22 de dez. de 2008

O Porteiro da Noite e a Cumplicidade da Vítima



Sinopse 

O Porteiro da Noite (Il Portiere di Notte, 1974) conta a estória da relação de amor sadomasoquista entre Max e Lucia, que começou quando ela foi internada no campo de concentração onde ele era um dos oficiais nazistas no comando. Doze anos após o fim da guerra, ele é o porteiro de um hotel e ela uma hóspede, eles se reencontram e recomeçam a relação. Para irritação dos ex-oficiais nazistas que formam um grupo do qual Max faz parte. Esse grupo faz uma terapia para esquecer os horrores que perpetraram. Entretanto, “esquecer” aqui quer dizer eliminar as testemunhas que por acaso sobreviveram.

Essa terapia funciona como um julgamento, onde todas as provas contra eles são procuradas e eliminadas. Lucia chega quando Max está para ser julgado. Um de seus companheiros diz que ele não precisa se preocupar, pois não há testemunhas (sobreviventes conhecidos) contra ele. Por enquanto só Max sabe que alguém que poderia incriminá-lo acaba de chegar. Entretanto, em pouco tempo a existência de Lucia já não é um segredo para o grupo. Eles têm até uma fotografia dela, tirada durante a época do campo de concentração pelo próprio Max. O problema é que Max não só trouxe Lucia de volta, com quer protegê-la do bando. No final, o casal será assassinado.

O Que é Isso e de Onde Veio 



No que diz respeito ao Holocausto, em meados da década de 70 do século 20 alguns filmes italianos mudaram o ponto de vista, passando das narrativas sentimentais das primeiras produções para a sexualidade explícita e violenta. O Porteiro da Noite é um desses exemplos. A cineasta Liliana Cavani começou sua trajetória profissional na área dos documentários sobre temas da Segunda Guerra Mundial. E foi aí que ela encontrou um elemento discordante em relação discurso até certo ponto confortável que separa claramente mocinhos e bandidos. Não parece haver dúvida sobre quem são os mocinhos e quem são os bandidos quando falamos sobre a relação explosiva entre judeus e nazistas.

Cavani foi muito atacada por sugerir que poderia haver algo mais entre pelo menos alguns judeus e alguns nazistas. Entretanto, ela afirma que não inventou nada, não se trata de uma obra de ficção ou de horror envolvendo sexo. A cineasta conta que, durante suas pesquisas para os tais documentários sobre a guerra, entrevistou uma sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. Millicent Marcus lembra que, “nas palavras de Cavani, a mulher ‘começou a se sentir culpada por ter sobrevivido ao inferno, por tornar-se testemunha viva e, portanto, [guardar] a amarga lembrança de algo embaraçoso que todo mundo queria esquecer o mais rápido possível’” (1).

Peter Bondanella lembra também que a sobrevivente dizia odiar os Nazistas porque eles revelaram a ela a profundidade do mal de que todo ser humano é capaz. Ela teria inclusive aconselhado Cavani a não considerar inocentes todas as vítimas. Porque, como seus captores, elas eram humanas também. O mal, conclui Bondanella, não era apenas praticado nos campos de concentração. Era também ensinado, e as lições aprendidas assombrariam os sobreviventes e colocado uma sela (como se põe num cavalo de carga) de culpa neles pelo resto de suas vidas (2). Além dos judeus, muitos outros seres humanos encontraram seu fim nos campos de concentração nazistas. Lucia não é caracterizada como judia, mas pode-se dizer que existe certa ambigüidade, já que a maior parte das vítimas foram realmente os judeus. De fato, nas cenas que mostram a chegada de Lucia, várias pessoas em volta usam a estrela amarela, menos ela.

Memória Histórica e Memória Visual 



Thomas Elsaesser insere O Porteiro da Noite numa onda de produções do cinema de arte europeu que se seguiram ao final da guerra e onde a história da Alemanha durante o conflito deveria ser contada, mas os cineastas alemães ou não sabiam por onde começar ou ainda eram proibidos de fazê-lo. Antes que cineastas como Hans-Jürgen Syberberg, Helma Sanders-Brahms e Rainer Werner Fassbinder surgissem com suas respostas, o caminho foi consolidado na Itália por filmes como Roma, Cidade Aberta (Roma, Città aperta, 1945), Paisà (1946) e Alemanha, Ano Zero (Germania Anno Zero, 1948) dirigidos por Roberto Rossellini; Os Deuses Malditos (La Caduta Degli Dei, direção de Luchino Visconti, 1969), O Porteiro da Noite, Pasqualino Sete Belezas (Pasqualino Settebellezze, direção de Lina Wertmüller, 1976). Na França por Noite e Neblina (Nuit et Brouillard, direção de Alain Resnais, 1956) O Último Metrô (Le Dernier Metro, direção de François Truffaut, 1980). Na Suécia, por O Ovo da Serpente (Örmens Ägg, direção de Ingmar Bergman, 1977) (3). Talvez o mais conhecido venha de Hollywood, com Cabaré (Cabaret, direção de Bob Fosse, 1972) e a série de televisão Holocausto (Holocaust, direção de Marvin J. Chomski, 1978).

Anton Kaes levanta a questão de como a Alemanha é representada nos filmes, especialmente dos que se passam durante o regime Nazista. Não é que os filmes mintam, o problema é a quantidade de clichês que filtra nossa visão e nosso entendimento em relação ao assunto (4). Kaes argumenta que se criou certa iconografia Nazista que passou a ser reproduzida rotineiramente. Filmes como Os Deuses Malditos, O Porteiro da Noite, O Último Metrô e Lacombe Lucien (1974), de Louis Malle, criaram imagens tão poderosas do Fascismo que influenciaram a maioria dos filmes posteriores sobre o Terceiro Reich.




Seu estilo visual tornou-se uma convenção para filmes históricos que tratassem do Nazismo. O Terceiro Reich foi frequentemente reduzido a sinais: uniformes das SS, suásticas, nucas raspadas, cintos e botas de couro preto, corredores intimidantes e escadas de mármore. Tudo isso sinalizando: “fascismo”. Sinais que servem de pano de fundo sugestivo que dá peso e conseqüência aos acontecimentos históricos. Karsten Witte também atacou esses clichês, afirmando que em nada eles contribuem para criar novas perspectivas de análise. De fato, completa Kaes, a questão é exatamente esta. Filmes tocantes, mas inócuos produtos de massa, onde o passado é apresentado como algo resolvido - portanto ninguém será afetado por ele.

Em 1974, estes filmes representavam o que ficou conhecido como “Nazi-Retrô”, provocando intensa discussão no Cahiers du Cinéma a respeito de filme, memória popular e reescrever a história. A propósito disso, Michel Foucault argumentou que existe uma batalha pelo domínio da memória coletiva, a memória popular. Segundo Foucault, aquele que controlar a memória do povo também controlará sua experiência e conhecimento do passado. Ele reclama que não existem mais filmes sobre o papel dos grupos que formavam a Resistência Francesa ao Nazismo porque alguém deseja que a Resistência seja esquecida.

Mantêm-se os filmes sobre o Fascismo (cheios de clichês) para o espectador introjetar o temor em relação a ele, ao mesmo tempo em que os poderes dominantes se apresentam como única alternativa legítima de resistência (já que os filmes sobre os movimentos populares de resistência sumiram). De acordo com Foucault, os filmes derrotistas sobre o Fascismo, direcionados a provar que ninguém está imune a ele (implicando que nada pode ser feito sobre o Fascismo), inconscientemente jogam nas mãos dos poderes dominantes (5). Nem será necessário nos estendermos muito além de lembrar dos ataques sofridos pelo filme de Cavani na época do lançamento e o ostracismo no qual considero que foi mergulhado, o que fez dele pouco mais que uma referência em alguns poucos compêndios mais aprofundados sobre o cinema italiano.

Luto e Silêncio 



Na opinião de Millicent Marcus, filmes como O Porteiro da Noite radicalizaram e desmistificaram predecessores como Roma, Cidade Aberta, Paisà, Alemanha Ano Zero e Os Deuses Malditos, por trazer para frente do palco as correntes sexuais antes sublimadas e negar a redenção coletiva que o sacrifício das protagonistas femininas prometia antes. Agora é o próprio corpo dessas mulheres que se torna o palco para a luta entre dominação e submissão. E o resultado desta luta não oferece esperança para o tipo de humanismo transcendente contido nos outros filmes (6).

O Porteiro da Noite seria o maior expoente do cinema italiano em torno dessa sexualização do Holocausto. Neste contexto, o filme levanta sérias questões a respeito da cumplicidade da vítima em relação a sua própria escravização, sua identificação com o opressor e a dependência mútua entre dominador e dominado. Para Marcus, quase que se poderia dizer que o cenário do campo de concentração nos flahbacks e onde tudo teria começado poderia até ser um mero pretexto, um laboratório Para o estudo da sexualidade humana quando levada ao limite. Como Cavani mesma disse, ela sentiu “a necessidade de analisar os limites da natureza humana no limite da confiança, levar as coisas ao extremo”.

Marcus interpreta O Porteiro da Noite também como um estudo da relação que uma sociedade pode estabelecer com um passado profundamente traumático e perturbador. O silêncio da sobrevivente de Auschwitz que Cavani entrevistou e que deu origem ao filme demonstra a reserva e o silêncio de décadas da cultura italiana em relação à realidade dos campos de concentração e extermínio. Gaetana Marrone considera a necessidade de Cavani revisitar esse trauma histórico como uma forma de trabalho de luto (Trauerarbeit) que a sociedade como um todo se recusou a tomar para si. Segundo Marrone, “um retorno obsessivo como esse ao lugar de morte e horror, pode ser relacionado aos processos simbólicos de um rito funerário. O campo de concentração se torna algo que freqüenta o inconsciente do sobrevivente, sua jornada representando seu próprio ritual de luto” (7).




Com relação à terapia que os ex-nazistas fazem com o objetivo de livrar-se da culpa, o que vemos é que eles redefinem a culpa como algo externo a eles e, portanto, facilmente apagável. Entretanto, o que eles apagam são as provas vivas de suas ações. Matando os sobreviventes eles pretendem matar sua culpa. No mesmo de Foucault quando se referiu a tendência de apagar o passado ao evitar que certos filmes falem sobre certos assuntos. Como disse Klaus, o líder do grupo de criminosos de guerra, a “memória não é feita de vagas sombras, mas de olhos que tem olham direto na cara e dedos que apontam acusando você”. Segundo esse ponto de vista, uma vez que a evidência concreta é destruída, estes homens estão “curados” (é a famosa queima de arquivo).

O problema é Max, “um caso especial”. Em função do restabelecimento de sua relação com Lucia, um elo com o passado é refeito: o porteiro da noite, aquele que está no limiar entre a escuridão da noite e a luz do dia, entre o passado nazista e o presente pós-guerra, e que se recusa a fechar a porta entre eles. O impulso de Max e Lucia para refazer seu relacionamento e recuperar seu passado funciona como antídoto contra a intenção dos ex-nazistas de apagar a história. Para o casal, o Holocausto acaba servindo como objeto do desejo, e a lembrança dele, sua marca na memória, é o que os seduz.

O Preço da Normalidade 



A espetacularização e estetização do Holocausto feita por Cavani está explicita na própria espetacularização feita por Max ao filmar a dança de Lucia no campo de concentração para uma platéia de oficiais das SS. Além disso, quando Max afirma que sua relação com Lucia é bíblica e não tem nada de romântico, podemos entender o presente que ela recebe depois da dança. Ela recebe a cabeça de um outro prisioneiro que ele dizia que a incomodava. O elemento bíblico aqui é Salomé, apontada no novo Testamento como responsável pela morte de João Batista. É dele a cabeça com a qual a arte Ocidental a retrata. Salomé dançava para seu tio, que lhe promete dar o presente que ela desejar. A mão de Salomé diz a ela que peça a cabeça de João Batista. Só que as semelhanças param por aí, pois Lucia diz que só queria que o prisioneiro fosse transferido para outro lugar.

A dança de Lucia parece ser a seqüência mais lembrada deste filme. Numa paródia a Marlene Dietrich, Lucia veste um uniforme das SS, sem a camisa e o paletó. Dança e canta de forma sedutora. Com os seios a mostra, ela circula pela sala como modos provocantes. Quando termina sua apresentação, ela se acomoda numa cadeira na mesa de Max. Segundos antes de Max levantar o pano da caixa para que ela veja o presente que ganhou, ele dá uma risada contida. Ela vê a cabeça do prisioneiro judeu e fica visivelmente atormentada, mas sem reação. Agora, além da memória de sua relação com um carniceiro nazista de campo de concentração (enquanto dia e noite outros judeus eram mortos nas câmaras de gás ali mesmo), Lucia leva agora mais uma lembrança (ela é a responsável direta pela morte de um judeu como ela). Levando em consideração o relato que a sobrevivente de um campo de concentração deu a Cavani, podem-se imaginar quantos segredos alguns sobreviventes têm que carregar!




Segundo Marguerite Waller, O Porteiro da Noite demonstra como Cavani subverte as posições convencionais entre homem e mulher, desestabilizando as oposições binárias nas quais se baseiam as relações de poder Fascistas. Se a lógica binária se mantiver, judeus e nazistas, mulheres e homens, continuaram sobrecarregados com a tarefa de representar suas posições como estáveis, coerentes e corretas. Uma tarefa que as envolverá em mais representações da diferença enquanto oposição e ameaça. Millicent Marcus conclui que o mesmo esforço que as pessoas fariam para reprimir os impulsos sexuais assumidos por Max e Lucia é análogo ao esforço que o conjunto de instituições políticas de um país faria para reprimir um passado traumático (ela se refere a Itália e Alemanha, mas poderíamos pensar no caso do Brasil em relação às ditaduras desde a proclamação da República).

Entretanto, completa Marcus, quando a espetacularização e estetização dos hábitos do casal nos transforma (a nós espectadores) em testemunhas libidinosas, Cavani nos estaria forçando a conhecer os sombrios e secretos esconderijos de nossas próprias fantasias sexuais e nossa necessidade simultânea de reprimi-las - em defesa da manutenção da ordem psíquica e do funcionamento social. Nas palavras de Marcus, “nada podemos senão reconhecer nossa cumplicidade com as atividades malignas dos ex-oficiais nazistas que pretendem exorcizar a ameaça [que o casal representa] a sua normalização no pós-guerra” (8).


Leia Também:

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

Notas:

1. MARCUS, Millicent. Italian Film in the Shadow of Auschwitz. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 53.
2. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 350.
3. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema: A History. London: Macmillan, 1989. Pp. 248-9.
4. KAES, Anton. From Hitler to Heimat. The Return of History as Film. Massachusetts: Cambridge University Press, 1989. Pp. 22-3.
5. Idem p. 291n41.
6. MARCUS, Millicent. Op. Cit., p. 52.
7. Idem, p. 53.
8. Ibidem, p. 55 e nota 25. 


20 de dez. de 2008

Bertolucci no Mundo da Lua




“Buscando pela primeira lembrança que tenho de minha mãe, o que me veio à mente foi uma imagem do tempo em que tinha dois ou três anos: Eu estava sentado na cesta pregada ao guidão de uma bicicleta; estava de costas para a estrada e de frente para minha mãe, que dirigia. Eu olho para minha mãe e vejo seu rosto; atrás dela eu vejo a lua. Eu confundi o rosto muito jovem de minha mãe com o rosto muito velho da lua. Esta primeira memória era muito misteriosa. Quando ela veio a mim não consegui compreender o significado... [...] Perguntei a mim mesmo por que tive precisamente esta lembrança. Então filmei La Luna em parte para tentar compreender essa associação entre o rosto de minha mãe e o rosto da lua. Preciso dizer que, após concluir o filme, essa lembrança estava até mais misteriosa” (1)

Bernardo Bertolucci


Sinopse (2)

Caterina é uma cantora lírica de sucesso. Entretanto, sua vida privada está em ruínas: Douglas, seu marido, morre repentinamente na véspera da partida dela para uma turnê na Itália. Joe, o filho de quinze anos que ela teve em razão de uma ligação amorosa no passado com um italiano, é viciado em heroína. Segue com sua mãe para Roma, mas não se adapta ao novo ambiente. Quando Caterina descobre o vício do filho, tem uma brigam violentamente. Tapas e xingamentos são seguidos de uma relação incestuosa. (na imagem acima, quase não enxergamos a lua acima da cabeça de Caterina. Opção estética de Bertolucci ou limitação da cópia em dvd?)


Caterina deixa o filho na frente de uma escola e o incentiva a entrar. Joe está agora numa sala onde um professor chamado Giuseppe está dando uma aula de arte. Joe segue o professor até sua casa e descobre que ele é seu pai. Furioso, o rapaz conta a Giuseppe que o filho que ele abandonou morreu de overdose de drogas. Giuseppe descobre a verdade nas Termas de Caracalla, onde Caterina está ensaiando. Segue-se a reunião de mãe, pai e filho. (imagem ao lado, a maça mordida, um dos tantos detalhes que passam despercebidos na seqüência inicial de La Luna, antes dos créditos. Limitações da cópia em dvd?)



De Lua Virada

Como em vários de seus filmes, em La Luna (A Lua, 1979) (3) Bertolucci volta à cena primordial quando, de acordo com Sigmund Freud, nós vimos ou imaginamos ver nossos pais fazendo sexo (e interpretamos o episódio como um evento violento). Este também não é o primeiro filme do cineasta a abordar o incesto. Em Os Deuses Malditos (La Caduta Degli Dei, 1969), dirigido por Luchino Visconti e Sopro no Coração (Le Souffle du Coeur, 1971), sob a batuta do francês Louis Malle, temos exemplos de relações incestuosas. (imagem ao lado, Joe brinca com o mel; abaixo, a criança engasga com o mel oferecido pela mãe)



Entretanto, La Luna é o primeiro filme onde o incesto não é fruto de uma degeneração mental. Bertolucci pensou na Tragédia Grega. Caterina e Joe estão em perfeito estado durante seus dois encontros sexuais incompletos e jogos de ciúme e raiva (4). Em Antes da Revolução (Prima della Rivoluzione, 1964), Bertolucci criou uma situação de incesto entre tia e sobrinho. Em O Conformista (Il Conformista, 1970), na cena em que Marcello espiona Giulia e Lina num encontro erótico, o cineasta vê uma relação com a cena primordial ou primitiva. Em La Luna, Bertolucci apresenta um catálogo de cenas primais.



Seqüência Inicial

Bertolucci utiliza até mesmo os créditos iniciais do filme para ilustra a lembrança de infância com sua mãe. Antes disso, temos uma introdução que dura em torno de quatro minutos e meio. Em seguida os créditos, e então começa o filme, com Joe já adolescente. Nas imagens durante os créditos, o rosto de Caterina está pensativo. O azul do mar mediterrâneo parece irreal e suspenso entre o dialogo silencioso entre mãe e filho e o silêncio da lua, que aparece intermitentemente, entre as várias cenas de trocas de olhares entre os dois. É como se a imagem da lua fizesse o papel de intervalo entre as frases mudas dos dois.



Na seqüência inicial, Joe tem tudo à mão: liberdade, brinquedos e a total atenção de sua mãe. Até que Giuseppe rouba a atenção dela. Mesmo antes dessa chegada, algo já havia saído errado. Caterina acabou fazendo o bebê engasgar com mel. Esta seqüência inicial funciona como uma cena primordial. Primeiro porque abre o filme. Em segundo lugar, por seu conteúdo. Quanto ao mel, Bertolucci chamou seu filme de "mielodrama" (em italiano, mieli = mel): “Mel, como amor materno, é doce demais, tão doce que sufoca a criança. Aos quinze [Joe substituirá] metaforicamente esse mel, esse afeto materno” (5).



Existem também elementos de violência nesta seqüência. Embora Joe não assista nenhum ato sexual entre os pais, vê uma faca cortando um peixe trazido por Giuseppe, ouve também alguns gritos de susto de Caterina enquanto ela dança twist com Giuseppe sobre uma mureta com o abismo do mediterrâneo atrás dela. Ao contrário da seqüência durante os créditos iniciais do filme, aqui temos a luz do sol. A cena idílica esconde alguns conflitos. Quando Caterina põe o disco de twist, ela interrompe a mãe de Giuseppe, que estava tocando piano. (imagem ao lado, a única referência à Giuseppe no início são seus pés)



Escutamos também o choro de Joe que, emaranhado num novelo de lã como numa teia, corre em direção à avó (já que a mãe está fixada em Giuseppe) (imagem ao lado). Então Giuseppe estripa um peixe com a faca. Anos depois, quando Joe volta procurando seu pai e segue para o mesmo terraço, ele olha para um novelo de lã. A mãe de Giuseppe, sua avó, percebe o que está acontecendo mais rapidamente que seu filho, ela deixa o local arrastando fios de lã pelos pés. “O simbolismo é evidente: ela não quer que o passado retorne [e se interponha entre ela e seu filho]. Mas o passado é mais forte do que seu desejo” (6).



A Vida: Um Programa de Tv em Chinês sem Legendas

Em seguida a seqüência inicial, passamos para a adolescência de Joe. Estamos na mesa de refeições do apartamento de Nova York, Joe, agora com quinze anos, sua mãe e Douglas (que não é seu pai verdadeiro) se entreolham. Os laços entre os protagonistas de La Luna seguem um padrão, entre as duas cenas anteriores (antes dos créditos iniciais e durante os créditos) existem laços invisíveis. Nas palavras do próprio Bertolucci, os laços movem, puxam e torturam os personagens. Entre as duas cenas anteriores desenvolve-se um antagonismo entre mito e imitação em torno de questões freudianas.



Isso fica evidente quando, no apartamento, a comunicação é difícil, bem diferente da cena inicial (e principalmente da seqüência durante os créditos iniciais). É Douglas quem resume essa cena conflituosa, mostrando ao mesmo tempo seu desejo de comunicar, seu medo de se expor ao fazer isso e sua reação à ameaça representada por Caterina e Joe. Douglas conta para ela que teve um sonho, mas não revela seu conteúdo. Então comenta com Joe que assistiu um programa de tv chinês com legendas em chinês. Primeiro Douglas aceita ficar com Joe em Nova York (Caterina vai para a turnê na Itália), depois diz que vai embora.



Não apenas Douglas abandona Joe, como o machuca com um jogo de palavras. Com o programa em chinês com legendas em chinês, Douglas está enigmático. Recusa a comunicação para se proteger da verdade. É como se ele tivesse uma premonição de sua morte iminente. Além disso, seu medo e ressentimento em relação à Joe, que tomará seu lugar ao lado de Caterina, motiva seu comportamento desagradável. (imagem ao lado, a mãe de Giuseppe ao piano, segundos antes de pegar Joe no colo. Ele chora, sua mãe dança com Giuseppe e ele fica sozinho. A imagem acima mostra Joe já embolado no fio de lã)



Como a lembrança de infância de Bertolucci, o sonho de Douglas continua um mistério. “Nesta seqüência [do filme] todos são desagradáveis enganadores: Douglas por atrair e afastar Joe. [Ele] por tentar tomar o lugar de Douglas ao lado de Caterina (‘Eu posso fazer melhor’). E Caterina por fingir estar interessada no sonho de seu marido e na saúde de seu filho, mas na realidade pensar exclusivamente em si mesma” (7). (imagem ao lado, os peixes que Giuseppe trouxe e que vai estripar. Na imagem abaixo, Joe olha atentamente o pai enquanto remove as entranhas do peixe e depois dança com sua mãe. Joe começa a chorar)


Édipo, Pé Grande

Laços de incomunicabilidade ligam os momentos enigmáticos da seqüência na mesa de refeição. Um prelúdio ao mito grego, mas aqui Édipo não mata o marido de sua mãe. Entretanto, Joe desperta a hostilidade de Douglas e a indiferença de Giuseppe (seu pai real, que nunca fez contato). Bertolucci re-encena a tragédia de Sófocles (Édipo Rei). Quando Joe chega à escola em Roma, onde Giuseppe dá uma aula de arte em que os alunos devem pintar um céu, um dos alunos chama Joe de piedone (pé grande em italiano). Em seguida é o próprio Giuseppe que chama Joe de piedone quando o convida para pintar.



Como Édipo, em grego, significa “pés inchados”, as implicações são evidentes. No funeral de Douglas, Joe está de tênis, em contraste com sua roupa formal. A câmera focaliza seus pés quando ele pisa na governanta para que ela pare de chorar. O tênis de Joe, enquanto ele anda, serpenteia ou dança parecem particularmente surrados, eles dão uma idéia de trabalho duro e fadiga, como se os pés que os gastaram tivessem lutado uma batalha para se libertar do cativeiro. (imagem ao lado, esta lua, esta montanha e esta estrada, elementos fortes na vida de Joe. Foi ali que Joe confundiu a lua com o rosto da mãe)



Aceitando o convite de Giuseppe, Joe pinta uma lua com três olhos. A ilustração lembra a cena inicial de La Luna, onde a lua como um grande olho, vigia acima de uma montanha (imagem ao lado, parece que ela segue/persegue Joe durante todo o filme). Esta imagem lembra a Claretta Tonetti o mito de Endymion, contado por Theocritus: “Endymion o pastor/Guarda seu rebanho/Ela, a Lua, Selena/O viu, o amou, o procurou/Vinda do céu/A uma clareira em Latmus/O beijou, deitou-se a seu lado”. Este mito tem algumas variantes, mas um núcleo que se mantém afirma um amor impossível:



“Ele nunca acordou para ver a forma prateada brilhante curvando-se sobre ele. Em todas as estórias sobre [Endymion] ele dorme para sempre, imortal, mas nunca consciente. Fantasticamente maravilhoso ele repousa na montanha [Latmus], imóvel e distante como se estivesse morto. Mas vivo e quente. E noite após noite a Lua o visita e o cobre com seus beijos” (8). A natureza particular desse amor deve continuar escondida, longe dos olhares. Selena (a lua, que simboliza Caterina e, consequentemente, a lembrança escondida da cena primal ou primordial) chamará Joe de vez em quando, que irá a seu encontro.



Como na cena em que ele está no cinema com sua amiga Arianna. Quando eles estão quase fazendo sexo, o teto do cinema se abre (estratégia comum na Itália antes do ar condicionado) (9) e a lua aparece (imagem acima, à direita). Joe olha fixamente para a lua e diz a Arianna que tem de ir embora. Dessa resposta inconsciente surge o impulso que leva Joe à heroína, numa resposta hostil a sua mãe. Durante a festa de aniversário de Joe, ele fica com raiva ai ver sua mãe dançando e se divertindo. Uma cena quase idêntica à seqüência inicial do filme, quando vimos Caterina largar o bebê Joe para ir dançar com Giuseppe. Neste momento, Joe começa a chorar e atravessa o pátio com alguns fios de lá enrolados em seus pés.

Homenagens e Citações: Pasolini e Visconti 

Bertolucci queria homenagear seu mentor, Pier Paolo Pasolini, em La Luna. Inicialmente, pensou-se em colocar Joe no meio do funeral do poeta. Bertolucci estaria entre os que carregam o caixão e Sergio Citti, que havia dividido a autoria do roteiro de A Morte (La Commare Seca, 1962) com Bertolucci, colocaria o emblema oficial do Roma (o time de futebol) no ataúde de Pasolini. Esta cena foi substituída. Num bar, Joe assiste ao funeral pela televisão. No final o que sobrou da seqüência mostra Joe no bar aceitando um sorvete oferecido por um homossexual e depois dançando com ele de rosto colado.



O homossexual é interpretado por Franco Citti (irmão de Sergio), que atuara em vários filmes de Pasolini: como Vittorio em Accattone (1961), Carmine em Mamma Roma (1962), Édipo em Édipo Rei (1967) (imagem ao lado), um canibal em Pocilga (Porcile, 1969), Ciapelletto em Decameron (Il Decameron, 1971), o demônio em Contos de Canterbury (I Racconti di Canterbury, 1972), novamente o demônio em As Mil e Uma Noites (Il Fiore delle Mille e Une Notte, 1974). E assim, “pé grande” encontra “Édipo” num bar em Roma. Uma cidade agora sem tradição, suspensa por fios invisíveis, em algum ponto entre o sul da Itália e o norte da África.



Daí os muitos coqueiros, símbolos fálicos, jardins, terraços escondidos e pirâmides nos panoramas de Bertolucci. Esse clima oriental leva Joe a buscar o amor dos pais mais ao sul, sob o brilho do sol. Em seu Édipo Rei, Pasolini preferiu o Marrocos à Grécia – berço original da “Tragédia Grega”. Para joe, Roma também é uma terra de exílio, ele não parece interessado em fazer nenhum esforço para aprender italiano. Longe de sua terra, Nova York, e distante de Roma, Joe acaba encontrando a heroína nas mãos de Mustafá (10).


Caterina também está buscando, mas ela está olhando mais para o norte, para a cidade italiana de Parma. Ela procura uma resposta para os últimos acontecimentos de sua vida: numa questão de horas, descobriu o vício de seu filho, teve uma violenta briga física com ele, e depois fizeram sexo. Em Parma, ela reencontra um velho professor de música que mau a reconhece agora (imagem ao lado). Com essa seqüência do professor, Bertolucci homenageia Luchino Visconti. No close das mãos do velho professor, Bertolucci recorda a cena inicial de O Inocente (L'Innocente, 1976), filme dirigido por Visconti, em cuja cena ele filma as próprias mãos (imagem abaixo, folheando o livro).



“Quando Caterina reencontra Joe após a visita, ela o beija como uma amante o faria. Em seguida, ela pede a atenção sexual dele de forma bastante explícita. A sedução de seu filho não parece deixá-la com remorsos. Esta é, verdadeiramente, uma Jocasta sem arrependimento, cujos pecados são facetas de seu completo ensimesmamento. Apenas uma vez ela inspira simpatia, quando em frente à Villa Verdi ela fala entusiasticamente a respeito do grande músico compondo música imortal naqueles quartos e pergunta a Joe se ele está interessado em ver o local. A resposta [indiferente] de Joe machuca Caterina. ‘Esta é minha vida’, ela responde, ‘estas são minhas raízes; você não se importa com nada’”. (11)

Enquanto Caterina tem um pai (Verdi), Joe perdeu o seu e perdeu até aquele que o adotou (12). É quando Caterina leva Joe até a escola onde Giuseppe trabalha. Joe desenha a lua com três olhos e segue o professor até sua casa. Na presença da mãe de Giuseppe, Joe comunica a ele que seu filho morreu de overdose.




Elementos Autobiográficos, Pais e Mães

Já se falou da seqüência inicial, com a lua atrás do rosto de Caterina. Na cópia que saiu no Brasil, a lua pode ser vista bem no topo da imagem, quase fora do quadro. Não tenho elementos para afirmar se está foi a intenção original de Bertolucci ou uma limitação da cópia distribuída entre nós (imagem no início do artigo) (13). O que temos mais claramente é a alternância entre o rosto de Caterina e a lua, cada uma aparecendo independentemente em seqüência. (imagem ao lado, Porta Ostiense, antigo Portão de São Paolo, nas muralhas de Aurélio em Roma. Em primeiro plano, a pirâmide de Gaius Cestius, datando de 12 d.C.)



A segunda referência autobiográfica é a visita de Caterina à casa do velho professor em Parma. Em seu Édipo Rei, Pasolini também havia criado seqüências autobiográficas, ele chegou a fazer Silvana Mangano, que interpretava Jocasta, usar um vestido da própria mãe dele. (imagens abaixo, à direita, com a chegada de Joe, a mãe de Giuseppe enrosca os pés nos fios de lã; à esquerda, Joe olha para os novelos de lã que estão na sua vida, e do lado de sua avó, desde o começo)


Em La Luna, Caterina não está sozinha no posto, a mãe de Giuseppe (embora apareça pouco) é como uma grande sombra nas vidas de todos. De acordo com Caterina, foi por causa da mãe que Giuseppe não assumiu a nova família (deixando Joe sem pai). Disse também que Giuseppe detestava a voz dela (uma cantora lírica), que era egoísta. De fato, quando Joe volta à casa na beira da praia em busca de seu pai e sai chorando, sua avó não parece preocupada. Muitas também são as figuras paternas: Douglas, Mustafá, o homossexual no bar, Billy Martin (do baseball de Nova York, que ninguém conhecia na Itália).



Segundo Bertolucci, “os passeios solitários de Joe pelas ruas de Roma são os momentos mais nítidos da busca dele pela figura paterna. Ele está procurando por alguém, e se ele fala sobre Billy Martin, é porque este homem representa uma das muitas figuras paternas”. As caminhadas de Joe levam a Giuseppe - como Cesare em Antes da Revolução, professor Quadri em O Conformista e Johnston em O Último Imperador (L’Ultimo Imperatore, 1987). E Giuseppe é um professor, o que, para Bertolucci é muito significativo. A fascinação de Bertolucci com esta profissão vem do caráter ambíguo dela segundo o cineasta.



É como ser pai e mãe sem realmente ser, é uma forma sublimada de parentesco. Giuseppe, que recusou assumir a paternidade de seu próprio filho, é encontrado pelo filho em sua tarefa de “pai adotivo” de 50 crianças. Bertolucci conclui que, “para Joe, essa imagem é angustiante: o garoto certamente experimentou uma violenta crise de ciúmes e sentiu hostilidade e raiva contra seu pai” (14). Sua resposta foi desenhar uma lua com três olhos e uma boca (imagem ao lado). A voz é de Joe (boca), os pontos de vista são dele, de Caterina e de Giuseppe (três olhos). A busca de Joe começa no sol e termina com uma lua tripla.



Agora Joe deixa claro que compreendeu que Giuseppe é seu pai. Além disso, ele se apossa tanto da mulher de Giuseppe (sua mãe Caterina) quanto da profissão de seu pai (professor) (na imagem ao lado, Caterina consola Joe embaixo do palco nas Termas de Caracalla, ele voltou em lágrimas do encontro que teve com seu verdadeiro pai na velha casa da praia onde tudo começou. Mas logo Giuseppe chegará ao ensaio também). Bertolucci resume afirmando que “Joe se torna o diretor da situação na qual ele se encontra. Enquanto escritor de roteiros, ele inventa que Joe morreu de overdose”. Tonetti conclui também:



“Contando mentiras e inventando sua própria morte, Joe pune Giuseppe e comete um suicídio sublimado que é o resultado de uma overdose de leite maternal. Joe também está dirigindo a reunião entre seu pai e sua mãe nas Termas de Caracalla, onde Caterina está ensaiando O Baile de Máscaras, de Verdi. O ciclo agora está se fechando, e os fios são ligados pela criança que chorou de medo quando viu seus pais dançando twist [na cena inicial], e que agora observa com satisfação a angústia de seu pai pela ‘morte’ de sua criança se transformar em raiva quando Caterina comenta que o filho dele está vivo e sentado em frente ao palco [a seu lado]. Por enquanto, a reunião de Caterina e Giuseppe diante dos olhos de Joe repete a cena primal. Quando Giuseppe dá um tapa na cara de Joe, a dor origina prazer, dando um sentimento de alívio e liberando a paz para os dois” (15).

Ao Prazer e Além
Em Além do Princípio do Prazer (1920), Sigmund Freud falou de uma criança brincando com um objeto amarrado num barbante. O jogo consistia em esconder o objeto, simulando sua perda, e em seguida puxar o barbante para reaparecer. A criança jogava objetos para longe, então saia para procurá-los. Segundo Bertolucci, o movimento de vai e vêm da câmera em La Luna reproduz essa situação. Quando ela vai para frente, expressa o movimento de aproximação do objeto do desejo e vice-versa. Da mesma forma, o conteúdo do filme também representaria o padrão repetitivo de se aproximar e afastar (16).



“Eu tenho que ir, tenho que ir”, é o que Joe diz a Arianna quando estão quase transando no cinema e a lua aparece quando o teto se abre. Da mesma forma, sua expressão é distante quando, dançando com o homossexual no bar, ele diz que está procurando alguém que não consegue encontrar. Acontece também depois de começar a transar a mãe. Joe se afasta e diz que ela não o ama, correndo para a heroína no quarto. Caterina também segue o padrão largar/pegar quando leva Joe para a escola onde Giuseppe está. Mas os dois voltam para ela no ensaio da ópera: agora os três olhos da lua focalizam a mesma realidade.



Nas Termas de Caracalla (imagem ao lado), durante o ensaio de O Baile de Máscaras, a arte imita a vida. A ópera encenada explica a cena que está acontecendo na platéia (entre Joe e Giuseppe) (17). Joe finalmente descobriu seu verdadeiro pai, mas embora seus pais não venham a se reunir (já que Giuseppe ama mais a própria mãe do que Caterina), as palavras cantadas por ela no palco (“ele está morrendo”) nos informam que Joe se tornou um adulto e que a criança morreu dentro dele. Giuseppe dá um tapa na cara de Joe, enquanto o cantor que contracena com Caterina canta “lasciatelo” (deixe-o) no palco.



Arianna, que está logo atrás de Giuseppe e Joe, olha para os dois e para o palco, como se estivesse percebendo a ligação entre a arte e a vida. O final do dia e do ensaio vão chegando, a lua sobe alta sobre as Termas.


Leia também:

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz
Pasolini na Periferia da Lua
Fellini no Mundo da Lua

Notas:

1. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The Cinema of Ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 174.
2. Idem, p. 171.
3. Normalmente, a partir do momento em que os filmes citados foram lançados no Brasil, coloco o título em português, seguido do título no idioma original entre parênteses. Neste caso, a inversão se deve ao fato de La Luna ter sido lançado em dvd no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo com seu título original.
4. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., p. 172.
5. Idem, p. 175.
6. Ibidem, p. 176.
7. Ibidem, p. 177.
8. Ibidem, p. 178. Infelizmente, para aqueles que não compreendem minimamente o idioma italiano, no dvd (lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo, 2006) as legendas em português dizem que são dois olhos...
9. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 315.
10. TONETTI, Claretta M. Op. Cit, p. 180.
11. Idem, p. 181.
12. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., p. 316.
13. Lançada pela Versátil Home Vídeo, em 2006.
14. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit, p. 183.
15. Idem, p. 184.
16. Ibidem, p. 185.
17. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., p. 317. 


11 de dez. de 2008

Fellini no Mundo da Lua


“O  dilema  moderno  é  a  solidão.  Nenhuma  celebração  pública
ou sinfonia política pode esperar libertar-se. Apenas através dos
indivíduos  ela  pode ser quebrada,  pode uma mensagem ser
passada, fazendo-os compreender a profunda ligação que
une uma pessoa a outra. Foi o que tentei expressar em
meu último filme, A Voz da Lua, e o que tentei dizer
em  A Estrada da Vida  há  tantos  anos  (...)(1)


A Voz da Lua


Ivo Salvini, recém saído de uma internação em hospital psiquiátrico, escuta uma voz e se convence que ela vem da lua. Conhece Gonnella e saem caminhando pela Emilia-Romagna, região da infância de Fellini. Os dois acabam descobrindo uma anomalia social que mistura Fascismo, comerciais de tv, concursos de beleza, Michael Jackson, catolicismo e rituais pagãos.


Ivo está apaixonado por Aldina Ferruzzi, mas ela não quer nada com ele. Ivo procura segui-la no desfile que irá escolher a Miss Farinha 1989, que ela ganha. Dali ele segue com seu amigo Gonnella até um campo de fazenda onde mulheres negras cantam sob o luar. Uma noite, quando ele vai ao quarto dela para poder vê-la de perto, ela acorda assustada e joga um dos sapatos nele. Então Ivo corre e passa a carregar o sapato na cintura.



Ivo confunde Aldina com a lua, que lembra também Marisa, um antigo e risonho amor. Ivo conhece alguns outros lunáticos. Um oboísta que vive no cemitério, outro que gosta de meditar no telhado e Gonnella, um ex-prefeito que acredita que o mundo que vemos é apenas uma ilusão visual, parte de uma grande conspiração. Quando os dois chegam numa discoteca, Ivo descobre que o sapato de Aldina serve em outras mulheres.



Perto do final do filme, a lua é capturada pelos irmãos Micheluzzi. Seria uma brincadeira de Fellini com Rocco e Seus Irmãos (Rocco e i Suoi Fratelli, 1960), dirigido por Luchino Visconti? Um deles chora, enquanto o outro, que tem um ar bufão, tenta explicar como conseguiram prendê-la num estábulo. Assistimos se formar um circo midiático bem ao estilo daquele montado pela imprensa na seqüência do milagre da aparição da santa em A Doce Vida.



Desta vez temos grandes telões rodeando a praça da cidade. O apresentador/repórter lembra ao povo presente na praça e nas televisões que assistem de longe que o homem foi à lua, mas ninguém imaginava que ela poderia vir a nós. Através de outra transmissão de televisão, podemos ver que a lua esta amarrada firmemente ao chão. Muita gente em volta olha a coisa com uma mistura de medo e incredulidade. Alguns choram, outros rezam.



Na praça, várias autoridades da política, da Igreja e da ciência discutem a questão. Todos têm seus rostos projetados nas grandes telas, e o show acaba virando propaganda oficial. O padre afirma que a lua não tem nada para revelar. “Para nós”, ele diz talvez se referindo aos católicos, "tudo já foi revelado". Vem o tumulto quando alguém pergunta por que está ali - como as perguntas que não fazemos, hipnotizados em frente de nossas televisões.


Fellini e Sua Lua


“Os   jovens   assistem   televisão   24   horas   por   dia,   não   lêem 
e raramente escutam. Esse incessante bombardeio de imagens 
desenvolveu  uma  condição  de  hipertrofia  do  olho  que
os  está  transformando  numa  raça  de  mutantes (...)

Federico Fellini
I’m a Born Liar (2)


Fellini sempre se sentiu diferente. Achou que acabaria ou louco ou seria um cineasta. O luxo de ser um cineasta, dizia, é que você pode dar vida a suas fantasias. Para ele, nossos sonhos são nossa vida real. Quando o chamavam de louco, Fellini lembrava que a loucura é uma anormalidade. Isso para ele não era um insulto. Segundo seu ponto de vista, os loucos são indivíduos, cada um com sua obsessão individual, e a sanidade é apreender a tolerar o intolerável, seguir sem gritar. Fellini visitou alguns asilos psiquiátricos, um lugar que o fascinava. Lá ele afirmou haver encontrado uma espécie de individualidade na insanidade, algo raro no assim chamado mundo “normal”. Segundo Fellini, “a conformidade coletiva a que chamamos sanidade desencoraja a individualidade” (3).


Desde A Estrada da Vida (La Strada, 1954) Fellini não fazia um filme sobre a insanidade. É que o cineasta começou a pesquisar o tema, e tudo ficou muito real. Ele se interessava pela excentricidade do “maluco beleza”. Mas Fellini não conseguiu encontrar isso no mundo real da insanidade. Encontrou apenas pessoas infelizes com seus pesadelos, prisioneiros atormentados por suas próprias mentes, prisão pior do que as paredes que os confinavam.



Mas o que realmente o fez parar sua pesquisa foi uma garotinha que ele conheceu no manicômio. Era cega, surda e tinha síndrome de Down. Mas ela reagiu ao toque de Fellini, ela gemia como um cachorrinho, nitidamente ela queria atenção, calor, humanidade. No momento que a abraçou se lembrou do filho de Giulietta Masina, sua esposa, que nasceu morto. Fellini não procurou saber dela no futuro, porque ele achava que sabia a resposta.



De certa forma, Fellini comparou A Voz da Lua (La Voce della Luna, 1990) a essa menininha quando disse que ninguém mais ama esse filme, portanto ele precisa do amor do cineasta (4). Seja como for, sugeriu Fellini, mesmo a fantasia deve ser captada a partir da observação da vida real. Para Fellini não é necessário ser um lunático para mostrar um em A Voz da Lua, mas achava também que ser cineasta maluco pode ser uma vantagem (5).



O filme é uma adaptação livre do Poema dos Lunáticos (Il Poema dei Lunatici, 1985), de Ermanno Cavazzoni. Embora o próprio Fellini tenha dito que não faz sentido algo concebido para ser escrito ser adaptado para cinema, ele o fez. Sua estratégia foi adaptar o filme ao romance e não o contrário, aplicando os meios de expressão cinematográficos aos elementos básicos do enredo e as necessidades dos personagens.



O ponto de vista do filme é o de um lunático que acabou de sair de um hospital psiquiátrico, ele é maluco num sentido romântico, e enxerga o mundo por um ponto de vista diferente dos outros. Fellini chegou a dizer que era maluco nesse sentido, ele se identificava com Ivo. Fellini explicou também que não queria deixar muito óbvio que fosse sua a visão poética e distorcida que Ivo tem do mundo. Em A Luz da Lua, o espectador decide quem é são e quem não é.



Peter Bondanella lista várias correspondências entre os personagens de outros filmes de Fellini e A Voz da Lua. Giudizio, o maluco da cidade em Os Boas Vidas e Amarcord (1973), ou o maluco Tio Teo também de Amarcord. Ou ainda Gelsomina, de A Estrada da Vida (6). Fellini admite semelhança entre Marisa e Gradisca (Amarcord), ou talvez Ivo e Gelsomina. Mas a resposta dele para as correspondências entre personagens é: não (7).



A seqüência do sapato de salto alto, que logo nos traz à lembrança a estória da Cinderela, entristece Fellini. Durante a passagem de Ivo e Gonnella pela discoteca, uma mulher consegue colocar o sapato que Ivo traz na cintura – o sapato é de Aldina, a mulher que ele procura reencontrar. Ivo descobre então que o sapato serve também em outras mulheres, ele parece muito feliz com isso. Segundo Fellini, é o nascimento do cinismo e a morte do romantismo.



Ivo não mais terá esperança novamente, não mais terá confiança total de novo. Sempre haverá vozes em sua cabeça fazendo aquelas pequenas perguntas irritantes que os românticos não fazem. Para Fellini, a própria existência do conceito de “perguntas” indica a morte do espírito romântico.

A Itália de Fellini


“Federico  deu  a  nós  os  mais  significantes  traços de  nossa  história 
nos últimos vinte anos. Ele declara que não está preocupado com 
política [...]. Mas ele está. Ele é, no final das contas, o mais  
político e sociológico de nossos autores” (8)

Lina Wertmüller cineasta italiana,
contemporânea de Fellini


Embora Fellini não acreditasse em filmes políticos e dissesse que não existe nada pior do que um filme político ruim, na opinião de Bondanella o cineasta tinha uma visão muito mais aguçada que a maioria dos comentaristas políticos italianos em relação a seu país seria capaz de elaborar. Nos anos 50 do século 20, os críticos de esquerda estavam hipnotizados pelas análises cinematográficas materialistas da sociedade italiana feitas pelos neo-realistas. Tudo que eles pareciam enxergar era a pobreza material da Itália nas telas. É fato que ela era real, mas os críticos de esquerda não pareciam capazes de ver através dela.

Paralelamente, Fellini sublinhava as raízes da cultura popular italiana no teatro de variedades, revistas de fotonovelas e a vida interiorana em Mulheres e Luzes (Luci Del Varietà, 1950), Abismo de Um Sonho (Lo Sceicco Bianco, 1952) e Os Boas Vidas, os filmes que formam sua Trilogia do Caráter. Em seguida, o cineasta aprofunda uma crítica de seu tempo com A Estrada da Vida, A Trapaça (Il Bidone, 1955) e Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957), os filmes que formam sua Trilogia da Pobreza Espiritual (9).

Na primeira trilogia, encontramos um sabor neo-realista. Na segunda, temos uma abordagem menos materialista (no sentido da esquerda), focando em problemas existenciais de pessoas alienadas, além de questionamentos religiosos (10). Com A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960), praticamente antecipa a cultura controlada pela mídia antes que ela existisse – e que agora domina todo o planeta. Em Ginger e Fred (1986), mostra os perigos de uma cultura dependente da televisão. Em A Voz da Lua, seu último filme, Fellini nos apresenta uma imagem perturbadora da Itália contemporânea que infelizmente, com o passar do tempo, parece uma avaliação mais e mais realista do lugar da imaginação artística na cultura italiana.

É Necessário Silêncio



(...) Eu penso que a televisão traiu o sentido do discurso democrático, adicionando  caos  visual  à  confusão  de  vozes.  Qual  é
a  função  do  silêncio  em  todo  esse  barulho?  (...)

Federico Fellini
I’m a Born Liar (11)


Quando Gonnella afirma é um engano acreditar que as coisas e pessoas existem apenas porque as vemos, e que tudo não passa de ilusão, Fellini acaba nos remetendo ao nosso mundo. Ivo e Gonnella já viviam, antes de nós, num mundo dominado pela mídia de massa. (na imagem acima, a lua, devidamente amarrada, "ilumina" o telão atrás das autoridades, que transformaram tudo num grande espetáculo midiático)


Na opinião de Fellini, a mídia de massa só é capaz de veicular uma irritante estática (como quando a tv está fora do ar no começo do filme, durante o strip tease) ou comerciais vulgares. Não há informação real e comunicação autêntica (que o cineasta acha crucial para um cinema de autor). A imagem da Itália contemporânea em A Voz da Lua é de barulho discordante e cacofonia, em contraste com a voz mais serena que Ivo escuta.



Bondanella afirma que, desde seu primeiro até seu último filme, Fellini manteve a crença de que os mentalmente perturbados ou pelo menos mentalmente “diferentes” possuem uma capacidade humana especial para empatia e compreensão. (imagens acima e abaixo, todos olham incrédulos para a lua amarrada enquanto suas imagens são transmitidas em tempo real para os telões e dos telões para as tv's)


A Voz da Lua também mostra com preocupação como a cultura popular na Itália moderna (ainda um país rural, dominado pela igreja, família e relações pessoais em pequenas comunidades) se tornou um reflexo da comunidade globalizada da cultura da mídia de massas, perdendo as qualidades de criação artística, relações interpessoais e comunicação humana autêntica que gerações de visitantes elogiaram e admiraram.



As vozes que o “anormal” Ivo escuta, e que não são percebidas pelos “normais”, constituem uma metáfora poética para as mensagens que Fellini acredita que todos nós recebemos do fundo de nossas psiques. Esses fenômenos inconscientes ou subconscientes sempre representaram, para Fellini, tanto a fonte da inspiração artística quanto a existência autêntica. Em A Voz da Lua, uma discoteca barulhenta e um mundo visual recheado por comerciais de tv serve como símbolos evidentes da incapacidade humana para escutar as vozes interiores. Numa gigantesca discoteca, cheia de jovens dançando ao som de Michael Jackson (12) num volume ensurdecedor, apenas Ivo e Gonnella conseguem ouvir as mensagens reais ou de uma comunicação autêntica não mediada pela televisão.


Até mesmo quando Ivo conversa com a lua, que ele identifica com sua amada Andina, Fellini nos faz sair do transe e pensar. Nessa seqüência, vemos um rosto de mulher na lua. Ela pára de falar de repente, pede licença porque esqueceu algo importante, tosse para limpar a garganta e grita: “publicidaaaaaaaddeeeee!” (ao lado). Ivo e Gonnella vivem num mundo onde até a lua é explorada pela mídia de massa para vender bens de consumo.



Um filme cheio de belas imagens, que não esconde sua fria mensagem, eis A Voz da Lua. Na seqüência final, com a lua cheia alta no céu, Ivo comenta (mais para nós espectadores do que para si): “Mesmo assim, eu acredito que se houver um pouco mais de silêncio, se todos nós ficássemos um pouco mais quietos... talvez então pudéssemos compreender” (13).


Leia também:

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
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Antonioni e o Grito Primal
A Classe Operária Vai ao Paraíso

Notas:

1. Comentário de Fellini In PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003. P. 139.
2. Idem, p. 145.
3. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995. Pp. 58-9.
4. Idem, p. 105.
5. Ibidem, pp. 172-3.
6. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 428.
7. CHANDLER, Charlotte. Op. Cit., p. 247.
8. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. P. 118.
9. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. Op. Cit., p. 427. Em 2002, portanto muito tempo depois, Bondanella lançaria um livro sobre Fellini, The Films of Federico Fellini (Cambridge University Press). Desta vez, ao referir-se ao que ele havia chamado de Trilogia da Pobreza Espiritual, Bondanella utiliza a expressão Trilogia da Salvação ou da Graça. Acreditamos que seja necessário este esclarecimento para evitar confusão, já que o próprio autor utilizou duas formas diferentes para classificar os mesmos filmes. Além disso, de posse do livro Italian Cinema. From Neorealism to the Present, um usuário menos atento aos detalhes bibliográficos pode não perceber que se trata de uma 3ª edição, lançada em 2008, de um livro originalmente lançado em 1983.
10. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present, op. cit., p. 427; The Films of Federico Fellini, op. cit., pp. 18-26.
11. PETTIGREW, Damian. Op. Cit., pp. 145-6.
12. Infelizmente, Bondanella foi apanhado por sua própria inadequação aos novos tempos e acreditou que os dj’s que estavam tocando o disco de Michael Jackson eram uma banda de rock – é assim que ele descreve a cena. Aliás, Bondanella nem sabe que era Michael Jackson cantando. Vamos dar a ele o benefício da dúvida, talvez não saiba disso porque NÃO VIU O FILME. Ou talvez, equívoco bastante comum entre aqueles que APENAS consultam os roteiros dos filmes que comentam, Bondanella acredite que TUDO que está no roteiro foi gravado no filme. A única receita para não cometer certos erros que podem fazer rolar morro abaixo toda a credibilidade de uma análise é ASSISTIR aos filmes que se comenta ou critica.
13. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present, op. cit., p. 429.