21 de jun. de 2008

As Mulheres de Federico Fellini (III)

Saraghina



“Você   não  sabe   que  a Saraghina é o demônio?”


A Mulher-Sardinha da Vida de Um Homem

Em Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963) somos apresentados a esta mulher de aspecto ameaçador e monstruoso, mas que mesmo assim fará parte do harém imaginário de Guido/Marcello Mastroianni/Fellini. Guido quer mandar uma de suas mulheres para um lugar separado, onde ficam as que já envelheceram (ele diz que “o regulamento é o regulamento”: quem passar do limite de idade irá para os andares superiores). É uma corista, Jaqueline Bombon. Ela afirma que não é seu lugar, pois tem ainda 26 anos. Procura então mostrar que ainda pode entretê-lo, mas é inútil.




As mulheres começam a protestar, até que Saraghina vira-se em sua direção afirmando: “Isso não é justo, Isso não é justo!”. Segue-se a revolta, Guido pega o chicote e vai procurar restabelecer o controle. Muitas gostam de levar chicotada. Mas outras mulheres, como a própria Saraghina, reagem como felinas num espetáculo de circo (rugindo para seu domador, mas por fim obedecendo). Esta é a mulher da qual vamos falar, Saraghina reage contra Guido, mas apenas para em seguida submeter-se. Ainda assim, seu comportamento lembra aquele típico felino que nunca está realmente submisso aos donos (mesmo quando pensamos que os domesticamos com comida enlatada). Uma felina com nome de peixe...

Uma Praia, Uma Vida



Em Rimini, cidade natal de Fellini, os pescadores pagavam os serviços desta mulher permitindo que ela recolhesse sardinhas minúsculas que sobravam da pesca no fundo de seus barcos. No dialeto da região, o peixe se chamava “saraghine”. Então o apelido pegou: Saraghina (1). Ela era uma mulher grande, com uma espécie de monte de cabelo no alto da cabeça, onde também encontramos algas enroscadas formando uma espécie de juba no alto daquela figura estranha que podia dar prazer em troca de alguns trocados, ou alguns peixes, ou alguns botões dourados dos uniformes dos adolescentes do colégio de padres.

Na praia encontramos uma velha casamata de concreto do tempo da guerra. Alguns meninos correm para lá, Guido e seus colegas de escola. Um deles estende a mão com dinheiro e chama: “Saraghina! Saraghina!”. Maravilhados e ao mesmo tempo amedrontados, esperam que algo de extraordinário para um bando de adolescentes inexperientes aconteça. De repente, daquela ruína que mais parece uma caverna, surge uma mulher gigantesca, branca e suja. Parece uma visão. Por alguns tostões ela vai dançar a rumba para quem gostar de assistir.

Na verdade, a dança de Saraghina começa momentos antes, quando Guido, cineasta em crise que nas termas encontra-se com um cardeal mandado em seu auxílio pelo produtor de um filme que ele não consegue realizar, percebe as pernas nuas de uma camponesa que passa (imagem ao lado). Essa conjunção entre um padre e uma perna de mulher dispara sua memória de infância onde mora Saraghina.

Como afirma Fellini, esta mulher representa uma primeira visão traumática do sexo na vida de Guido. Tinha um traseiro enorme. Quando ela se virava de frente, podia-se ver seu barrigão. Fellini disse que ela faz parte de sua adolescência, quando se podia pagar para ela se mostrar. E abaixo do barrigão, se perguntava o Fellini adolescente, o que seria todo aquele pêlo, um gato?(2)

Saraghina tinha, nas palavras de Fellini, uma cabeça de leão, olhos achinesados, uma boca muito grande que parecia de borracha e fazia caretas. Ela tinha um cheiro muito forte de peixe, misturado com as algas em seu cabelo e ao petróleo e alcatrão dos barcos de pesca. O pequeno Fellini havia também se dirigido à morada de Saraghina sozinho (entretanto, isso não aparece no filme, apenas em suas memórias de infância, arrancadas por algum entrevistador).




Fellini disse que, quando tinha uns oito anos, havia encontrado imagens do diabo no livro de ocultismo de um tio seu. Lá ele também reconheceu Saraghina, ela tinha um corpo de leopardo e um traseiro enorme, “vasto como o mundo”. Havia também uma coroa cintilante de pedras preciosas imitando olhos humanos. De qualquer forma, apareciam igualmente a mesma boca da Saraghina real, além dos mesmos olhos de dragão e a cabeleira desgrenhada, assim como as algas, que pareciam as cobras na cabeça de uma Medusa (3). (ao lado, esboço feito por Fellini; coloração invertida pelo autor). Apesar do medo que tal visão inspirou ao jovem Fellini naquela noite, tudo que ele queria agora era voltar à praia e falar com ela. Ele desejava ouvir sua voz. No dia seguinte, lá foi ele, Saraghina o reconheceu de outras visitas e lhe lançou um olhar parecido com o de sua mãe quando perdoava suas travessuras. Maravilhado, nos conta Fellini, ele percebe que ela foi bela. Então ele cumprimenta a mulher e ela começa a cantarolar uma rumba. Ela tinha, continua o cineasta, uma voz muito curiosa. Parecia uma criança cantando, uma voz muito pura, clara, terna e delicada. Nas palavras de Fellini, ele amou aquela mulher naquele instante (4).

Freud Explica



Saraghina, conta Fellini, era uma prostituta gigantesca (pelo menos aos olhos adolescentes). Ameaçadora, agressiva e violenta. Uma criatura gorda e majestosa em sua deselegância esfarrapada. Vestida como uma mendiga, com uns quarenta anos e cabelos desgrenhados. Entretanto, olhando com atenção suas formas animalescas, ainda se poderia perceber o resto de sua antiga beleza. Ansiosos após pagarem a mulher gigante para dançar, os meninos esperam enquanto ela olha para eles e para os lados em silêncio. Então ela começa a pular, rebolar e levantar a saia. De repente aparecem os padres do colégio de Guido. A debandada é geral, mas Guido é capturado e levado aos superiores do colégio de padres (Salesianos), onde também se encontra sua mãe, decepcionada (5). Lá ele escuta o veredicto de um padre: “Você não sabe que a Saraghina é o demônio?”

Apanhado pelos padres e punido severamente, o que inclui ajoelhar-se no milho. Peter Bondanella nos lembra como isso semeia na mente do adolescente Guido uma conexão entre mulher, sexualidade, vergonha e culpa. A partir daí, o menino divide as mulheres entre virgens e prostitutas. Ele se casa com o primeiro tipo (Luisa; com quem ele briga o tempo todo na vida real, mas que no harém é a mais submissa) e toma como amante o segundo (Carla). Para ele, sexo sempre será associado à transgressão, nunca a uma relação com uma pessoa livre e que ao mesmo seja objeto de desejo. A Igreja, personificada pelo Cardeal, é a instituição terrena que projeta tal perspectiva no interior de seus membros através da educação católica (6).

Fellini admite que frequentemente mostre em seus filmes alguma mulher de formas avantajadas, grande, poderosa. Saraghina, ele afirma, é uma representação infantil da mulher. Uma das tantas e tantas representações infantis possíveis. Ela é grande como a fome de um adolescente por sexo e vida. No caso, um adolescente italiano bloqueado e impedido pelos padres, pela igreja, pela família e pela educação falida. Mas a prostituta, sugere Fellini, é o contraponto essencial da mãe italiana. Não se pode conceber uma sem a outra. (ao lado, esboço feito por Fellini. Como no esboço anterior, caracterizando as grandes nádegas; coloração invertida pelo autor)

Guido enxerga Saraghina como um misto de prostituta e mãe. Na Itália, contou Fellini, existe uma verdadeira idolatria pela mãe. Mamães, mãezonas, grandes mães de todos os tipos: mãe virgem, mãe mártir, mamãe Roma, mãe-loba, mãe-pátria, mãe-igreja...




De fato, concluiria o cineasta, essa superabundância de maternidade significaria uma ausência de mãe. Então a indústria cria opções através de mães fetiches como pornografia.

Assim como nossa mãe nos alimentou e nos vestiu, continua Fellini, a puta nos iniciou na vida sexual. Segundo ele, todos nós homens estamos em débito com elas, mesmo que as experiências não tenham sido as melhores. Essa situação é que traz o fascínio em relação a elas. Imensas, inatingíveis, ingênuas, assim como nossas fantasias, das quais são ao mesmo tempo ladras e realizadoras (7).

Monstro Camarada 

 

O monstro ou, aquele que se mostra, tem lugar cativo no cinema de Fellini. Jean-Max Méjean sugere que homens e mulheres monstruosos aparecem muito no circo ou no cinema. Dois espaços que, percebemos no trabalho do cineasta, são o lugar do imaginário felliniano. Entretanto, é preciso reafirmar, não se trata de uma monstruosidade física. Trata-se da presença de personagens que se mostram inteiramente em sua originalidade. Méjean afirma que a monstruosidade em Fellini alcança muitas vezes a beleza. Pode ser um peixe encalhado no final de A Doce Vida (La Dolce Vita, 1959), a maquiagem de um homem vestido de mulher durante o carnaval em Os Boas Vidas (I Vitelloni, 1953), ou as mulheres fantasiadas de O Gordo e o Magro em Cidade das Mulheres (Città Delle Donne, 1980). Sem esquecer a monstruosidade edipiana que nasce da união entre o amor da mãe e a atração irracional em relação à prostituta. Seios enormes, bundonas, bocas que desejam ardentemente, tudo isso pode ser encontrado nas pinturas italianas do século 15.

Méjean segue em suas observações falando da hipertrofia mamária. Podemos percebê-la em muitas personagens de Fellini, sendo comum também na representação das deusas-mães nessas pinturas citadas anteriormente. A simbólica do leite está associada à outra. As gigantes são também várias na obra de Fellini. Lembremos da Anita Ekberg gigante de As Tentações do Doutor Antônio (Le Tentazioni del Dottore Antonio, 1962). Além da mulher gigante, outra obsessão de Fellini é a mulher gorda. Mais especificamente, a mulher de seios grandes, uma super-mãe, uma super-mulher. Seja a mulher da tabacaria em Amarcord (1973), seja Saraghina na praia deliciando adolescentes (8).

O relato do desfecho do encontro do Fellini adolescente com Saraghina nos mostra a mágica que envolve os personagens nos filmes do cineasta. Assim que o menino de oito anos elogiou aquela voz que cantava para ele, Saraghina se levantou rapidamente e mandou que ele fosse embora. Ela deu-lhe as costas antes que pudesse ver o menino cumprimentá-la com um gesto reverente. Sobre esse momento de sua vida (mas afinal quem sabe se é verdade!), Fellini confessa:

“Eu tinha, naquele dia, descoberto
o  pecado.  O  pecado  miraculoso.  Aquele  pelo
qual nós vivemos. Mas isso, eu não compreendi
senão  muitos  anos  mais  tarde”(9)


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Notas:

1. VILALLONGA, José-Luis de. Federico Fellini. Entretiens Avec José-Luis de Vilallonga. Paris: Michel Lafon Éditions, 1993. P. 59
2. FELLINI, Federico. Fazer Um Filme. Tradução Mônica Braga. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. P. 117.
3. Idem, p. 62.
4. Ibidem, p. 63.
5. CALIL, Carlos Augusto (org.). Fellini Visionário: A Doce Vida, 8 ½, Amarcord. Tradução dos roteiros Hildegard Feist, tradução das entrevistas André Carone, José Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Pp. 117-8.
6. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. Pp. 104-5.
7. FELLINI, Federico. Fazer Um Filme. Op. Cit., pp.118-9.
8. MÉJEAN, Jean-Max. Fellini, un Rêve, une Vie. Paris: Éditions du Cerf, 1997. Pp. 29-31.
9. VILALLONGA, José-Luis de. Op. Cit., p. 64. Jean-Luc Hening, em Breve História das Nádegas (Lisboa: Terramar, 1997 [1995]), cita este e outros trechos do livro de Vilallonga. Entretanto, termina sua referência a esta passagem do relato de Fellini dando uma conotação apenas carnal ao “pecado” de que nos fala o cineasta italiano. Fica evidente que Hening distorceu as coisas em seu favor, enfatizando o conteúdo lascivo desta palavra. Assim procedendo, não permitiu que os leitores percebessem o alcance poético das palavras de Fellini.