27 de mar. de 2009

As Mulheres de Federico Fellini (V)








“Gradisca
(sirva-se!)


Gradisca em Amarcord






As Imagens da Sexualidade

Ao que parece, as feministas tinham um pé atrás em relação a Fellini. Teresa de Laurentis achava o diretor muito sexista. Germaine Greer, Marguerite Willer e Gaetana Marrone acreditam que a visão do diretor em relação às mulheres é mais complexa do que parece (1). É muito fácil criticar o que um homem diz a respeito das mulheres; resta saber até que ponto as mulheres (ainda) acreditam que criticar e submeter homens é o suficiente – no mundo dos homens isso seria classificado apenas como comportamento vingativo. Não podemos esquecer que Fellini foi um cineasta comprometido com o mundo das imagens. (acima, Volpina, a ninfomaníaca de Amarcord)



Numa época de bórdéis administrados por Mussolini, 
é justo que o tio de Titta (no manicômio) 
também queira uma mulher


As análises que se fizer a respeito de seus filmes deveram procurar na estrutura visual das seqüências, e não apenas nos textos dos diálogos, algo daquilo que talvez ele estivesse querendo dizer. Não perceber que a preocupação de Fellini era falar através das imagens leva a equívocos na compreensão de suas reais intenções. De resto, essa é uma incapacidade muito comum em nossa sociedade, uma verborragia que cala mais do que dá ouvido (e olhos) à multiplicidade dos discursos. O que não deixa de ser uma constatação curiosa, já que vivemos na tão amada/odiada era das imagens. (imagem acima, em Amarcord, o tio de Titta sobe numa árvore e grita pedindo mulher)



Gradisca é mais uma no grande exército das mulheres escravizadas pelo fetiche do homem fardado


Se tomarmos a questão da sexualidade, por exemplo, encontramos mulheres que correspondem aos extremos de comportamento, do licencioso ao casto. E muitas vezes num mesmo personagem, como a prostituta de As Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957), que representa ao mesmo tempo os arquétipos da santa e da decaída que vende o corpo. Dentre os vários exemplos que poderíamos tomar, vejamos o que podemos encontrar em Amarcord (1973) e A Estrada da Vida (La Strada, 1954). Vários filmes de Fellini fazem referências a uma repressão sexual engendrada pelo Fascismo das décadas de 30 e 40 do século 20 na Itália. Em Amarcord, Gradisca é a mulher que melhor representa uma subserviência feminina à pseudovirilidade do homem uniformizado. Só pelo fato de ver o federale desfilando aos pulos pelas ruas da cidade, ela ficava excitada e fora de controle (acima, vestida de vermelho, Gradisca não se contém de excitação na presença de uma farda).



Comparado ao fetiche irracional das italianas 
em relação à Mussolini e seus pavões fardados, Hitler
foi pouco mais  que  invisível  para  as  alemãs


Consta que, na época em que reinou o regime fascista, as mulheres que assistiam aos discursos de Mussolini deixavam roupas íntimas pelo chão das praças como demonstração de sua excitação sexual. Consta também que muitos homens freqüentavam essas reuniões de massa não para ouvir seu líder, mas para encontrar mulheres sexualmente excitadas e, portanto, possivelmente receptivas ao assédio. “Gradisca responde [à visita do líder fascista] exatamente como uma mulher responderia a um amante” (2). Noutra seqüência de Amarcord, quando a cidade se junta para demonstrar sua imaturidade coletiva, Gradisca fica quase histérica em seu desejo de alcançar Rex (o transatlântico de Mussolini) quanto ficou para tocar o federale (imagem acima). Em mais uma sequência podemos ver Gradisca sexualmente excitada, desta vez com os mitos superficiais produzidos pelo cinema.



O transe de Gradisca com o cinema é uma metáfora
da ingenuidade com que nos rendemos aos manipuladores e suas máscaras


Sozinha na sala de projeção, ela está tão absorvida na imagem do ator norte-americano Gary Cooper em Beau Geste, que não percebe a aproximação de Titta. Quando ele coloca a mão na perna dela, Gradisca acorda do transe, apenas para perguntar friamente ao rapaz se ele perdeu algo (imagem acima). Fellini acreditava que o mecanismo que atraiu Gradisca para Gary Cooper é o mesmo que atraiu a cidade para a visita do federale, ou para ver a passagem do Rex (3). A seqüência mais famosa envolvendo Gradisca é aquela em que ela é levada ao Grand Hotel para “dormir” com um príncipe (sempre o fetiche da farda), na suposição de que isso fará com que ele libere verbas para o porto da cidade. Quando convida o tal para a cama, ela oferece seu corpo com a palavra “Gradisca” (significando, “por favor”, ou “sirva-se”).



Para o exército de escravos do fetiche dos seios, 
Titta repete o que Fellini já havia mostrado 
em As Tentações do Dr. Antônio


As gordas também têm vez com Fellini, ainda que seja para evidenciar uma libido distorcida. Titta protagoniza a hilária cena na tabacaria. Lá ele encontra uma mulher enorme, que o desafia a levantá-la. Na segunda levantada ela entra no estado de excitação sexual, oferecendo os seios e apertando o rosto de Titta contra eles. Tão de repente como começou, a mulher deixa de sentir vontade e larga o rapaz, que já estava quase sufocando. Dirigindo-se a ele como se nada tivesse acontecido, a mulher demonstra como a repressão sexual pode nos levar a comportamentos desconexos em questão de minutos. O tio de Titta protagoniza outro exemplo dos problemas da repressão sexual. Ele já está no asilo quando um dia a família aparece para levá-lo para passear. Então ele sobre numa árvore e começa a gritar que quer uma mulher. A única pessoa que consegue tirá-lo de lá é uma freira anã. O desejo do tio de Titta pode ser estendido a toda população masculina de Amarcord, enquanto a freira representa a repressão sexual patrocinada pela Igreja.

Chaplin de Saias


“O que eu estou fazendo nesse mundo?”

Gelsomina em A Estrada da Vida


Além de Chaplin, o personagem de histórias em quadrinhos Happy Hooligan também é um dos elementos na composição de Gelsomina. Em A Estrada da Vida, ela foi vendida pela mãe ao artista mambembe Zampanò e não parece ter vida sexual. Com exceção de um momento posterior em que ele simplesmente reivindica seus direitos sobre o corpo dela, o filme não mostra mais do que uma sequência relacionada à vida sexual do casal – ele a enxota para dentro do veículo e transa com ela. Ele a trata como simples objeto, pegando prostitutas (que também são objetos para ele) na frente dela sem a menor cerimônia.



Gelsomina,  um  objeto  frágil.   Meio   louca
 e meio santa, ela não parece ter vida sexual...


Quando a mãe avisa que Gelsomina não sabe nada, Zampanò diz que não tem problema, porque é capaz de ensinar coisas até aos cachorros. Sua mãe a descreve ao comprador como “um pouco estranha”, “não como as outras garotas”. O próprio Fellini a descreveu como meio louca e meio santa: um palhaço franzino, engraçado, desajeitado e muito sensível. A incapacidade de Gelsomina no mundo racional é compensada por uma capacidade de comunicação com a natureza, crianças e objetos inanimados. Ela pode sentir a chuva que se aproxima e escutar o som das linhas de telégrafo. Quando avista um tronco de árvore, ela imita o ângulo de seu único galho com seus braços. Quando visita um menino muito deformado, apenas ela é capaz e compreender a natureza de seu sofrimento e solidão. Gelsomina possui uma simplicidade franciscana e uma pureza infantil de espírito, o que a torna o personagem ideal para as ruminações fellinianas a respeito da pobreza espiritual (4).



...A não ser quando Zampanò reivindica
seus  direitos  sobre  o  corpo  dela!


Fellini sugere as implicações religiosas de Gelsomina em várias sequências do filme. Numa delas, durante uma procissão na cidade, Gelsomina encosta numa parede com um cartaz em que se lê “Madonna Imaculada” (acima). Sua função no filme é ser o veículo pelo qual Zampanò, seu bruto dono, aprenderá a sentir um mínimo de emoção – ser capaz de sentir emoção é o que define ser humano para Fellini. Essa é uma das conclusões possíveis para o objetivo deste filme: a salvação pela conversão; da praia (no começo do filme) onde Zampanò compra uma mulher, à praia (no fim do filme) onde ele percebe que não a terá nunca mais, ele reconhece em si sentimentos que não tinha antes. Gelsomina se caracteriza por muitos elementos cristãos e especificamente católicos, mas Fellini utiliza tais noções apartadas de seus correlatos institucionalizados. Ou seja, Gelsomina faz o que faz sem referir-se à instituição da Igreja. Se ela é uma santa, é do tipo secular – ela declina o oferecimento para morar em um convento. Aliás, Gelsomina poderia ser descrita como uma versão palhaça da Virgem Maria.



Zampanò é com um cão. Para dizer que
gosta  de  alguém,  ele só consegue latir


Quando Zampanò arruma emprego num circo, Gelsomina conhece outro personagem do filme, o Bufão – que vive brigando com Zampanò. Outro dos momentos em que a religião aflora em torno de Gelsomina é quando ela está decidindo se abandona seu dono e o Bufão fala sobre a parábola das pedras. Em certa altura ela desabafa,“o que estou fazendo nesse mundo?“ Em seguida, pergunta ao Bufão se Zampanò gosta dela. “Porque não?, ele responde, [Zampanò] é como um cão. Fica olhando para você, tentando falar, mas só consegue latir”. Então o Bufão conta a história da pedra. Ele a convence de que sua existência tem algum motivo, porque mesmo uma pedra tem um significado no universo, mesmo que seja misterioso: “Eu não sei a qual propósito serve esta pedra, mas deve servir a algum propósito. Porque se ela não tem função, então nada tem função”. Como a parábola do Bufão vai da pedra às estrelas, seu ensinamento sugere que a mente humana, mesmo a de Gelsomina, não precisa estar aprisionada ao mundo imediato das coisas materiais (5).



A gente deve servir para alguma coisa!


Em seguida temos outra sequência altamente poética, quando o Bufão apresenta à Gelsomina aquele que será seu tema musical no filme. Ele toca a melodia num pequeno violino. Ela ensaia em seu trompete e o repete até sua morte. Muito tempo depois de Zampanò ter abandonado Gelsomina, ele escuta uma lavadeira cantando a mesma melodia. É então que ele descobre que ela havia morrido. O mesmo tema musical é agora ouvido na cena final, quando Zampanò aprende (talvez) a lição que a vida de Gelsomina representava: que o amor pode tocar mesmo os corações mais duros, mesmo o seu (6). Assim, um tema musical passa do Bufão para Gelsomina e então para Zampanò. Que imagem mais poética e igualmente mais clara e objetiva se poderia usar para traduzir um ser humano que uma melodia? Uma paisagem sonora que traduz em poucas notas a descrição daquilo que caracteriza o humano: a emoção. (abaixo, Zampanò com uma prostituta na frente de Gelsomina)


 
Zampanò   reage   às   mulheres  com  a  postura
machista que algumas delas esperam e aprovam


Enquanto personagem que encarna as imagens poéticas que Fellini cria, Gelsomina é uma figura ambígua. Tanto ela quanto Zampanò e o Bufão são personagens típicos da commedia dell’ arte. No caso específico de Gelsomina, o fato de utilizar maquiagem de palhaço no rosto até aumenta a expressividade de suas expressões faciais. Fellini pode assim poeticamente sugerir que as pessoas normalmente usam máscaras e muitas vezes disfarçam suas reais emoções. E neste filme Fellini fez da música um elemento de tradução poética do mundo para Gelsomina. Na primeira vez que Gelsomina decide abandonar Zampanò, nós a encontramos numa estrada deserta sem rumo. De repente, um grupo de três músicos passa por ela tocando seus instrumentos. Nessa tomada Fellini desejaria mostrar sua convicção de que os começos acontecem como mágica e que a estrada de Gelsomina terá sempre uma destinação possível (7). Gelsomina acaba seguindo os músicos, que seguem para uma cidade e se juntam a uma grande procissão religiosa. É nessa hora que ela encosta-se à parede que tem cartaz dizendo, “Imaculada Madonna”. É aí que ela encontra o Bufão pela primeira vez, ele é um malabarista numa corda bamba.


 
A conexão de Gelsomina com a vida é algo
que Zampanò só conseguirá captar
quando for tarde demais


Uma das sequências mais celebradas de A Estrada da Vida é a aparição de um cavalo fantasma. Zampanò e Gelsomina vão jantar após uma bem sucedida apresentação. Lá pelas tantas, na frente dela, Zampanò convida uma prostituta para sentar à mesa. Em seguida, ele sai com ela e ordena que Gelsomina o espere na calçada - no dia seguinte pela manhã ela ainda estará lá. De repente, durante a madrugada, escutamos os passos de um cavalo. Ele passa por ela, que está sentada e só, física e emocionalmente. Esse cavalo surge sem nenhuma explicação, como os músicos que ela seguiu até a cidade. Primeiro ouvimos o som do cavalo, então ele aparece e sua sombra passa sobre Gelsomina, que o acompanha com o olhar (imagem abaixo). É uma sequência de profunda melancolia e solidão, que Fellini consegue transmitir sem o uso de diálogos supérfluos. Aliás, é o que Fellini quer dizer quando afirma, “eu não quero demonstrar nada: eu quero mostrar” (8).



 Fellini mostrou que o cinema  não  precisa 
de palavras para descrever a alma humana


Leia também:

As Mulheres de Federico Fellini (IV), (VI)
As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (IV)

Notas:

1. BONDANELLA, Peter; DEGLI-ESPOSTI, Cristina. Perspectives on Federico Fellini. New York: Macmillan Intl., 1993.
2.
BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. P. 132.
3. Idem, p. 134.
4. Ibidem, pp. 55-6.
5. Ibidem, pp. 56-7.
6. Ibidem, p. 58.
7. Ibidem, p. 59.
8. Ibidem, p. 54. 


23 de mar. de 2009

As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (IX)

Accattone


"Vittorio se,
para você
, trabalhar
 f
or muito sacrifício, estou 
disposta    a    voltar   para
as   ruas,   se   achar
que
é melhor"

Stella para Accattone, 
após o primeiro dia de trabalho dele


Sinopse

Accattone é um cafetão que acabou de perder Maddalena, seu ganha-pão. Ele tenta fazer com que sua esposa assuma a tarefa, mas ela se recusa. Enquanto estava com Ascenza, sua esposa, Accattone conhece a virginal Stella, a quem ele também tenta jogar na prostituição. Na primeira tentativa, Stella falha no contato com um cliente. Accattone se enche de compaixão e decide tirá-la das ruas e mantê-la ele mesmo. Mas ele não suporta nem mesmo o primeiro dia de trabalho pesado manual, retornando à sua vida anterior de assaltante. Numa dessas ocasiões, Accattone não consegue escapar da polícia e morre (1). (imagem acima, Stella em sua primeira noite de trabalho; abaixo, à direita, a prostituta realista Amore, que não ama ninguém, nem seu cafetão; abaixo, à esquerda, Maddalena)

Pasolini e as Prostitutas

Durante várias décadas, em função da situação da Itália no pós-guerra, assolada pelo desemprego e a migração do sul do país em busca de oportunidade, as favelas eram comuns na paisagem da periferia das grandes cidades. O Milagre Econômico do pós-guerra não resolvia o problema do emprego e da moradia tão rapidamente quanto seria necessário. Embora existam alguns elementos de contato, deve-se ter cuidado ao tentar traçar paralelos em relação à situação da prostituição nas periferias das grandes cidades brasileiras. Aqui, estamos tratando apenas do caso muito específico do ponto de vista de Pasolini em relação ao tema.

Em filmes como Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, 1948), Milagre em Milão (Miracolo a Milano, 1950) e Umberto D (1952), que mostram o problema do desemprego, injustiça social e até a problemática do idoso reduzido a uma aposentadoria miserável, os cineastas Roberto Rossellini e Vittorio De Sica mostram a gigantesca tarefa que ainda estava por ser realizada pelo governo italiano. De Sica chegar a mostrar a problemática da prostituição na sociedade italiana com a personagem Filumena Maturana, em Matrimônio À Italiana (Matrimonio All’Italiana, 1964), mas isso foi bem depois de Pier Paolo Pasolini haver problematizado o tema.

Estes filmes de Rossellini e De Sica pertencem à nata do movimento Neo-Realista nascido no imediato pós-guerra na Itália. Accattone, Desajuste Social (Accattone, 1961) nasce dessa tradição, que retratava a pobreza, o desemprego e o desespero que caracterizou a vida das massas italianas durante essa fase. Entretanto, o filme de Pasolini difere em termos de estilo e abordagem, desafiando as leis do naturalismo e da continuidade que definiam o Neo-Realismo. Accattone favorece a fragmentação e a visível reconstrução da realidade (2). E foi para as favelas da periferia de Roma que se mudou Pasolini, quando veio do Friuli com sua mãe.

Em 1955 e 1959 escreve Ragazzi di Vita e Una Vita Violenta, textos que abordam a vida dura nas favelas e a prostituição masculina e feminina. O primeiro título descreve um grupo de garotos que sobrevivem em Roma e na favela. As prostitutas que eles encontram experimentam tudo, de piadas de adolescentes à violência física e o roubo. O segundo título mostra um grupo similar de adolescentes, embora focalize mais no florescimento da consciência política de Tommaso, que se prostitui de vez enquanto para fazer dinheiro (3). Com a ajuda de seu amigo e garoto de rua Sergio Citti, Pasolini aprende muito sobre a vida do submundo da periferia.

Franco Citti, o irmão de Sergio, ele próprio um habitante do local, torna-se o cafetão de Accattone – embora “profissional” incompetente, pois se apaixona por Stella, um de seus “objetos”. Ao conhecê-la, faz um comentário que dá bem a dimensão de sua falta de consciência social. Comentando sobre a situação de pobreza de Stella, reduzida à lavadora de garrafas como Ascenza, sugeria que metralhadoras em punho resolveriam o problema da Itália. Argumentava que, enquanto nos Estados Unidos, a escravidão foi abolida, os italianos eram escravizados. O detalhe é que ele, enquanto cafetão, não faz outra coisa senão escravizar mulheres.

Em 1957, o conhecimento que Pasolini adquiriu da gíria desse ambiente, permitiu que participasse da caracterização e da criação dos diálogos das prostitutas e cafetões do filme de Federico Fellini, As Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria). Com Fellini, participaria ainda na criação dos diálogos da prostituta de A Doce Vida (La Doce Vita, 1960). Sua própria carreira como diretor de cinema, as prostitutas estão principalmente em Accattone. Desajuste Social, seguido por Mamma Roma (1962). Em Comícios de Amor (Comizi D’amore, 1965), um documentário, Pasolini chega a fazer uma breve entrevista com prostitutas reais de Nápoles.

Neste documentário, onde Pasolini quer saber o que a população pensa sobre questões ligadas à sexualidade, ele também fala sobre a prostituição e também questiona algumas pessoas em relação à Lei Merlin de 1958, que extinguiu os bordeis administrados pelo Estado. Voltando as prostitutas de ficção, em 1966, com Gaviões e Passsarinhos (Uccellacci e Uccellini), encontramos Luna. Nesse caso, Pasolini cria uma personagem mais alegórica. Ela serve a um pai e a um filho num sentido mais simbólico de quem doa vida, pois não se fala em dinheiro. Neste caso, Pasolini não parece interessado no conflito em relação à consciência social.

Giovanni Ricci afirmou que a relação de Pasolini com as mulheres passava pela relação dele com Susanna, sua mãe. Como ele sempre foi homossexual, nunca teve uma relação sentimental com mulheres, a não ser a mãe, que venerava. Na opinião de Ricci, não era possível para Pasolini compreender uma mulher por não ser capaz de amá-las. Como também não seria capaz de ver o mundo através do olhar de uma mulher real, acabava assumindo pontos de vista contraditórios em relação a seus posicionamentos políticos. Esse foi o caso, de acordo com Ricci, da posição de Pasolini contra o aborto (que interfere na relação mãe-filho). No comentário de Ricci:

“De fato, quando tinha certo sentimento de amizade com uma mulher, frequentemente a via como uma mãe: aconteceu no caso de Laura Betti, aconteceu no caso de Elza Morante (4). E, ainda que fosse um pouco mais jovem que ele, houve também comigo um pouco este tipo de relação. Portanto, não amando as mulheres, não as conhecia, não as entendia, e também era levado, por uma espécie de vício sentimental, a vê-las através dos olhos de seus rapazes. E frequentemente fala das mulheres, não tanto das mulheres inteligentes que conhecia e que estimava, mas das garotas, como falaria um rapaz da favela. Isto é, com grande familiaridade, mas também com muito desprezo, com desinteresse”.(...)“Pasolini via um mundo com homens reais e mulheres irreais. Assim, em certos momentos, intuía as mulheres como imagens da mãe. Em outros momentos as via através dos olhos dos rapazes que amava. Em outros momentos ainda, as concebia como figuras poéticas e muito abstratas. Não conseguia nunca vê-las na realidade delas, de maneira problemática” (5)

De todos os diferentes tipos de prostituição que se poderia encontrar na Itália do pós-guerra, na rua, em bordéis legalizados, ou serviços de acompanhante, Pasolini escolheu as primeiras. Aparentemente, elas estão expostas ao crime organizado, à violência, repressão policial e mais diretamente aos cafetões. Seja qual for seu papel nos filmes de Pasolini, as prostitutas simbolizam fronteiras culturais e ideológicas. O embaraço de sua presença nas ruas de Roma traz à tona a questão da opressão social e da marginalização. Se as mães representam a origem num sentido emocional e biológico, as prostitutas a representam num sentido cultural e histórico (6).

Mulher Objeto


"Esta   noite   vai   se levantar e vai trabalhar como    todas   as   outras noites!    Sua    vida   não
 é  a  de   uma   senhora! 
 Sua vida é  aquela!"

Accattone para Maddalena,
 
que está com a perna machucada



As prostitutas de Pasolini não são mostradas durante relações sexuais. Hoje em dia podemos ver muito mais sexo nas novelas de televisão do que na obra de Pasolini. Em seus filmes, elas não aparecem nem mesmo parcialmente nuas. Collen Ryan-Scheutz afirma que o ato sexual era secundário na proposta de Pasolini. Poderíamos lembrar também dois outros motivos, primeiramente, a censura italiana na década de 60 do século passado era ativa. Em segundo lugar, poderíamos invocar as restrições de um homossexual como foram expostas acima por Giovanni Ricci. Até encontrarmos justificativa para mudar de idéia, a hipótese de Ryan-Scheutz nos parece mais instigante. Embora os corpos nus comecem a surgir mais e mais na obra futura de Pasolini.

Como vimos no comentário de Accattone em relação à escravidão dos italianos pobres, Pasolini mostrou a falta de consciência social naquelas favelas. Apesar de fortes e determinadas, em seus filmes as prostitutas representam os pobres sem privilégios numa existência infernal. Exploradas e abandonadas, possuem uma inocência humilde. Sua pureza deriva de sofrimento e subordinação, de lares miseráveis e vizinhanças opressivas, além da sujeição aos interesses dos outros. Maddalena, a primeira “funcionária” de Accattone, foi vítima de Ciccio. No final, de uma forma ou de outra, ela vive da caridade de Accattone ou Ciccio (um rival de Accattone).

Enquanto Accattone chega a mandar Maddalena se prostituir mesmo com uma lesão na canela, Ciccio a controla da cadeia (mandando surrá-la). Um bando de amigos de Ciccio leva Maddalena, transam com ela e depois surram a mulher. Como a Madalena da bíblia, a prostituta que se redimiu pelo sofrimento e humilhação. Para Pasolini, afirma Ryan-Scheutz, é precisamente a dor e humilhação desse acontecimento que demonstram a pureza dela. Demonstram também que ela foi reduzida a um objeto, como sua bolsa e sapatos de salto alto baratos – objetos de trabalho que Pasolini mostra isoladamente, como para insinuar que uma totalidade humana foi estilhaçada.

Outra referência à vitimização e sofrimento da prostituta chega através de uma alusão ao Inferno de Dante (7). Amore, uma das prostitutas, ao ver que Stella caiu na conversa de Accattone, começa um comentário cínico (concluído por outra): “Então você caiu na armadilha também... e ainda não sabe... Abandonem toda esperança, vocês que entrarem!” (III, 9) Ao mesmo tempo em que o comentário de Amore mostra que a vida delas é um inferno, também sugere que elas estão lá não por suas maldades, mas pela manipulação de suas vidas por outras pessoas. Antes, Stella desprezava sua mãe por se prostituir, agora ela é mais uma vítima das leis da favela.

Além dos lares paupérrimos, Pasolini também enxerga a integridade delas nos terrenos baldios e campos da periferia onde elas trabalham. Embora se possa concluir que esses terrenos mostram apenas a indigência da situação, Pasolini via nesse mato também os ambientes marginais que caracterizam as vidas das criaturas puras e genuínas. Seus filmes mostram as prostitutas como componentes centrais nas relações de parentesco. Elas podem ser vendidas, compradas, trocadas, negociadas. Elas são um produto, e o produto do trabalho delas é responsável por alguma coesão social e segurança econômica – pelos menos para seus pais, parentes próximos, cafetões e cafetinas. (imagem acima, Ascenza, a esposa de Accattone, que a procura apenas em busca de dinheiro)

Accattone e seus amigos sempre se referem à “suas mulheres” como alguém que comenta sobre seu carro, seu relógio ou seu sapato. Apesar de objetos, elas são como pão e água para eles. A perdade de Maddalena significou uma grande derrota para Accattone, que ficou paralisado (sem poder e comida) até descobrir Stella. Logo no início do filme, num arroubo de infantilidade Accattone vai mergulhar de uma ponte sobre o rio Tibre após uma refeição para provar que não acontece nada. Um de seus amigos pergunta com que ficará "sua" mulher (Maddalena) caso ele morra. (ao lado, o contraste entre o objeto sexual e o reprodutor, Maddalena e Nannina)

Stella, a Estrela da Manhã





 "Por que  se importa
 comigo?    Não
   faço
 falta para ninguém"

Stella para Accattone







Ela é de uma pureza rara naquelas favelas, Accattone chega a perguntar se a moça é mesmo de Roma! Ela é mais uma das figuras de Mães Jovens (Madre Fanciulla) caras a Pasolini, combinando subsistência e origem da vida com uma noção mais cósmica de luz sugerida por seu nome – que significa estrela (ao lado, Stella não satisfaz o primeiro cliente). Em contraste Maddalena lembra a personagem bíblica. Ascenza, com ajuda poderia “ascender” do submundo da favela, representado pela figura central de Accattone (8). Temos também Nannina, única mulher-mãe além de Ascenza, é esposa de Ciccio e está fora de toda essa confusão.

Apesar de seu cabelo louro e seu corpo jovem, sugerindo uma sexualidade exuberante, a voz e atitudes de Stella mostram uma pessoa tímida e ingênua. Não faz parte do submundo de prostitutas e cafetões. Mas não é completamente estúpida ou ingênua, Stella percebe o que aquele mundo oferece. Apesar disso, possui uma decência que Accattone não conhecia. Pasolini estabelece uma conexão entre Stella, anjos e Accattone. Na cena inicial, quando desafia a morte ao pular no rio, nota-se uma estátua de anjo sobre seus ombros. É como se essa cena prefigurasse o encontro com Stella – conotando o potencial salvador da mulher (9).

Accattone está numa encruzilhada entre o bem e o mal. Accattone manipula Stella, primeiro ele faz piada da virgindade dela, depois se mostra desgostoso quando Stella revela que sua mãe foi uma prostituta. Mas imediatamente ele justifica a prostituição e elogia a mãe dela, sugerindo que ela fez isso pela filha. Então, com ajuda do dinheiro de um amigo, ele veste Stella (ela só tinha um vestido velho) e sai com ela, até que pede que ela vá com algum homem. No dia seguinte, Accattone acusa Stella de se prostituir por prazer. Apesar de tudo, ele entra em crise, perturbando-se com aquilo que o fazia sentir-se bem: a saída de "sua" Stella com um cliente.

Accattone até tentou chamar atenção pulando da ponte (tentativa de suicídio?), mas Stella ficou com os clientes. (ao lado, no dia seguinte, Stella ouve os argumentos de Accattone) Impedido por amigos, corre para beira do rio Tibre (que atravessa Roma) e esfrega o rosto na terra, criando uma máscara (sugerindo que encontrou um outro eu?). A relação com Stella está modificando Accattone (deixar de usá-la como prostituta e entrar em crise, atitude impensável em relação à Maddalena). Numa seqüência surreal, Accattone sonha com o próprio funeral (manifestação inconsciente do despertar moral?) (10), e pede a um coveiro que o enterre no sol.

Na cena final, já sabemos, Accattone é confrontado pela sociedade dominante, caindo nos braços da lei, no centro de Roma. Foi Maddalena quem precipitou sua morte, enciumada por sua relação com Stella. Levada pelas mesmas emoções e instintos que a faziam protegê-lo, ela o denunciou como seu agressor e ele passa a ser seguido por um policial. Quando Accattone roubou salames de um caminhão de entregas, tudo ficou mais difícil. A boa estrela de Stella não foi suficiente para livrá-lo do destino traçado pelo centro de Roma. Apesar do potencial salvador da mulher, Pasolini parece não fugir de um desfecho católico: a redenção do homem pela morte.

Notas:

Leia também:

Accattone: Favelado, Cafetão e Cristo

1. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 78.
2 VIANO, Maurizio. A Certain Realism In RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 242n10.
3. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 241n3.
4. Duas grandes amigas de Pasolini.
5. RICCI, Giovanni R. Salò e Altre Ipotesi. Incontro com Dacia Maraini (Roma, 29/03/1976). Disponível em:
http://www.pasolini.net/cinema_salo_c.htm Acessado em: 22/03/2009.
6. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 77.
7. Idem, p. 79. Neste ponto, Ryan-Scheutz comete um erro comum entre aqueles que fazem análises de filmes baseados apenas no roteiro publicado. Sabemos que muito frequentemente eles são modificados pelos cineastas ao longo das filmagens. Por essa razão, Ryan-Scheutz parece não saber que a citação começa com Amore, mas termina pela voz de outra prostituta que acompanha o grupo. É curioso que alguém se disponha a analisar um filme que não assistiu. Some-se a isso a incorreta tradução da legenda do dvd lançado no Brasil (pela Versátil Home Vídeo). Onde a prostituta diz "abandonem (lasciate) toda a esperança", na legenda se lê, "mantenham toda a esperança". A fala de Amore que Pasolini filmou também é ligeiramente diferente do texto do roteiro. Tudo isso acontece em 1h:13min:50s. Para leitura do roteiro ver SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds.) Pier Paolo Pasolini per il Cinema. Milano: Mondadori, 2 vols, 2001. Vol.1, p. 99.
8. RYAN-SCHEUTZ, Collen. Op. Cit., pp. 81 e 242n16.
9. Idem, p. 243n21,22 e 23.
10. Ibidem, p. 84. 


3 de mar. de 2009

Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (III)

 A Noite


(...) Fizeram algumas perguntas a Pirandello sobre
seus personagens, cenários, comédias. E ele respondeu:
'Até que ponto eu deveria saber? Eu sou o autor'” (1) 


Michelangelo Antonioni
A Narrativa

Lídia e Giovanni vivem um casamento em crise, todo o filme gira em torno de uma tentativa de compreender o que ainda os une. Em certo momento, Lídia confessa que é seu sentimento de pena que a mantém ao lado de Giovanni. O casal visita Tommaso, um amigo que está à morte no hospital. O que deixa Lídia fragilizada, enquanto Giovanni está mais interessado na ninfomaníaca do quarto ao lado. Após o hospital, seguem para uma festa na editora Bompiani (uma editora real, que existe no mundo dos espectadores) em homenagem ao novo livro de Giovanni (lá, um prêmio Nobel também real pede autógrafo). No caminho, ele confessa a ela seu encontro com a ninfomaníaca.

Sentindo-se deslocada na festa, Lídia parte sozinha para uma longa caminhada pela cidade. Giovanni chega em casa, dorme e depois até procura por Lídia. Enquanto isso, ela está num antigo bairro do passado do casal. Lídia telefona para ele venha buscá-la. De volta ao apartamento, ela tenta uma última vez chamar atenção do marido. Tomando banho, ela pede que lhe dê a esponja. Depois, pede a toalha. Ele faz as tarefas e nem liga. Ela fica nua na frente dele e nada acontece.


  “(...) Senti-la não minha...
  Mas   uma   parte   de   mim.
   Uma coisa que respira comigo...
   e  que  nada  pode  destruir, a
  não  ser   a   indiferença   de
 um hábito que vejo como
 a  única  ameaça  (...)”

Trecho  da  carta  que  Giovanni  nem
lembrava mais de ter escrito para Lídia



Decidem ir a festa dos Gherardini. Ele é rico e deseja oferecer um emprego a Giovanni, então Lídia dispara na direção do marido: “Todo milionário quer o seu intelectual”. Gherardini, um empresário que vê o trabalho como uma arte, deseja contratar Giovanni para escrever a história de sua companhia. Mas é Valentina, a filha do anfitrião, que rouba a atenção do escritor, que passa a cortejá-la. No final da festa, ao raiar do dia, Lídia e Giovanni discutem a relação. Ela avisa que Tommaso morreu. Giovanni reclama por ela não lhe ter avisado, Lídia diz que ele estava ocupado jogando (sabemos que ele estava jogando na companhia de Valentina).

Quando Lídia era jovem, Tomasso dizia que ela era inteligente, e a fazia acreditar que possuía uma força. Tomasso sempre insistiu para ela estudar. Ele só falava dela, nunca dele mesmo. Então, lembra Lídia, Giovanni chegou falando de si mesmo. Era uma coisa nova para ela. Mas agora Lídia não o ama mais. As últimas imagens do filme mostram um Giovanni já sem palavras (imagem acima, onde podemos perceber também uma geometria da natureza e da cultura), cuja única atitude para manter o casamento é levar para o lado sexual. (Na imagem enigmática no início do artigo vemos metade do rosto de Valentina e, ao fundo, linhas verticais e diagonais que enfatizam a geometria do espaço das casas da cidade durante todo o filme)

Na Borda do Mundo





“Minha
mãe diz que
 ficar  em  casa
escrevendo faz
mal  para  a
pele

Valentina para 
Giovanni



Em relação a essa que constitui a segunda parte da Trilogia da Incomunicabilidade, a primeira informação que se poderia dar aos menos afoitos é que A Noite (La Notte, 1961) é enganosamente mais fácil de compreender que seu antecessor. A Aventura (L’avventura, 1960) quase não tinha diálogos, enquanto em A Noite as palavras parecem fluir compulsivamente. Entretanto, como notou Peter Brunette, os diálogos são tantos que começamos a duvidar de seu significado, autenticidade, eficácia e relevância (2). Depois da forte crítica que sofreu em relação ao "mutismo" de A Aventura, Antonioni parece querer mostrar que o que faz a diferença não é a presença do diálogo, mas aquilo que se pode dizer quando se deseja realmente comunicar. Referindo-se à cena final de A Noite, o cineasta apontou as diferenças entre os dois filmes:

“Em A Noite, os protagonistas vão um pouco além. Em A Aventura, eles se comunicam apenas através desse mútuo sentimento de piedade; eles não se falam. Em A Noite, contudo, eles conversam, comunicam livremente, estão inteiramente conscientes do que está acontecendo a seu relacionamento. Mas o resultado é o mesmo, não há diferença. O homem se torna hipócrita, ele se recusa a continuar com a conversa porque sabe muito bem que, se expressar abertamente seus sentimentos naquele momento, tudo estará acabado. Entretanto, mesmo esta atitude indica de sua parte um desejo em manter o relacionamento, para que mais tarde surja o lado mais otimista desta situação” (3)


Como numa antecipação das imagens finais de O Eclipse (L'eclisse, 1962), a terceira parte da Trilogia, as primeiras imagens que vemos em A Noite mostram a vida urbana de Milão, seus prédios, mundo de concreto, presente do Milagre Econômico italiano do pós-guerra (imagem ao lado). Para Brunette, embora pudéssemos falar de uma denúncia do estado de alienação na vida moderna, Antonioni estaria apenas mostrando essa vida, sem aprovar ou reprovar. Julgar será nossa função! (na imagem acima, à esquerda, Lídia encontra Valentina lendo durante a festa)



De acordo com Brunette, A Noite é um filme sobre habitar esta borda, esta incerteza. Creio que ele está se referindo a essa borda entre o que vemos e o que pensamos que sabemos. Na primeira cena, temos a visita ao hospital e o contraponto entre o paciente do quarto, racional e anti-séptico, e a janela que mostra o mundo da “realidade” do lado de fora. Tommaso havia escrito um artigo sobre Theodor Adorno. Juntamente com Max Horkheimer, Adorno se coloca contra a oposição hiperracionalidade instrumental x pensamento crítico.

O Papel do Intelectual




“Todo milionário quer 
o  seu  intelectual”

Lídia para Giovanni, 

comentário  sobre  o interesse
de Gherardini por seu marido




Giovanni personifica os questionamentos de Antonioni em relação ao lugar do artista e intelectual (que coexistiam na Itália daquele tempo) na nova ordem econômica que surgia na década de 60. O questionador independente tornou-se um luxo. Agora só há lugar para ele enquanto empregado. Valentina critica Giovanni, que ela vê como um intelectual que trabalha para justificar o sistema (social opressor): “você é um desses que se preocupam com os perdedores. É típico dos intelectuais: egocêntricos, mas cheios de piedade”. Gherardini não está pedindo para Giovanni melhorar a imagem da empresa para o público, o que ele deseja é a melhoria da comunicação entre patrões e trabalhadores. “Você não quer viver como nós?”, pergunta Gherardini. A proposta de trabalho do milionário para o “seu” intelectual é muito precisa.

Giovanni e Steiner, que mata os dois filhos pequenos e se suicida em A Doce Vida (La Doce Vita, direção Federico Fellini, 1960), poderiam ser considerados dois personagens de um grande estudo a respeito do papel do intelectual na sociedade italiana (4). Entretanto, Alberto Moravia, um famoso escritor e intelectual italiano, afirmou que Giovanni era muito negativo e irracional para ser convincente. O intelectual de Fellini também sofreu o mesmo tipo de crítica.


Giovanni é primeiro intelectual de Antonioni. A partir dele, a relação entre crise profissional e crise dos sentimentos é muito mais aprofundada do que em A Aventura. Para Tassone, salvo em parte pela classe social que pegou carona no Milagre Econômico e o desespero dos protagonistas, não existem semelhanças suficientes entre A Doce Vida e A Noite para que alguns críticos tenham aproximado os dois. Existem diferenças narrativas e de estilo (5). (imagem acima, à esquerda, o chão da sala de Gherardini dá uma vaga idéia da vida de Giovanni; ao lado, com seus livros)



Do ponto de vista do estilo, no filme de Fellini, tudo é cruel, barroco e dinâmico. Em Antonioni, tudo é seco, puro e geométrico. Do ponto de vista narrativo, Marcello Rubini, em A Doce Vida, é um jornalista em busca de escândalos, um interiorano que vem para Roma e submerge na corrupção local. Em A Noite, Giovanni Pontano é um escritor de sucesso que não sabe mais como escrever. Os convidados de Gherardini pertencem à aristocracia do dinheiro e sua única loucura se resume a cair na piscina com vestidos de noite. No caso de A Doce Vida, estamos tratando basicamente com a fauna internacional da Via Veneto.

A Noite estaria mais próximo de 8 ½ de Fellini (Otto e Mezzo, 1968). Neste filme, o cineasta Guido Anselmi, como Giovanni, é um egocêntrico que não sabe mais amar ou criar. No final Luisa, sua esposa, assim como Lídia, resolve virar a página. A única grande ligação entre os três filmes talvez seja Marcello Mastroianni, que atua nos papéis dos três confusos personagens.

A Doença de Eros


“Os sentimentos estão voltando à moda

Giovanni para Valentina


Uma ninfomaníaca intercepta Giovanni no hospital. Mas as enfermeiras entram e batem nela, curiosamente sem questionar a presença de Giovanni. Por um lado, ela demonstra que a doença de Eros não está restrita aos homens. Por outro, se poderia dizer também que a atitude dela apenas expressa o desejo feminino, embora não aparente ser um estado benigno. De qualquer forma, trate-se ou não de uma manifestação do desejo feminino, ele logo será reprimido pela autoridade (personificada nas enfermeiras) (6). Como a maioria dos personagens masculinos de Antonioni, Giovanni está sempre pronto para o sexo. (imagem acima, à esquerda, durante a festa, uma convidada se ajoelha e em seguida beija a estátua na boca. Trata-se da imagem de um Sátiro, personagem da mitologia grega que se divertia bebendo, dançando e perseguindo ninfas. Meio humanos, meio animais, os sátiros eram companheiros de Dionísio, deus do vinho. O Sátiro é o correspondente ao Fauno na mitologia romana)

Neste filme, o cineasta dá maior atenção às mulheres, elas têm mais poder do que em A Aventura. Lídia raramente se encontra no perigo físico que ameaçava Cláudia em A Aventura. Valentina, a filha do futuro patrão de Giovanni, torna-se a rival de Lídia, já que Giovanni passa a cortejá-la. Mas em vez de implorar amor, Lídia flerta com outro.


Muitas cenas compõem uma espécie de balé de reflexos no espelho, janelas e claro-escuro, indicando a ambigüidade do Eu moderno (7). A doença de Eros, quando o erotismo é chamado a preencher a falta de sentimentos, captura o espectador, que se perde entre os rostos dos personagens e seus reflexos. O preto e branco do próprio filme multiplica um efeito de tabuleiro de xadrez, onde se põem e dispõem os sentimentos das pessoas. (imagem ao lado, Antonioni posiciona a ninfomaníaca de costas para uma parede branca, aumentando a sensação de isolamento dela)



Na seqüência final do filme, confirmando o medo que Giovanni expressou numa carta à Lídia, algo aniquilou sua memória. O casamento foi destruído por uma solidão impenetrável e pela indiferença do hábito. Um comportamento típico da doença de Eros, tentar transar com Lídia é a única resposta de Giovanni à constatação de que o casamento acabou. Ainda lembramos de como, no começo do filme, Lídia tentava despertar o desejo dele durante o banho. Entretanto, embora ele não reagisse, não podemos colocar toda a culpa sobre seus ombros, já que a própria Lídia, apesar da provocação erótica, admitiu que só está com Giovanni porque sente pena.

A Caminha de Lídia



“É realmente necessário?”, com esta pergunta Lídia responde a Giovanni, que disse que tinha de contar algo que ela não iria gostar. Ele confessa o encontro com a ninfomaníaca. Com sarcasmo, ela sugere o título para uma nova estória: Os Vivos e os Mortos. Esse título bem poderia servir para nomear a crítica de Antonioni à função do artista/intelectual alienado naquele momento da história da Itália. Na festa em homenagem a Giovanni, Lídia, que ainda está sob o impacto da visita à Tommaso, sente-se isolada (quando sofremos mais ainda ao ver que o mundo segue seu curso, estejamos vivos ou não).



A caminhada de Lídia pela cidade constitui um dos pontos altos da representação visual da crítica de Antonioni. De acordo com Brunette, a caminhada de Lídia pelos subúrbios de classe operária em Milão constitui também uma das mais famosas seqüências da história do cinema. Portanto, muitas são as interpretações. Entre elas, a mais comum seria associar o relacionamento confuso do casal ao espaço árido e vazio em que vivem. Outra hipótese seria a sugestão de que tudo que falta a Lídia é um sexo melhor! (imagem acima, Lídia, à esquerda, espremida pelo prédio, não há como negar o elemento arquitetônico opressivo)



Mas afinal, o que é o que nesse labirinto Antoniano? Partindo de uma perspectiva diversa, Brunette sugere olharmos para a caminhada de Lídia pensando na natureza daquilo que chama de "significado cinematográfico". Ele questiona a tendência em se fazer interpretações simbólicas. Cada interpretação está marcada pela vivência particular do intérprete. Afirmar que na cena da caminhada de Lídia tudo é fruto da subjetividade feminina olhando para o mundo também não resolve, pois nós os espectadores estamos olhando com nosso olhar para o olhar dela. Por outro lado, Brunette admite...




“De qualquer forma, estamos para ler – ou não – os símbolos esparramados ao longo da jornada de Lídia. De fato, é importante lembrar que uma mulher ocupa o centro do palco, e por um tempo bem longo. Num dos primeiros e únicos momentos na história do cinema, Antonioni expressamente aproxima a subjetividade feminina, enfatizando que o olhar está sendo gerado por uma mulher específica ao invés do habitual protagonista masculino [...]. Vimos o começo dessa transferência para um ponto de vista feminino em A Aventura, mas lá ele foi hesitante [...]”. (8)



Mesmo assim, insiste Brunette, olhamos para ela olhando. No final, acabamos escolhendo nossos sentidos e símbolos específicos. O rosto de Lídia surge como um significante legítimo. Mas Brunette não concorda com André Bazin, para quem os rostos dos atores neo-realistas de Vittorio De Sica não atuam, apenas são. Pelo contrário, ele se refere aos sentidos específicos do rosto de Jeanne Moreau, que interpreta Lídia, como parte das linhas expressivas de muitos tipos diferentes que cada enquadramento contém. O fato de que esses significados são difíceis de descrever não os torna menos legítimos ou presentes (9).



Na caminhada de Lídia, Antonioni apresenta um contraponto entre som e silêncio. Brunette chama atenção para aquele momento onde ela encontra um grupo brigando sem fazer barulho. Em tais situações espera-se que haja uma algazarra, mas só encontramos uma pequena platéia impassível. Este é o exato oposto daquele mundo falastrão de Giovanni, mas onde as palavras perdem o sentido. De repente, Lídia grita um “basta!”. Um dos homens olha ameaçadoramente, da mesma forma que olharam para Cláudia em Noto, em A Aventura. Ela se afasta e continua sua caminhada pelas ruas de Milão.




Já durante a festa dos Gherardini, acompanhamos Giovanni e Valentina quando ela resolve mostrar um texto que recitou e gravou. Ao rebubinar a fita, sua fala surge numa aceleração que destrói o sentido. Brunette sugere que podemos entender todos os diálogos do filme a partir desta cena metafórica: muitas palavras pouco sentido; muito se fala e pouco se diz. Quando Giovanni, chegando ao apartamento, desliga o toca discos que reproduzia aulas de inglês, onde se falam coisas sem a intenção de fazer (se trata apenas de repetir), somos lembrados do vazio da comunicação sem sentido, sem conexão com o real.



No final da caminhada, Lídia telefona pedindo a Giovanni que vá buscá-la. Eles estão num lugar conhecido do passado dos dois. Mas esse passado está desaparecendo (como o passado onde existia amor entre eles). Giovanni olha em volta e diz que nada mudou, mas Lídia se apressa em dizer que vai mudar rápido. Temos aqui duas referências, tanto a obras de uma reurbanização crescente (fruto das benesses do Milagre Econômico apontando para o futuro) como também ao fato de que o futuro do casal promete muito pouco. Como em A Aventura, ao casal de A Noite resta um presente vazio que não tem futuro.


A Noitada


(...) Como o abraço de duas pessoas que estão se afogando”

Andrei Tarkovski,

sobre o final de A Noite


Antonioni levou 32 noites, das 5 da tarde até as 7 da manhã, para filmar a seqüência da festa. A crítica aos comportamentos burgueses é mais evidente do que em A Aventura. Entre os comentários vulgares das mulheres, os homens se entregam a uma típica e banal postura competitiva entre si. Ouvimos Gherardini se dirigir ao mordomo em francês, idioma que para Antonioni indica sofisticação vazia, lembrando a festa em A Aventura. Um dos convidados sugere abandonar o passado, enfatizando o eterno agora que essas pessoas preferem viver (10).



Ao chegar, Giovanni encontra um exemplar de Os Sonâmbulos (Herman Broch, 1930-2), vai descobrir que a leitora é Valentina, filha de Gherardini, seu futuro patrão. Um livro que completa o tom do casal. Momentos antes, não encontrando ninguém, ele pergunta se estariam todos mortos, Lídia responde que espera que sim. Ela vai andando pela casa como antes fizera pela cidade. Brunette chama atenção para a próxima cena, quando ela descobre que Tommaso morreu. Ao invés de dar um close no rosto dela, Antonioni afasta a câmera. Nós agora estamos tão longe dela quanto ela está (e se sente) dos outros.



Lídia vê quando Giovanni beija Valentina. Giovanni confessa para Valentina que sua vida está em crise, mas ele acha que é passageiro. Brunette lembra que todos os personagens masculinos de Antonioni pensam assim. Além disso, todos são traídos por suas obsessões sexuais. A relação que se estabelece entre Lídia e Valentina vai além do comportamento vulgar das outras mulheres, não há competição entre elas. Ainda segundo Brunette, essa solidariedade entre mulheres é mais forte do que em A Aventura. (nas imagens acima, ao lado e abaixo, podemos ver o uso que Antonioni fez dos reflexos nos vidros)



No fundo, talvez essa camaradagem seja apenas o resultado de uma total falta de energia emocional que assombra as duas (não há forças para lutar e nem se sabe mais pelo que lutar). Desculpando-se por um comentário deseducado momentos antes, Lídia diz para Valentina: “Não havia ciúme naquilo que eu disse antes. Nem um pouco. Esse é o problema” (11). Lídia não lutará por Giovanni, enquanto Valentina prefere acreditar que o amor limita as pessoas. Elas não fofocam como as outras mulheres, preferindo falar sobre suicídio e morte. Na opinião de Brunette, o diálogo delas lembra o teatro de Samuel Beckett:



 
Lídia:   Você  não  sabe  o  que   significa  sentir   todos
esses  anos pesando em você  e  não  entendê-los mais.
Essa   noite,  eu  quero  morrer.  Eu  juro.  Pelo  menos
essa ansiedade acabaria e algo novo poderia  começar.

Valentina: Talvez nada.

Lídia: Sim, talvez nada. (12) 




Enquanto o diálogo entre Giovanni e Lídia vai terminando numa pueril tentativa dele em resolver a questão (ou tentar esticar mais um pouco o tempo da relação) com sexo, Antonioni afasta a câmera e focaliza um ponto do jardim (imagem ao lado) que parece remeter à geometria da cena final de A Aventura. Lá, o lado direito da imagem é tomado por um muro, enquanto o lado esquerdo está aberto ao horizonte futuro (que mostra a silhueta do Etna, o vulcão; algo que destrói, mas renova) (imagem abaixo). Em A Noite, o horizonte é substituído pela sugestiva, e pessimista, indicação de que o "filme acabou".



Foi cineasta russo Andrei Tarkovski que, comentando a respeito da cena final de A Noite, sugeriu que o abraço de Giovanni e Lídia é como o de duas pessoas prestes a se afogar. Como no final de A Doce Vida, testemunhamos a morte de alguma coisa. Como Cláudia em relação a Sandro no final de A Aventura, Lídia agora só consegue sentir pena de Giovanni. Segundo o próprio Antonioni, a cena final mostra Lídia, como Cláudia em A Aventura, sendo capaz de agir racionalmente em relação a suas emoções, enquanto Giovanni insiste em negar as evidências:



“(...) Aquela conversa, que na verdade é um solilóquio, um monólogo da esposa, é um tipo de sumário do filme para esclarecer o significado real do que aconteceu. A mulher ainda deseja discutir, analisar, examinar as razões do fracasso de seu casamento. Mas ela é impedida de fazer isso pela recusa de seu marido em admitir seu fracasso, sua negação, sua falta de habilidade em lembrar-se, ou má vontade para se lembrar, sua recusa em considerar as coisas, sua incapacidade de encontrar qualquer base para um novo começo a partir de uma análise lúcida da situação como ela se apresenta. Ao invés disso, ele procura se refugiar numa tentativa desesperada de fazer contato físico. É por causa dessa paralisação que nós não sabemos a que possível solução eles chegariam” (13)


Notas:

1. ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 35.
2. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 53.
3. ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 35.
4. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. Op. Cit., pp. 68 e 166n24.
5. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. P. 235.
6. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. Op. Cit., p. 55.
7. Idem, p. 64.
8. Ibidem, p. 59.
9. Ibidem, p. 61.
10. Ibidem, p. 63.
11. Quando necessário, neste blog, as reproduções de diálogos não seguirão a tradução das legendas.
12. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. Op. Cit., p. 66.
13. Ibidem, p. 39.