contradiz o que o próprio afirmou em várias entrevistas. Certa vez ele disse: “Eu quero pintar um filme como alguém pinta um quadro; quero inventar a relação entre as cores e não me limitar fotografando apenas cores naturais” (6). Explicando-se melhor, em entrevista de 1964 (7), Antonioni esclarece:

Pierre André Boutang: É um engano pensar que o senhor busca referências na pintura no seu modo de tratar a cor?

Antonioni: Eu acho que sim, porque eu não penso em nenhum pintor. Gosto muito de pintura, mas não tive, acho, influência de nenhum pintor. Isto é, não há pintura no filme, no sentido literal da palavra. É diferente. Quando se faz um filme em cores deve-se buscar, acredito, um ritmo de cores. Isso não existe em pintura. Usamos a cor, eu acredito... de modo funcional... para descrever a história. Quer dizer... se acho uma cor útil para uma sugestão que a cena deve dar ao público... eu a utilizo. Compreende? Às vezes não a encontramos na realidade e por isso coloquei as cores que precisava. Pintei as árvores, já se sabe, pintei as casas... mas foi porque precisava dessa luz e não a achava.

P. A. Boutang: Em relação aos sentimentos de seus personagens?

Antonioni: Em relação aos sentimentos... que queria mostrar.

O mundo cinza de Giuliana

P. A. Boutang: O senhor mandou queimar uma pradaria... pintou casas de cores totalmente diferentes... e fala-se de um bosque que o senhor pintou.

Antonioni: Sim, é verdade. Mas eu não pude rodar a cena por causa do sol. Havia um bosque que me interessava, que ficava ao lado de uma fábrica muito grande, muito importante, com quatro mil operários... e devia começar o filme por uma greve... e esse greve deveria acontecer perto do bosque. O bosque era verde, claro... mas sentia que esse verde... não era adequado ao momento. Então, quis pintar o bosque de branco, aliás, de cinza. O branco sobre o verde dava uma cor cinza. Fizemos isso. Pintamos a noite inteira com uma grande bomba... que soltava um tipo de tinta, mas era quase uma fumaça. Mas no dia seguinte, ao sol, não pude filmar... porque ficamos contra o sol e o bosque parecia preto.


Leia também:

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As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz


Notas:

1. BRUNETE, Peter. The Films of Michelangelo Antonioni. New York: Cambridge University Press. 1998. P. 91.
2. Idem, p. 169, n. 4.
3. Ibidem, p. 92.
4. ROPARS-WUILLEUMIER, “L’écran de la mémoire”, p. 168. IN BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 169, n. 6.
5. Trecho do livro de Sam Rohdie, “Antonioni”, p. 175. IN BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 94.
6. Do livro de Seymor Chatman, “Antonioni”. IN BRUNETTE, Peter. Op. Cit., p. 170, n. 13.
7. Entrevista a Pierre André Boutang, Les Ecrans de la Ville [As Telas da Cidade], 1964. Incluída nos extras do dvd de O Deserto Vermelho, distribuído no Brasil pela Versátil Home vídeo, 2007.