20 de abr. de 2008

Fellini e a Trilogia da Salvação



Na seqüência da Trilogia do Caráter, Peter Bondanella identifica o que chamou de Trilogia da Salvação ou da Graça. Classificando desta maneira o grupo dos seis primeiros filmes de Fellini, ele pretende agrupar seus filmes a partir da recorrência de elementos estruturais. Desta forma, os críticos hoje elogiam, lembra Bondanella, os filmes da primeira trilogia (que na época depreciavam) como um retrato acurado, verossímil (embora cômico) das cidades do interior da Itália na década de 50 do século 20. No caso da Trilogia da Salvação ou da Graça, Fellini se afastaria das fronteiras ideológicas do Neo-Realismo, definido como um cinema socialmente relevante, em direção a uma posição de “cristianismo existencialista”. Agora, trata-se de perseguir uma iconografia tradicional ou conceitos religiosos (como o de conversão) (1).

Entretanto, entre as duas trilogias Fellini dirigiu um episódio para um projeto do diretor Cesare Zavattini. Chamado Agência Matrimonial (Um’Agencia Matrimoniale, 1953), fazendo parte de Amor na Cidade (Amore in Città), o média-metragem fugia ao objetivo de Zavattini, reconhecido como talvez o mais famosos dos roteiristas neo-realistas. Fellini propôs a estória de um repórter que se disfarça de cliente e vai numa agência de casamentos procurar uma mulher que aceite casar-se com um lobisomem. Aparentemente, conta Bondanella, Zavattini acreditou na afirmação de Fellini de que se tratava de um caso verdadeiro.

A Estrada da Vida (La Strada, 1954) foi o primeiro filme da trilogia que nos interessa aqui. Certa vez, Fellini descreveu este filme como “realmente o catálogo completo de meu mundo mítico inteiro” (2). Trata-se de uma fábula onde um homem que tem um número de circo, em que atua como o “homem-músculos” que arrebenta correntes com os músculos do tórax, compra uma garota abobada (interpretada por Giulietta Masina, a esposa de Fellini) de sua mãe pobre para ajudá-lo em seu número. Àngel Quintana sugere que neste filme Fellini começa o processo de transformação de seus personagens em caricaturas. Como definiu André Bazin, lembra Quintana, “esses personagens não se definem jamais por seu caráter, mas exclusivamente por sua aparência” (3). (Gelsomina: imagens à direita e, no início do artigo, esboço feito por Fellini. Cor modificada pelo autor)

Gelsomina, a abobada, e Zampanò, o machão, tem uma relação ruim, mas a natureza dela é pura e agüenta todas as atitudes grosseiras de seu dono. Quando ele mata um amigo dela (que o azucrinava), Gelsomina acaba ficando mentalmente abalada (e, portanto, imprestável para o trabalho). Zampanò a abandona durante uma viagem. Tempos depois, ele percebe que ela foi capaz de modificar a natureza animalizada e brutal dele com sua misteriosa presença. Mas agora é tarde demais, pois ele descobre que ela morreu.

A Estrada da Vida
exemplifica bem a noção cristã da salvação pela conversão: a crença de que uma conversão pode modificar radicalmente a vida de alguém. Zampanò parte da praia onde compra Gelsomina e no final do filme chega à outra, onde se ajoelha na beira do mar e chorar a perda daquela pequena mulher-criança olhando para o céu. Fellini transformou a praia no espaço simbólico da revelação de uma crise interior: como em A Doce Vida (1959), (1962), Julieta dos Espíritos (1965), Amarcord (1972). Quando a mãe de Gelsomina a está entregando, diz que a moça é meio lenta, mas é capaz de aprender. Arrogante, Zampanò diz que não tem problema, pois ele é bem sucedido em ensinar cães. No final, Gelsomina é que domestica Zampanò.

A Trapaça
foi o título em português de “O Enganador” (Il Bidone, 1955), o segundo filme da trilogia. Desta vez temos Augusto, um vigarista que aplica um golpe vestido de padre. O enredo representa uma variação da estória cristã do bom ladrão, o personagem perto do Cristo crucificado, trançando a queda de Augusto num inferno pessoal através de cinco dias jogos de confissão (a partir dos quais ele aplica os golpes nos crentes) e um remorso crescente. (imagem abaixo, à esquerda, Augusto)

Àngel Quintana lembra que os personagens desse filme parecem um prolongamento dos parasitas de Os Boas Vidas (I Vitelloni, 1953). Augusto se fantasia de bispo, enquanto seu comparsa Picasso se veste de padre. Eles convencem as vítimas a entregar suas economias e heranças pelo bem de suas almas – qualquer semelhança com o Brasil atual é mera coincidência. “Por um lado, Il Bidone [A Trapaça] parece ser um drama a respeito da enganação reinante no mundo contemporâneo, do outro, o filme se apresenta também como uma interrogação sobre o que é uma crise existencial e sobre o medo do futuro” (4).

Fellini propõe uma reflexão sobre a velhice e seus medos. Augusto está na metade de sua vida, quando reencontra a filha que ele abandonou, percebe que não poderá redimir-se dos erros do passado e se vê preso numa teia de mentiras para si mesmo. Suas próprias mentiras o impedem de agir, mergulhando-o em desgosto. Como Zampanò, Augusto é vítima da dor que infligiu aos outros. Seu fim é trágico, abandonado por seus comparsas, agoniza numa terra deserta – com os braços abertos como o Cristo na cruz. Augusto busca uma redenção, mas é em vão. Seu calvário é aquele do homem que grita no deserto (5).

Quando de sua estréia no Festival de Cannes de 1955, A Trapaça gerou uma grande polêmica e Fellini foi obrigado a fazer um corte de vinte minutos (6). O cineasta só voltaria ao Festival em 1969, com Satyricon. Seu próximo filme As Noites de Cabíria (Le Notte di Cabiria, 1957), também esteve envolto em problemas. Desta vez o problema foi a concomitância entre um filme sobre uma prostituta e a polêmica sobre a legalização da prostituição que se desenrolava na Itália. Os setores católicos que apoiaram o começo da carreira de Fellini foram se afastando do cineasta (7). No final das contas, a legalização foi banida em 1958. Fecharam-se então os bordéis inspecionados pelo Estado e que tiveram grande influencia na educação sexual de homem italiano da geração de Fellini (8). (Cabíria, imagem abaixo, momentos antes de quase ser jogada montanha abaixo pelo último escroque que amou)

As Noites de Cabíria conta a história de uma mulher que quer ser amada. Giulietta Masina é Cabíria, a prostituta que deseja uma nova vida, casar-se, ter filhos e uma casa. Mas a realidade destrói seus desejos. Ela deseja tudo isso, entretanto o filme não põe na boca dela nenhum questionamento sobre a natureza de sua opção pela prostituição. Ela passa de relação em relação, sempre sendo abandonada pelos homens que ama. Quando o filme começa, vemos Cabíria ser atirada no rio por um desses homens. Quando o filme termina, ela quase vai outra vez.

Segundo Bondanella, apesar da presença de elementos na estrutura do filme que apontem para certo Neo-Realismo (Fellini entrevistou prostitutas de verdade para compor o papel e contratou Pier Paolo Pasolini para tornar o diálogo realístico pesquisando as gírias de Roma), ele acredita que o real interesse de Fellini caminhava em outra direção. O nível socioeconômico de Cabíria importava menos do que os estados subjetivos irracionais dos personagens. Na conclusão de Àngel Quintana...

“A trilogia formada por [A Estrada da Vida, A Trapaça e As Noites de Cabíria], inscreve Fellini no coração dos debates que atravessam o cinema europeu [de então] – do cinema de Ingmar Bergman ao de Michelangelo Antonioni – e propõem uma reflexão sobre a maneira pela qual o primado dos valores materiais engendrou certo vazio interior e alimentou a indiferença no interior das relações humanas. Nesses três filmes, o cineasta é perseguido pela descrição de uma possível redenção num mundo sem amor. Fellini articula suas três narrativas em torno de seres fracos em plena crise moral que surgem rapidamente como espectros de uma humanidade errante numa época de forte tensão espiritual”. (9)


Leia Também:

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Notas:

1. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. P. 24.
2. Idem.
3. QUINTANA, Angel. Federico Fellini. Paris: Cahiers du Cinema, 2007. P. 29.
4. Idem, p. 31.
5. Ibidem, p. 34.
6. Ibidem, p. 30.
7. Ibidem, p. 35.
8. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., p. 25.
9. QUINTANA, Àngel. Op. Cit., p. 28.

19 de abr. de 2008

Fellini e a Trilogia do Caráter


Composta por Mulheres e Luzes (Luce del Varietà, co-dirigido por Alberto Lattuada, 1950), Abismo de Um Sonho (Lo Sceicco Bianco, 1952) e Os Boas Vidas (I Vitelloni, 1953), estes filmes também são os primeiros da carreira de Fellini. Falam das ilusões e sonhos dos italianos do interior, que cresceram pensando em mudar suas vidas partindo para Roma (o êxodo para o grande centro desenvolvido), ou tornando-se um famoso personagem do show business.

Embora o cinema Neo-Realista seja caracterizado por temas mais urgentes (como desemprego, a guerra e a resistência, assim como a recuperação econômica do pós-guerra: temas socialmente relevantes), na definição de Peter Bondanella, ainda que não tratem diretamente desses assuntos, os filmes que compõem a trilogia possuem um sabor Neo-Realista. Em sua opinião, a crítica amarga em relação à vida provinciana, cheia de ilusões cômicas e personagens fracassados, poderia facilmente abrir caminho para uma crítica mais politizada da Esquerda em relação à cultura burguesa italiana. O que esses críticos de esquerda não perceberam, completa Bondanella, é que Fellini estava mais interessado no lado subjetivo da vida e o poder da ilusão e da fantasia (1).

Em Mulheres e Luzes, mostra um lado amargo do mundo de um grupo itinerante de vaudeville. Enquanto a trama de amor e traição se desenrola, acompanhamos os intermináveis empecilhos que surgem nessa profissão. Giulietta Masina, a esposa de Fellini, já aparece como vítima de um mundo masculino infantil e machista. O diretor do grupo tem uma relação com ela, mas ele é um mulherengo e logo cai na rede de uma rival, Liliana, que utiliza seus encantos para conseguir a posição de estrela do espetáculo (imagem ao lado, a partir da esquerda, a esposa, o marido mulherengo e a amante). Checco, o diretor, quando deixa de ter capacidade de conseguir o que Liliana deseja, é abandonado por ela sem piedade. Então a personagem de Giulietta entra em cena e o recebe novamente. Mas tudo isso não serve de lição, pois, na cena final, Checco está no trem com a única mulher que parece amá-lo de verdade, e já está flertando com outra mulher.

O filme já apresenta uma série de elementos temáticos que se tornarão marca registrada de Fellini. Praças vazias durante a noite, onde seus personagens encontram outros que refletem a respeito de suas ilusões; Celebrações noturnas frenéticas que dão lugar a inevitáveis desilusões ao amanhecer; desfile de personagens grotescos incomuns com traços físicos cômicos, lembranças dos personagens que Fellini criava quando fazia caricaturas no jornal em que trabalhou (2).

Abismo de Um Sonho (imagem ao lado) é uma comédia que mostra o mundo da fotonovela e sua grande influencia na Itália do pós-guerra. Um casal vem do interior para casar-se em Roma. Chegando lá, Wanda, a noiva sai escondida para encontrar-se com o galã de sua fotonovela preferida, O Xeique Branco, com quem vinha trocando cartas em segredo. Moça ingênua do interior, na busca por seu herói, acaba sendo levada para longe do hotel em que está hospedada. Depois de sucumbir aos encantos do Xeique, arrumar uma briga com a esposa dele e ser deixada sozinha sem saber voltar para o noivo, ela terá que enfrentar a fúria dele. Ivan, o noivo, descobriu uma das cartas dela para seu galã e acredita tratar-se de um amante. No final, ele a perdoa (quando ela dá a entender que ainda é virgem) e o casamento se consuma.

Àngel Quintana também percebe nesse filme uma das principais obsessões fellinianas: a relação entre sonho e realidade. A partir daí Fellini cria dois motivos temáticos que se tornam típicos de sua poética: a figura da ingênua simples de espírito que poetisa o materialismo que a circunda e a busca de um espaço onde as ilusões são construídas (3).

Os Boas Vidas
gira em torno de um grupo de amigos que cresce numa cidade do interior sem grandes perspectivas de desenvolvimento (no vídeo abaixo, fazendo pouco dos trabalhadores braçais: "trabalhadores, prrrr"). Vitelloni, como se chamou em seu título original é uma palavra do dialeto da região onde nasceu Fellini e refere-se a pessoas imaturas, preguiçosas, jovens sem qualquer noção clara de direção em suas vidas. Cada um dos cinco amigos tem sonhos (mudar-se para a capital, escrever uma grande peça teatral, ser o casanova da cidade, etc). Quando as máscaras caem, revela-se a realidade superficial e vazia de suas verdadeiras personalidades. Moraldo é o único que realiza seu desejo, mudar-se para a capital. Muitos daqueles que interpretam como autobiográfica a obra de Fellini, vêem em Moraldo um alter ego do cineasta e predecessor de outro, Marcello, o jornalista do interior que se torna o famoso escritor em crise de A Doce Vida (1959).

Notas:

Leia Também:

Fellini e a Trilogia da Salvação
Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

1. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. P. 23.
2. Idem, p. 19.
3. QUINTANA, Àngel. Federico Fellini. Paris: Cahiers du Cinema, 2007. P. 20. 


15 de abr. de 2008

Bernardo Bertolucci e o Parceiro Ideal (Epílogo)

"É proibido proibir"


Espetáculo/Revolução

Durante uma aula ao ar livre entre ruínas romanas, Jacob (ou seu duplo) dá instruções para a revolução/espetáculo que planejou. São proferidas muitas palavras de ordem nascidas nas manifestações de maio de 1968 em Paris: “é proibido proibir”, “roubem sua felicidade” (01h25min). Na verdade, conta Bertolucci, Pierre Clementi, o ator que interpreta Jacob (e seu duplo) viajava toda semana à Paris nos intervalos das filmagens em Roma. Portanto ele estava bem informado sobre os acontecimentos e trazia sempre novidades (1). Durante outra aula, Jacob (ou seu duplo) pede que seus alunos e alunas façam algumas tarefas. Enquanto eles estão em ação, Jacob (ou seu duplo) vai espelhando teias de aranha artificiais e explica:

“Podemos dizer que está acontecendo algo? Não, não acontece nada. As coisas não são como vemos, nem como geralmente sentimos. Mas como o teatro mostra. As coisas são receptáculos do mal, ou seja, da irrealidade. O teatro é uma das vias que conduz o homem à realidade. No início, as coisas eram verdadeiras. O mundo na sua infância era real. Tinha uma ressonância nos homens. Olhar para o mundo naquele tempo era ver o infinito. Agora, está crescendo em mim algo de horrível. Que não vem de mim, mas das trevas que estão em mim. E logo não haverá mais nada. Só as nossas máscaras obscenas que imitam a realidade no meio dos escarros e do esterco do mundo”.



A espiá-los está ele: o seu Jacob


"Qual é a Moral [da história]?" Então começa a montar o que parece ser um coquetel molotov: aquelas garrafas com liquido combustível que ficou marcada desde a Segunda Guerra Mundial como uma forma de defesa daqueles que lutam de mãos vazias contra exércitos e estavam sendo muito utilizadas em Paris (na vida real) naquele momento – era 1968.

Devemos Tirar as Máscaras!

Aparentemente, foi Jacob e não seu duplo que matou tanto Clara quanto uma mulher que bateu em sua porta vendendo detergentes. Essa vendedora já havia estado em sua casa antes. Dessa vez, ela aparece marcando os prédios com um X (possivelmente aqueles que ela já visitou), e no último ela desenha uma suástica nazista (01h27min). A partir daí, Bertolucci começa a pintar as imagens com grandes X em tinta vermelha. Ela chega à casa de Jacob (ou seu duplo), dança com ele em torno da máquina de lavar, se besuntam de sabão e depois ele a enforca. Ele tinha sido a primeira (e única) pessoa que viu Jacob e seu duplo juntos, fato que o duplo deixou claro que não havia gostado.

Jacob foi rejeitado pela sociedade da qual faziam parte Clara e o professor. Agora Jacob quer destruir essa sociedade. Segundo Claretta Tonetti, essa mulher do detergente seria uma transfiguração de Jacob e também de seu duplo. Jacob e seu duplo não se dividem apenas em duas partes, assim como o espelho (a mente de Jacob; sem esquecer que Jacob oferece seu armário, que possui um grande espelho na porta, para o duplo morar) não se quebra apenas em dois pedaços.


 

Na verdade, muitos são os fragmentos de Jacob, essa mulher seria apenas mais um deles. Vendendo detergente de porta em porta, ela é parte de uma sociedade alienada. “A garota tem olhos pintados em suas pálpebras; isso permite que ela recite as virtudes dos detergentes com seus olhos ‘reais’ fechados” (2). Se concordamos com Claretta, quando Jacob faz amor com a mulher, significa que ele faz amor com seu duplo, o que significa que ele faz amor consigo mesmo.

Jefferson Kline lembra que, a partir do momento em que o duplo de Jacob aparece, os dois tornam-se virtualmente indistinguíveis, diminuindo a sensação de coerência. O filme de Bertolucci, afirma Kline, não pode ser amarrado a nenhuma lógica narrativa. Se existe uma narrativa em Partner, ela é fragmentada e associativa como a estrutura dos sonhos. “E como um sonho, não tem desfecho [ou solução]; simplesmente desaparece da consciência” (3).

Agora Jacob (ou seu duplo) está entre as montanhas de livros no seu quarto, depois de concluir que ele só faz exercícios e que os atores seus alunos devem ir para as ruas, ele fala para si mesmo: “vamos tirar as máscaras!” (01h32min). Quando ele percebe que nenhum dos alunos virá ao encontro marcado para começar a revolução/espetáculo, Jacob (ou seu duplo) fica se perguntando o que teria acontecido. Mais tarde, conversando com Jacob (ou seu duplo), diz que, como ele os alunos sentiram medo. Por esse motivo, ele (Jacob ou seu duplo) mandou o outro (Jacob ou seu duplo) em seu lugar, já que o considera o partner (parceiro) perfeito (01h42min).




Jacob fez uma guilhotina para seu duplo. Ele quer a cabeça de seu duplo, por isso fez a coisa usando seu próprio pescoço como molde. Queria desaparecer com sua cabeça para evitar equívocos. Jacob tem algo a dizer para seu duplo, então o outro coloca seus protetores de ouvido e se prepara para ouvir. Em principio, nesta seqüência final, Jacob é Jacob e seu duplo é seu duplo, se acreditamos que a diferença entre as roupas que usam diz alguma coisa – a roupa de Jacob e seu corte de cabelo são mais formais e comportados. Neste momento, Jacob caminha em nossa direção (para os espectadores que somos nós) e fala:

“Vamos abrir um parêntese. Eu aposto que não entenderam nada. Porém, é tão evidente. Basta olhar ao redor, perto de vocês ou duas filas à frente, ou atrás de suas costas, pronto a espiá-los está ele: o seu Jacob. Porque vocês também têm um. É o que gostariam de ser, por isso tem medo dele e o evitam. Negando-lhe a existência. Mas pensem o que fariam juntos. O que aconteceria se todos os nossos Jacós se reunissem em uma máfia, um partido, um exército e lutassem contra os nossos inimigos. Coragem, quando saírem daqui, procurem seu Jacob. Convidem-no, ofereçam-lhe dois ovos. Liberem a fera e o espetáculo se fará. E será permanente. Fecho o parêntese”.

Então Jacob sai pela janela do apartamento, aparentemente com a intenção de pular. Seu duplo, que está ainda está examinando a guilhotina, percebe e vai até lá. Segue-se o diálogo final:


Duplo: Pare! Um minuto. Quer um cigarro?
Jacob: Obrigado, não fumo.
Olhando para a rua lá embaixo...

Duplo: Olhe, fingem não vê-lo.
Jacob: Ainda não me viram.
Duplo: Jacob fingem não vê-lo porque temem que mudem de idéia.

Jacob: O que você quer dizer?
Duplo: Quero dizer que querem que você salte. Porque o odeiam.
Jacob: Fique quieto.
Duplo: Jacob foi
você que me ensinou. Se quiser vê-los felizes, salte! Salte já!
Jacob: Fique quieto!
Duplo: Daqui a pouco não re
sistirão. Olharão para cima e gritarão. “Salte!”, gritarão.
Jacob: Chega, não fale mais.
Duplo: Se saltar eu também saltarei. Jacob, aonde vai?
Jacob: Vou dar uma volta.

Duplo: Espera, vou com você. Jacob vamos recomeçar?
Jacob: Não sei, veremos com o tempo.
Duplo: E a rapaziada, nos traiu mesmo? [refere-se aos atores alunos de teatro que não compareceram ao encontro para a revolução/espetáculo]
Jacob: Não sei. Com o tempo, veremo
s.
Duplo: Jacob, ainda não percebi se nós dois somos um ou dois.
Jacob: Não sei. Com o tempo, veremos.
Duplo: Jacob! Jacob! Tenho uma idéia.
[o filme termina imediatamente após esta fala]


Em Partner, não há vencedor na luta entre o teatro e o cinema. Como sugeriu Claretta, Jacob representa o teatro, enquanto seu duplo representa o cinema. Apanhados numa teia de conexão e hostilidade, os dois caminham para a beirada do parapeito da janela do apartamento de Petruska. Na avaliação de Jacob, completa Claretta, essa sociedade primeiramente mostra indiferença à dor, depois estimula o suicídio. Apesar disso, o final de Partner é aberto e na deixa evidente o que de fato irá acontecer no instante final (4).

Para Não Concluir 



“Eu creio que
 Partner  seja  um  dos
filmes  mais  livres  de  todos
que realizei. E é também um
dos filmes mais difíceis 
para o público” (5)




"Eu aposto que não entenderam  nada.  Porém,  é
tão evidente". "Por isso têm medo dele e o evitam"

Procurando definir Partner, talvez o filme mais complicado de Bertolucci, Claretta Tonetti afirmou que não se trata de uma obra para entreter ou agradar. Peter Bondanella, um dos estudiosos americanos sobre o cinema italiano que assistiu ao filme quando de sua estréia na América do Norte, não estranhou que o público em geral não tenha compreendido. Em sua opinião, Bertolucci foi “intencionalmente anticomercial” (6). Bilge Ebiri define o filme a partir da influência de Jean-Luc Godard:

“Muitos dos filmes mais antigos de Bertolucci funcionam simultaneamente como homenagens e exorcismos. [Pier Paolo] Pasolini e Jean-Luc Godard são os pais espirituais gêmeos do cineasta nos anos 60, e a influência do último é claramente evidente em Partner, o terceiro filme de Bertolucci, uma tentativa no estilo elíptico, travesso, altamente simbólico e politicamente ativo do cinema pós-Nouvelle Vague de Godard. Uma adaptação livre de O Duplo, de Dostoyevski, Partner é a estória de um jovem idealista (Pierre Clementi) que é confrontado com seu doppelganger [duplo] politicamente revolucionário, socialmente ativo, e possivelmente psicótico. Repleto de tentativas de distanciamento brechtiano (texto na tela, dirigir-se diretamente à câmera, etc.), o filme mantém hoje certa fascinação, pela forma como o poder do florescente lirismo e segurança cinematográfica de Bertolucci confronta-se com o estilo fragmentado e altamente declarativo dos filmes mais políticos de Godard”. (7)

Pier Paolo Pasolini considerou Partner excepcional. Na verdade, achou mesmo que o filme é efetivamente revolucionário na história do cinema. A forma como foi construído, afirma Pasolini, faz com que o espectador perca a ilusão de que está dentro do filme. Ou seja, nos mantemos espectadores, como quando estamos na platéia do teatro – no sentido tradicional do termo. O espectador não toma parte na ação, observa Pasolini, ele testemunha. Os únicos momentos onde essa sensação diminui ocorrem nas cenas onde existe o contracampo – e Pasolini acha que são em número pequeno demais para destruir a sensação de testemunho. E completa: “uma técnica ou estilo semelhante não havia jamais sido utilizado, que eu saiba”.


“Um cinema que não implica sentimentalmente o espectador, mas que o obriga a julgar”. Ainda que os planos-seqüência abundem, lembra Pasolini, este não é um filme teatral. Partner faz parte do cinema que estabelece uma outra relação entre teatro e cinema. “O cinema não se assemelhará mais ao teatro apenas quando ele é constituído de longos planos-seqüência. Mas ele se assemelhará ao teatro igualmente quando se desenvolve inteiramente em ‘campo’, sem ‘contracampo’ “.


Um elemento que Pasolini não aprovou foram as citações. No panorama de um novo cinema como o pré-figurado por Partner, dirá Pasolini, é uma contradição que se utilizem citações do cinema anterior. Pasolini não chega a falar das citações explícitas do cinema mudo (Nosferatu e O Encouraçado Potemkin [imagem acima]). Ele se referiu especificamente ao musical americano (a cena da escadaria, quando o duplo vai encontrar a namorada de Jacob às escondidas) e as lembranças do cinema de Godard (especialmente os manifestos contra a guerra do Vietnã). Mas Pasolini se estende na crítica as citações da obra de Fellini. Elementos gigantes (a grande sombra que chuta o traseiro de Jacob), a guilhotina, a coleção de borboletas na parede, a cena de amor no ônibus, especialmente a mulher que vende detergente (com seus olhos pintados nas pálpebras) (8). Confesso que, neste último exemplo, não foi Fellini que me veio à lembrança, mas Jean Cocteau.

Nas palavras do próprio Bertolucci, pouco encorajadoras para aqueles que se interessam pelo filme, Partner tem certo sabor amargo:

“Atrás de nosso filme estava o sadismo que impunha ao espectador a responsabilidade de separar-se do seu lado emocional que deseja força-lo a refletir a qualquer custo... Mas também tinha o masoquismo de fazer coisas que ninguém queria ver, de fazer filmes que os espectadores iriam recusar. Medo de uma relação adulta com o publico nos fez refugiar-se num cinema pervertido e infantil. A partir desse ponto de vista, Partner é realmente um tipo de manifesto do cinema de 1968”.(...)”Eu filmei Partner após quatro anos de inatividade, e não é possível fazer um filme a cada quatro anos. Você perde a naturalidade... Cada fotograma me faz sofre como se minha vida estivesse em jogo. Partner é meu filme menos natural” (9).

Apesar de tudo Bertolucci admite que, por mais que hoje eles o façam rir um pouco, os elementos ativistas dos quais comungava em 68 traziam consigo um elemento de sonho que é preciso cultivar. Em entrevista de 2003, referindo-se ao seu novo filme, Os Sonhadores (The Dreamers, 2004), o cineasta retorna a 1968. Se antes, com Partner, ele esta assistindo tudo de Roma, agora ele está em Paris, no olho do furacão. Talvez se redimindo do tom desdenhoso de sua opinião no parágrafo anterior, Bertolucci reincorpora Partner em sua conexão com Os Sonhadores. Não se trata de envergonhar-se das apostas políticas e estéticas do passado. O que importa é saber que elas nasceram de uma capacidade de sonhar cuja chama deve aquecer os corações:




“Eu creio que o nível narrativo verdadeiro [de Partner] seja quase todo onírico. Mas tinham de passar quase 35 anos e eu precisaria fazer outro filme para me dar conta do significado, da importância dos sonhos mesmo na vida diária. Se era justo sonhar em 1968, é muito mais justo continuar sonhando hoje.” (10)


Leia Também:

Bernardo Bertolucci e o Parceiro Ideal (I)

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

Notas:

1.Da entrevista de Bertolucci (2003) que consta dos extras do dvd de Partner, lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo em 2008.
2. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The cinema of ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. p. 65.
3. T. Jefferson Kline. Bertolucci’s dream loom. (University of Massachussets Press, 1987. P. 58) IN TONETTI, Claretta M. Bernardo Bertolucci.... Op. Cit., p. 64.
4. TONETTI, Claretta M. Bernardo Bertolucci.... Op. Cit., pp. 71-2.
5. Da entrevista de Bertolucci (2003) que consta dos extras do dvd de Partner, lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo em 2008.
6. TONETTI, Claretta M. Bernardo Bertolucci.... Op. Cit., pp. 72-3.
7. EBIRI, Bilge. Bernardo Bertolucci. Senses of Cinema, 2004.
8. JOUBERT-LAURENCIN, Hervé (org.). Pier Paolo Pasolini. Écrits Sur Le Cinema. Paris: Cahiers du Cinema, 2000. Pp. 137-140.
9. TONETTI, Claretta. Bernardo Bertolucci... Op. Cit., p. 72.
10. Da entrevista de Bertolucci (2003) que consta dos extras do dvd de Partner, lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo em 2008. 

14 de abr. de 2008

Bernardo Bertolucci e o Parceiro Ideal (I)


Partner é o grito de alguém que está sendo esfolado vivo, 
um filme esquizofrênico sobre esquizofrenia,  assim como
anos   atrás,   mas   com   menos   infelicidade,    [Antes   da
Revolução]  foi um filme ambíguo  sobre  ambigüidade”  (1)

Bernardo Bertolucci

Jacob:"A vida é bela é uma frase idiota!" 
Duplo:"Eu quebro a sua cara"


A Narrativa

Jacob é um jovem francês que vive em Roma, onde ensina representação. Após uma cena sem explicação onde ele mata um amigo pianista, Jacob chega sem ser convidado na casa de um professor onde o aniversário de Clara, uma mulher que Jacob ama, está sendo celebrado. O professor não quer vê-lo (a razão nunca será revelada), e Jacob é rejeitado duas vezes: primeiro quando a empregada bate a porta na sua cara e novamente quando os convidados literalmente o carregam para fora da casa. O trauma da humilhação, diria Claretta Tonetti, produz uma personalidade partida (imagem abaixo, duplo acima, Jacob abaixo). Deste ponto em diante, haverá “dois” Jacobs. A próxima cena mostra Jacob diante do espelho sendo abordado por seu duplo:


Duplo: Jacob. Jacob. Não fique tão tenso, Jacob!
Jacob: Eu não estou tenso.

Duplo: Sim, Jacob. Sente o sangue que corre nas veias?
Jacob: Nas veias?
Duplo: Nos braços, Jacob.
Jacob: Nos braços?
Duplo: Como bate nas têmporas?
Jacob: Nas têmporas?

Duplo: Jacob, você não sente que está quase desmaiando? Está quase desmaiando, não é?
Jacob: Não!

Duplo: Ah Jacob. Jacob olhe para mim!
Jacob: Sim.

Duplo: Seus olhos estão se fechando sozinhos! Você está em minhas mãos, Jacob. Volte à casa do professor. Entre pela porta de serviço, atravesse o jardim, depois a sala de jogo, depois o salão de baile. Vá, Jacob, vá!
Jacob: Mas eu estou com medo.
Duplo: Você é um covarde, um verdadeiro covarde!

Jacob: Não tenho culpa por ter medo.
Duplo: Jacob estará lá dentro com a Clara. Você quer dançar com ela, não é? Dançar com ela e apertá-la em seus braços?

Jacob: Sim...
Duplo: Então vá!

Jacob: Sim... Já vou.
Duplo: Então tchau.

Na rua, após a segunda expulsão, vemos Jacob sozinho gritando e dando socos no ar. Ele acredita estar rodeado por cinqüenta atacantes, mas ele vence a luta. Apenas para que, descendo a rua, seja perseguido por uma sombra gigante, que chuta seu traseiro. No dia seguinte ele vai para a sala de aula, seus alunos da turma de representação o esperam. 

Com ações que se tornam cada vez mais enigmáticas – uma vez que não existe seqüência lógica e uma vez que é muitas vezes impossível distinguir “um” Jacob do “outro” – ele mata: primeiramente enforca Clara no ônibus e depois uma jovem que vende detergentes de porta em porta. Ele também prepara seus estudantes para derrubar a sociedade com uma “revolução/espetáculo”, chamado “o poder à imaginação”. Entretanto, nunca chega a acontecer porque nenhum dos atores comparece. O filme termina com os dois Jacobs saindo por uma janela, aparentemente para cometer suicídio.

O Duplo

O filme é baseado em O Duplo, novela de Fyodor Dostoyevski. A divisão da personalidade no duplo de Dostoyevski começa depois que o protagonista se olha no espelho. Golyadkin é um homem angustiado e solitário, cuja paranóia e possível esquizofrenia faz com que veja um duplo de si mesmo. No começo, o duplo é gentil; posteriormente, aos olhos de Golyadkin, o duplo torna-se seu torturador. No final, Golyadkin parece perder a cabe ça completamente, sendo levado para uma instituição mental. Jacob mora com um velho que possui o mesmo nome do servo de Golyadkin. Entretanto, em Partner, ficamos sabendo que o servo Petruska é o verdadeiro dono do apartamento onde mora Jacob. 



"Quanto maiores são as sombras, melhores serão os filmes"
 
(Bertolucci citando uma frase típica do expressionismo alemão)


Bertolucci enfatiza a dualidade desde os créditos iniciais do filme. Os créditos iniciais aparecem numa tela dividida em duas faixas horizontais, uma vermelha e outra azul. A trilha sonora alterna dois estilos musicais diferentes. Quanto a musica, descobriremos que irão alternar-se durante todo o filme. Na primeira seqüência, vemos Jacob sentado no bar, ele está com protetores de ouvido e folheando um roteiro de Nosferatu (o filme mudo dirigi
do por Murnau em 1922). Alguém cola um cartaz na árvore em frente que dizia “Vietnã libero”, então descobrimos que o azul e branco se refere à bandeira do Vietnã do Norte – que então lutava contra os norte-americanos.

Numa série de momentos, a figura de Nosferatu é evocada nas posturas de Jacob enquanto ele folheia o livro sobre este filme – posteriormente Jacob, já tendo uma relação com seu duplo, coloca-se na frente de seus alunos assumindo uma das posturas típicas de Nosferatu (23min:30sec) - é com uma arma que Jacob encontrou no livro que matará seu amigo (talvez amante) pianista (2). Após algumas cenas na escola de teatro, onde Jacob vê seu duplo roubar um livro na biblioteca, vai para um urinol de rua em Roma. Ele pretende se suicidar, mas seu duplo faz com que desista.  


Bertolucci também faz um elogio ao teatro, na figura de O Teatro e Seu Duplo, de Antonin Artaud, que Jacob recita enquanto espera sua calça ser aprontada por seu mordomo. “O palco é a vida e a vida é o duplo do teatro”, “Eliminar o palco e o auditório. Substitua-os por um único espaço”. Um elogio ao teatro e sua superioridade em relação ao cinema. Lembrar de Artaud é apontar para um teatro não tradicional, que rompe com o discurso lógico, com o teatro tradicional e com a vida racional (3). Como nota Claretta Tonetti, o cinema parece ser criticado e amado ao mesmo tempo. Quando o duplo pergunta a Jacob como será o espetáculo, ele enumera os temas que serão tratados: as o conflito de gerações, pessoas que pensam ser imortais.

Duplo: Como ele começa?
Jacob: Teatro.
Duplo: Como ele termina?
Jacob: Teatro.

Jacob repete a palavra “teatro” mais de dez vezes, seguida pela repetição também pelo duplo. No final da seqüência, uma voz sussurra: “Cinema”. Na opinião de Claretta, Jacob representa o teatro, enquanto seu duplo representa o cinema. (4) Bertolucci afirmou que esse tipo de cena tem a ver com a influencia que o tema do duplo teve pelo menos na primeira parte de sua obra: “Estava fazendo um filme, mas que não era sobre cinema, mas sobre teatro. 


E, portanto, junto teatro e o cinema. Ou coloco-os em conflito mútuo” (5). Desta forma, dizer uma coisa para em seguida contradizer-se. Comentando sobre o tema de seu filme numa entrevista durante as filmagens em 1968, Bertolucci assim resume a estória:

“Em minha opinião, um intelectual europeu neste momento é incapaz de produzir uma ação revolucionária. O personagem de meu filme é um intelectual europeu que encontra seu duplo, isto é, seu sósia. E é exatamente este encontro que resolve a situação de impotência, de impasse, em que se encontrava. Ou seja, o seu sósia realiza tudo que ele nunca conseguiu fazer. O protagonista do filme, isto é, o sósia do protagonista, leva os alunos de teatro a saírem da escola para a rua. É um teatro ideológico, um teatro político”. (6)

A Natureza Não é Natural

Enquanto isso, Jacob está construindo alguma coisa de madeira – descobriremos tratar-se de uma guilhotina. Quando Jacob tenta se suicidar num urinol das ruas de Roma, seu duplo aparece e faz pouco caso dessa tentativa. O duplo critica a falta de criatividade de Jacob quanto à escolha do local. Nesse momento (aos 27 minutos) temos um longo
diálogo entre os dois:

Duplo: Não faça bobagem.
Jacob: O que está fazendo aí?
Duplo: O que se faz num urinol?
Jacob: Quero Morrer.
Duplo: Mentira... Sei de suicídios em trens, em poços, em aviões, nas catacumbas, mas num urinol nunca tinha ouvido.

Jacob: Deixe-me em paz.
Duplo: Aliás, agora me lembro, houve um padre. Deixou um bilhete escrito: “Botões demais para abotoar e desabotoar. Eu vou me matar”.
Jacob: Por que todos me perseguem?
Duplo: Por favor, levante-se!
Jacob: Só se eu quiser. [após alguma hesitação ele se levanta].

Duplo: Agora abotoe o pulso da camisa. Vamos.
Jacob: Não... Só farei isso se eu quiser. [Após alguma hesitação ele abotoa].
Duplo: Olhe ao redor. Veja a natureza.
Jacob: A natureza não é natural.
Duplo: As árvores, o rio.
Jacob: Não, não, não... Você e eu tomamos rumos diferentes. É matematicamente certo que seguimos rumos diferentes.

[na próxima seqüência, ao chegarem à casa de Jacob...].

Jacob: Está é a câmara escura. Pelo menos eu a chamo assim.

Duplo: Não me parece tão escura. Não gosto. Cheira a mofo.
Jacob: Talvez porque está desarrumada. Como devo tratar você? Desculpe, o senhor?
Duplo: Jacob.
Jacob: “Ja” e “Cob”. Junior e sênior. Criminal e diabólico.
Duplo: Eu sou o Jacob.
Jacob: Então, quem sou eu? Desculpe-me, gostaria de tratá-lo informalmente. Jacob gostaria de saber a que devo a honra...
Duplo: São coisas que acontecem. A vida é bela.
Jacob: A vida é bela é uma frase idiota! [rindo]

Duplo: E eu quebro a sua cara. [momento da imagem no início do artigo]
Jacob: Desculpe, não queria ofendê-lo. Só queria lhe ensinar que “A vida é bela” é um lugar comum. Bem...
Duplo: Eu lhe ensino a não ensinar.
Jacob: E então? A que devo a honra?
Duplo: Tenho fome.
Jacob: O que você quer comer?
Duplo: Ovos fritos.
Jacob: Eu também gosto muito! Estou indo.

Duplo: Jacob.
Jacob: Sim?
Duplo: Você se parece comigo, mas gosto de você.
Jacob: Só falta decidir se sou eu que pareço com você, ou vice-versa.

Momentos depois, enquanto um Jacob come, o outro oferece o armário (cuja porta possui um grande espelho) como quarto. Jacob parece fascinado com a possibilidade de trocar de roupa com seu duplo. Continua falando e falando, até que, quando se vira, Jacob está dormindo. Começam a discutir ao perceber que a porta do quarto não está trancada. Portanto, nenhum dos dois sabe se o outro saiu durante a noite. Anteriormente vimos o que parecia ser o duplo de Jacob saindo para se encontrar com Clara no lugar de Jacob e transar com ela. Outra seqüência no quarto mostra o duplo amedrontado com os trovões de uma tempestade. Ele fica pedindo para que Jacob se proteja.  



O intelectual europeu é incapaz de produzir uma ação revolucionária

Bertolucci, 1968


Quando Jacob afirma “a natureza não é natural”, ele chama atenção para o equívoco da interpretação que remete ao bem fundamental: na verdade, a natureza é cruel e amoral. É curioso que essa idéia de uma natureza bela e inofensiva exista numa cultura que destrói sistematicamente o mundo natural – a ponto de se definir o ser humano a partir do domínio que passou a exercer sobre a natureza. O duplo diz, veja a natureza ao redor... Na verdade, as árvores que se vê estão confinadas ao espaço definido pelo jardim, que é limitado pelo cimento da calçada. Da mesma forma, o rio que é mostrado está canalizado, suas margens limitadas por cimento e tijolos. 

Por outro lado, sugere Claretta Tonetti, se aceitamos a parte não-natural da natureza (aquela parte que produz o cruel, o ilógico, o indesejado) que construímos como algo sem crueldade e belo, então aquilo que tememos (a natureza não-natural) torna-se arte. Desta forma, aos olhos de Jacob, a não-naturalidade da natureza torna-se uma força positiva. Aos olhos de Jacob, a natureza produziu um duplo perfeito, um aliado contra a sociedade hostil. Jacob e seu duplo são, em suas palavras, como dois vermes vivendo de e no corpo morto que é essa sociedade hostil. E não existe mais diferença entre heróis e monstros: a monstruosidade da sociedade morta é habitada pela monstruosidade de um “homem duplo” que deseja ser o vencedor (7). 


Leia também:



Notas: 
 
1. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The cinema of ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 49.
2. Idem, p. 53.
3. Ibidem, p. 54.
4. Ibidem, p. 69 e 71.
5. Da entrevista de Bertolucci (2003) que consta dos extras do dvd de Partner, lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo em 2008.
6. Idem.
7. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci... Op. Cit., p. 61. 

8 de abr. de 2008

Aquele Que Sabe Viver


“O tenho em alta estima e
o prefiro a todos os rapazes da
minha idade, [que] são estúpidos,
superficiais e convencidos, e se
sentem como super-homens
(...).
Hoje, o mundo está cheio de
casamentos de amor falidos.
Não faltam exemplos”


Lili, a filha de Bruno com 18 anos,
defendendo seu namorado de 60

Tentando Ultrapassar os Obstáculos

Mil desculpas aos que acharam que este seria um texto de auto-ajuda. De fato, com um título destes, dificilmente se poderia imaginar outra coisa. Na verdade, este é apenas o título de lançamento no Brasil do filme dirigido por Dino Risi. Originalmente intitulado Il Sorpasso (1962), cuja tradução correta é A Ultrapassagem, apresenta Vittorio Gassman no papel principal e Jean-Louis Trintignant desempenhando a função daquele que supostamente não sabe viver. Na França, o filme recebeu o título talvez mais apropriado de O Fanfarrão.

O quarentão Bruno (imagem acima, plantando bananeira) se recusa (ou não consegue) parar de agir com a impulsividade, arrogância, irresponsabilidade de um adolescente. Hedonista, sempre sem dinheiro, vive de pedir empréstimos para colocar gasolina em seu carro esporte conversível. Compulsivo, está sempre procurando por cigarros, mesmo que seja do cinzeiro do carro dos outros. Não leva nada a sério, invade a casa ou a festa de desconhecidos com naturalidade. Infringe as leis de trânsito. Falastrão, no fundo não conversa com ninguém, apenas fala o tempo todo. Dificilmente consegue-se fazê-lo ouvir os argumentos dos outros, pois ele está sempre tagarelando e dirigindo a conversa na direção de sua preferência.

Tem uma filha com 18 anos que raramente visita. Sua esposa, que ele não visita há três anos, deu-lhe o dinheiro para colocar o divórcio em curso, mas ele preferiu não se divorciar (e ficou com o dinheiro). Ela diz que não quer mais relacionamento com ninguém e prefere ficar só. Quando Bruno apareceu uma noite na casa dela com Roberto, o jovem tímido que a essa altura já estava de porre, descobriu que sua filha chegaria tarde da noite com o namorado. Irritou-se e condenou a irresponsabilidade da esposa na condução da educação da filha. Quando a moça chega, ele procura intimidar o namorado. Entretanto, trata-se de um homem de 60 anos, empresário, rico, que afirma detestar aqueles que vivem em Roma, que considera uma cidade de pessoas que não querem trabalhar. Bruno não gosta da observação, já que ele é um romano. Em suma, o namorado da filha de Bruno é mais velho e mais responsável. Tempos depois, Bruno pede dinheiro emprestado a seu futuro sogro. Empréstimo que Bruno diz que só merecerá depois que ganhar dele no ping pong.

A mãe/pai, a filha Lili, Bruno e Roberto (bêbado).

Após a saída do namorado de Lili (a filha), Bruno volta à carga contra ele. Mas Lili elogia o homem que escolheu, desdenhando os homens de sua idade – curiosamente, todas as características que ela descreve deles lembram Bruno, seu pai quarentão. Além disso, critica os casamentos falidos que se multiplicam – comentário que também remete a seu pai (veja epígrafe no princípio do artigo). Apesar de tudo, sua filha pede que ele não mude. Confessa que escolheu esse parceiro porque busca segurança, pois no fundo não tem certeza de nada na vida. A atitude do pai diante da vida (alguém que supostamente sabe o que quer, não se importando com o resto) é o que ela não consegue assumir. Por esta razão, ela não quer que ele mude.

Roberto (Trintignant) é o carona de Bruno. Pouca idade, tímido, hesitante e estudioso, é exatamente o oposto de Bruno. Ele não tem personalidade para impor seus pontos de vista frente ao furação Bruno. Aos poucos Roberto vai se soltando. No final do filme, os dois amigos estão em alta velocidade tentando ultrapassar um carro. Numa das tentativas, Bruno se depara com um caminhão vindo em sua direção. Tenta desviar, sai da estrada, é jogado para fora do carro. Roberto rola montanha abaixo dentro do carro e morre. Esta foi a última ultrapassagem (daí o nome do filme), uma que Bruno não conseguiu fazer e que tirou a vida daquele que supostamente não sabe viver. Era uma estrada litorânea, lado a lado com a vastidão do mar sem trilhas ou estradas: o lugar onde não há destino. Bruno desejava essa vastidão, mas o ir e vir (indo ou vindo, como ele dizia, não faz diferença) com seu carro só levou a mais uma perda. Se Bruno fosse um nômade de fato, não precisaria de platéia (Roberto e todos com quem conversa, mas não deixa falar) para quem ficar compulsivamente se afirmando como alguém que faz o que quer.

Um Destino Humano


O tempo todo
Bruno se vê como
um cigano que não
quer criar raízes no
chão que pisa



Dino Risi se inspirou em duas viagens que fez com amigos. Mas afirmou também que Bruno é o típico italiano que surgiu no pós-guerra, além de ser um retrato do italiano com suas maneiras espalhafatosas. O filme se encaixa no gênero “filme de estrada” (road movie), tendo até mesmo inspirado o famoso Sem Destino (Easy Rider) (1). A errância de Bruno pelas estradas, necessariamente em alta velocidade e com o som onipresente de sua buzina, a forma como faz gozações e provocações aos outros motoristas, tudo isso mostra um desejo incontrolável de quebrar regras. Em certo momento, Bruno chega a dizer que a Roberto que não importa a direção, indo ou voltando é a mesma coisa. É como se Bruno precisasse sempre de platéia, de aprovação. Entretanto, o verdadeiro nômade não precisa de aprovação. Bruno vivia fazendo ultrapassagens perigosas, mas nunca era suficiente, precisava da platéia dentro do carro. Mas é a platéia que morre quando ele não consegue fazer a ultrapassagem. A vastidão do mar (sem estradas) que margeava a rodovia no final do filme é como a metáfora do espaço que Bruno consegue margear, mas nunca entrar.

Não é por acaso que em certo momento ele diz que dormiu quando foi ver O Eclipse (1962), filme de Michelangelo Antonioni. Com seu estilo abstrato e planos longos e lentos, o estilo de Antonioni não poderia agradar a Bruno. Entretanto, o eclipse de que fala o filme bem poderia ser o de gente como Bruno. Um eclipse da humanidade e dos sentimentos. Ou será que uma das características das pessoas que sabem viver é essa tendência a entediar-se quando a vida ou os outros se apresentam diferentes daquilo que se espera?

Flertes nas estradas. Quando Bruno pára o carro, nada acontece.

Durante um eclipse total todos os caminhos desaparecem e o mundo se parece com o fundo de um mar – onde não existe luz. As trilhas no interior das pessoas são a única saída. Caso essas trilhas interiores não existam, somos pressionados de volta ao mundo onde as coisas, pessoas e caminhos nos são impostos. É contra esse mundo que Bruno se rebela. Mas ele só consegue vislumbrar o outro mundo, trilhar suas bordas, porque ele não vive dentro de si. Sendo assim, não percebe que o labirinto interior é o verdadeiro desafio do nômade que trilha a si mesmo.

Ao explicar as razões porque se filme Amarcord (1973) fez tanto sucesso na Itália, Federico Fellini sugeriu que os italianos se viram retratados com clareza por aqueles personagens cujo comportamento era basicamente infantil. Talvez isso também explique o sucesso de A Ultrapassagem (ou Aquele Que Sabe Viver). Fellini afirmou que fenômenos como a ditadura facista de Mussolini ajudariam muito na infantilização dos italianos. Entretanto, completou o cineasta, não foi o Facismo que gerou essa situação. Muito pelo contrário, foi o caráter infantilizado do italiano que engendrou uma ditadura como aquela.

Amarcord é ambientado na época imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial, onde o Facismo já se encontra instalado. Aquele Que Sabe Viver está ambientado na década de 60 do pós-guerra. Ao que parece, o fim de Mussolini não mudou muito a Itália. Dino Risi, o diretor, vai dizer que o filme retrata a época já do final do Milagre Econômico. Na década de 70 que se seguiria, continua Risi, assistiríamos ao avanço da corrupção esgarçando o tecido social italiano. Esse estado de coisas também explicaria o sucesso da trilogia Meus Caros Amigos (Amici Miei, 1975, 1982, 1985), todos ambientados a partir da década de 70 – os dois primeiros com direção de Mario Monicelli, que os assumiu com a morte de Pietro Germi; o terceiro por Nanny Loy. Trata-se de um grupo de cinquentões que se recusam a assumir seus papéis como adultos.

Nada de errado em rir um pouco! As comédias servem para isso também. Entretanto, talvez as comédias italianas tenham sido neutralizadas justamente por conter um elemento de crítica extremamente amargo e objetivo em relação à Itália. Considerado um gênero menor, a comédia italiana foi e é injustamente rebaixada. Filmes como este possuem todos os ingredientes para gerar as condições de uma reflexão profunda e para além do puro entretenimento.

Nota:

Leia também:

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Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

1. Segundo afirmou Dino Risi na entrevista (sem data) que consta dos extras do dvd de Aquele Que Sabe Viver, lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo em 2006.