21 de jun. de 2008

As Mulheres de Federico Fellini (III)

Saraghina



“Você   não  sabe   que  a Saraghina é o demônio?”


A Mulher-Sardinha da Vida de Um Homem

Em Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963) somos apresentados a esta mulher de aspecto ameaçador e monstruoso, mas que mesmo assim fará parte do harém imaginário de Guido/Marcello Mastroianni/Fellini. Guido quer mandar uma de suas mulheres para um lugar separado, onde ficam as que já envelheceram (ele diz que “o regulamento é o regulamento”: quem passar do limite de idade irá para os andares superiores). É uma corista, Jaqueline Bombon. Ela afirma que não é seu lugar, pois tem ainda 26 anos. Procura então mostrar que ainda pode entretê-lo, mas é inútil.




As mulheres começam a protestar, até que Saraghina vira-se em sua direção afirmando: “Isso não é justo, Isso não é justo!”. Segue-se a revolta, Guido pega o chicote e vai procurar restabelecer o controle. Muitas gostam de levar chicotada. Mas outras mulheres, como a própria Saraghina, reagem como felinas num espetáculo de circo (rugindo para seu domador, mas por fim obedecendo). Esta é a mulher da qual vamos falar, Saraghina reage contra Guido, mas apenas para em seguida submeter-se. Ainda assim, seu comportamento lembra aquele típico felino que nunca está realmente submisso aos donos (mesmo quando pensamos que os domesticamos com comida enlatada). Uma felina com nome de peixe...

Uma Praia, Uma Vida



Em Rimini, cidade natal de Fellini, os pescadores pagavam os serviços desta mulher permitindo que ela recolhesse sardinhas minúsculas que sobravam da pesca no fundo de seus barcos. No dialeto da região, o peixe se chamava “saraghine”. Então o apelido pegou: Saraghina (1). Ela era uma mulher grande, com uma espécie de monte de cabelo no alto da cabeça, onde também encontramos algas enroscadas formando uma espécie de juba no alto daquela figura estranha que podia dar prazer em troca de alguns trocados, ou alguns peixes, ou alguns botões dourados dos uniformes dos adolescentes do colégio de padres.

Na praia encontramos uma velha casamata de concreto do tempo da guerra. Alguns meninos correm para lá, Guido e seus colegas de escola. Um deles estende a mão com dinheiro e chama: “Saraghina! Saraghina!”. Maravilhados e ao mesmo tempo amedrontados, esperam que algo de extraordinário para um bando de adolescentes inexperientes aconteça. De repente, daquela ruína que mais parece uma caverna, surge uma mulher gigantesca, branca e suja. Parece uma visão. Por alguns tostões ela vai dançar a rumba para quem gostar de assistir.

Na verdade, a dança de Saraghina começa momentos antes, quando Guido, cineasta em crise que nas termas encontra-se com um cardeal mandado em seu auxílio pelo produtor de um filme que ele não consegue realizar, percebe as pernas nuas de uma camponesa que passa (imagem ao lado). Essa conjunção entre um padre e uma perna de mulher dispara sua memória de infância onde mora Saraghina.

Como afirma Fellini, esta mulher representa uma primeira visão traumática do sexo na vida de Guido. Tinha um traseiro enorme. Quando ela se virava de frente, podia-se ver seu barrigão. Fellini disse que ela faz parte de sua adolescência, quando se podia pagar para ela se mostrar. E abaixo do barrigão, se perguntava o Fellini adolescente, o que seria todo aquele pêlo, um gato?(2)

Saraghina tinha, nas palavras de Fellini, uma cabeça de leão, olhos achinesados, uma boca muito grande que parecia de borracha e fazia caretas. Ela tinha um cheiro muito forte de peixe, misturado com as algas em seu cabelo e ao petróleo e alcatrão dos barcos de pesca. O pequeno Fellini havia também se dirigido à morada de Saraghina sozinho (entretanto, isso não aparece no filme, apenas em suas memórias de infância, arrancadas por algum entrevistador).




Fellini disse que, quando tinha uns oito anos, havia encontrado imagens do diabo no livro de ocultismo de um tio seu. Lá ele também reconheceu Saraghina, ela tinha um corpo de leopardo e um traseiro enorme, “vasto como o mundo”. Havia também uma coroa cintilante de pedras preciosas imitando olhos humanos. De qualquer forma, apareciam igualmente a mesma boca da Saraghina real, além dos mesmos olhos de dragão e a cabeleira desgrenhada, assim como as algas, que pareciam as cobras na cabeça de uma Medusa (3). (ao lado, esboço feito por Fellini; coloração invertida pelo autor). Apesar do medo que tal visão inspirou ao jovem Fellini naquela noite, tudo que ele queria agora era voltar à praia e falar com ela. Ele desejava ouvir sua voz. No dia seguinte, lá foi ele, Saraghina o reconheceu de outras visitas e lhe lançou um olhar parecido com o de sua mãe quando perdoava suas travessuras. Maravilhado, nos conta Fellini, ele percebe que ela foi bela. Então ele cumprimenta a mulher e ela começa a cantarolar uma rumba. Ela tinha, continua o cineasta, uma voz muito curiosa. Parecia uma criança cantando, uma voz muito pura, clara, terna e delicada. Nas palavras de Fellini, ele amou aquela mulher naquele instante (4).

Freud Explica



Saraghina, conta Fellini, era uma prostituta gigantesca (pelo menos aos olhos adolescentes). Ameaçadora, agressiva e violenta. Uma criatura gorda e majestosa em sua deselegância esfarrapada. Vestida como uma mendiga, com uns quarenta anos e cabelos desgrenhados. Entretanto, olhando com atenção suas formas animalescas, ainda se poderia perceber o resto de sua antiga beleza. Ansiosos após pagarem a mulher gigante para dançar, os meninos esperam enquanto ela olha para eles e para os lados em silêncio. Então ela começa a pular, rebolar e levantar a saia. De repente aparecem os padres do colégio de Guido. A debandada é geral, mas Guido é capturado e levado aos superiores do colégio de padres (Salesianos), onde também se encontra sua mãe, decepcionada (5). Lá ele escuta o veredicto de um padre: “Você não sabe que a Saraghina é o demônio?”

Apanhado pelos padres e punido severamente, o que inclui ajoelhar-se no milho. Peter Bondanella nos lembra como isso semeia na mente do adolescente Guido uma conexão entre mulher, sexualidade, vergonha e culpa. A partir daí, o menino divide as mulheres entre virgens e prostitutas. Ele se casa com o primeiro tipo (Luisa; com quem ele briga o tempo todo na vida real, mas que no harém é a mais submissa) e toma como amante o segundo (Carla). Para ele, sexo sempre será associado à transgressão, nunca a uma relação com uma pessoa livre e que ao mesmo seja objeto de desejo. A Igreja, personificada pelo Cardeal, é a instituição terrena que projeta tal perspectiva no interior de seus membros através da educação católica (6).

Fellini admite que frequentemente mostre em seus filmes alguma mulher de formas avantajadas, grande, poderosa. Saraghina, ele afirma, é uma representação infantil da mulher. Uma das tantas e tantas representações infantis possíveis. Ela é grande como a fome de um adolescente por sexo e vida. No caso, um adolescente italiano bloqueado e impedido pelos padres, pela igreja, pela família e pela educação falida. Mas a prostituta, sugere Fellini, é o contraponto essencial da mãe italiana. Não se pode conceber uma sem a outra. (ao lado, esboço feito por Fellini. Como no esboço anterior, caracterizando as grandes nádegas; coloração invertida pelo autor)

Guido enxerga Saraghina como um misto de prostituta e mãe. Na Itália, contou Fellini, existe uma verdadeira idolatria pela mãe. Mamães, mãezonas, grandes mães de todos os tipos: mãe virgem, mãe mártir, mamãe Roma, mãe-loba, mãe-pátria, mãe-igreja...




De fato, concluiria o cineasta, essa superabundância de maternidade significaria uma ausência de mãe. Então a indústria cria opções através de mães fetiches como pornografia.

Assim como nossa mãe nos alimentou e nos vestiu, continua Fellini, a puta nos iniciou na vida sexual. Segundo ele, todos nós homens estamos em débito com elas, mesmo que as experiências não tenham sido as melhores. Essa situação é que traz o fascínio em relação a elas. Imensas, inatingíveis, ingênuas, assim como nossas fantasias, das quais são ao mesmo tempo ladras e realizadoras (7).

Monstro Camarada 

 

O monstro ou, aquele que se mostra, tem lugar cativo no cinema de Fellini. Jean-Max Méjean sugere que homens e mulheres monstruosos aparecem muito no circo ou no cinema. Dois espaços que, percebemos no trabalho do cineasta, são o lugar do imaginário felliniano. Entretanto, é preciso reafirmar, não se trata de uma monstruosidade física. Trata-se da presença de personagens que se mostram inteiramente em sua originalidade. Méjean afirma que a monstruosidade em Fellini alcança muitas vezes a beleza. Pode ser um peixe encalhado no final de A Doce Vida (La Dolce Vita, 1959), a maquiagem de um homem vestido de mulher durante o carnaval em Os Boas Vidas (I Vitelloni, 1953), ou as mulheres fantasiadas de O Gordo e o Magro em Cidade das Mulheres (Città Delle Donne, 1980). Sem esquecer a monstruosidade edipiana que nasce da união entre o amor da mãe e a atração irracional em relação à prostituta. Seios enormes, bundonas, bocas que desejam ardentemente, tudo isso pode ser encontrado nas pinturas italianas do século 15.

Méjean segue em suas observações falando da hipertrofia mamária. Podemos percebê-la em muitas personagens de Fellini, sendo comum também na representação das deusas-mães nessas pinturas citadas anteriormente. A simbólica do leite está associada à outra. As gigantes são também várias na obra de Fellini. Lembremos da Anita Ekberg gigante de As Tentações do Doutor Antônio (Le Tentazioni del Dottore Antonio, 1962). Além da mulher gigante, outra obsessão de Fellini é a mulher gorda. Mais especificamente, a mulher de seios grandes, uma super-mãe, uma super-mulher. Seja a mulher da tabacaria em Amarcord (1973), seja Saraghina na praia deliciando adolescentes (8).

O relato do desfecho do encontro do Fellini adolescente com Saraghina nos mostra a mágica que envolve os personagens nos filmes do cineasta. Assim que o menino de oito anos elogiou aquela voz que cantava para ele, Saraghina se levantou rapidamente e mandou que ele fosse embora. Ela deu-lhe as costas antes que pudesse ver o menino cumprimentá-la com um gesto reverente. Sobre esse momento de sua vida (mas afinal quem sabe se é verdade!), Fellini confessa:

“Eu tinha, naquele dia, descoberto
o  pecado.  O  pecado  miraculoso.  Aquele  pelo
qual nós vivemos. Mas isso, eu não compreendi
senão  muitos  anos  mais  tarde”(9)


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Notas:

1. VILALLONGA, José-Luis de. Federico Fellini. Entretiens Avec José-Luis de Vilallonga. Paris: Michel Lafon Éditions, 1993. P. 59
2. FELLINI, Federico. Fazer Um Filme. Tradução Mônica Braga. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. P. 117.
3. Idem, p. 62.
4. Ibidem, p. 63.
5. CALIL, Carlos Augusto (org.). Fellini Visionário: A Doce Vida, 8 ½, Amarcord. Tradução dos roteiros Hildegard Feist, tradução das entrevistas André Carone, José Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Pp. 117-8.
6. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. Pp. 104-5.
7. FELLINI, Federico. Fazer Um Filme. Op. Cit., pp.118-9.
8. MÉJEAN, Jean-Max. Fellini, un Rêve, une Vie. Paris: Éditions du Cerf, 1997. Pp. 29-31.
9. VILALLONGA, José-Luis de. Op. Cit., p. 64. Jean-Luc Hening, em Breve História das Nádegas (Lisboa: Terramar, 1997 [1995]), cita este e outros trechos do livro de Vilallonga. Entretanto, termina sua referência a esta passagem do relato de Fellini dando uma conotação apenas carnal ao “pecado” de que nos fala o cineasta italiano. Fica evidente que Hening distorceu as coisas em seu favor, enfatizando o conteúdo lascivo desta palavra. Assim procedendo, não permitiu que os leitores percebessem o alcance poético das palavras de Fellini. 


18 de jun. de 2008

As Mulheres de Federico Fellini (II)


“Todas as mulheres são belas”

palavra de ordem das feministas
Cidade das Mulheres


Qual dos dois se escuta melhor, homem ou mulher? Ambos estão surdos? Conseguem realmente ouvir a si mesmos, ou escutam apenas seus fantasmas? Será que as mulheres querem mesmo deixar de ser apenas os objetos dos homens? Estariam as mulheres realmente quebrando, ou desejando quebrar, o espelho que às criou como reflexos da mente masculina? Nessas horas me lembro daquele ditado, “quando a pobreza entra pela porta, o amor sai pela janela”. Não estariam as “mulheres de Fellini” chamando atenção, tanto de mulheres quanto de homens, para algo mais que peitões, bundões, comportamento volúvel, medo, infantilidade e, dinheiro?


Comecemos pela sala de máquinas do transatlântico de E La Nave Va (1983). Numa cena memorável, a visita de ricos passageiros (cantores e cantoras de ópera) à fornalha da sala de máquinas, os trabalhadores-proletários pedem que a diva cante. Ela se mantém imóvel. Então, um dos tenores começa. Depois outro. Até que, aparentemente por questões egocêntricas, as cantoras os seguem. É aí que um dos cantores entoou aquele famoso trecho, La Donna e Mobile, da ópera Rigoletto, de Verdi: “A mulher é volúvel como pluma ao vento. Muda de humor e de opinião, e de opinião, e de opiniãooooooo!” Isso fez a diva disparar vários agudos, e entoaram todos juntos então (imagem acima). Repetir é sempre bom, talvez alguém acabe conseguindo escutar.


Em Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963), temos um homem e suas três mulheres, a esposa (com quem não se entende), a amante casada (a típica loura meio burra, meio superficial) e a mulher ideal (a inatingível personagem de Cláudia Cardinale; imagem ao lado), além de um harém (em seus delírios de dominação) onde as mulheres se revoltam contra seu senhor. Noutra cena memorável dos filmes de Fellini, a insurreição é controlada a chicotadas. Tratadas como um bando de animais, elas correm da arma que seu senhor empunha (que às vezes se deleitam com a dor causada).




Neste sonho/delírio de Guido, sua esposa é a mais submissa, preocupa-se apenas em lavar a roupa e o chão, limpar a mesa e preparar o café da manhã. Na vida real (quero dizer, no filme), Luisa briga e discute constantemente com Guido, que não a assume como esposa, mas também não assume a amante (casada). Guido, como Snàporaz em Cidade das Mulheres (La Cittá delle Donne, 1980), recolhe-se ao devaneio e ao ensimesmamento quando sua esposa põe-se a recriminá-lo. Após saltar de um trem atrás da mulher que o havia seduzido, Snàporaz chega numa convenção feminista, onde é desejado e julgado ao mesmo tempo. Lá as mulheres discutem as fórmulas machistas que os homens utilizam para subjugá-las, embora reproduzam o comportamento deles em relação à animalização do sexo oposto (1). Contrastando com a cena inicial do trem, onde Snàporaz passeia os olhos sobre o corpo de uma mulher, nomeando-o em silêncio, as feministas propõem novos nomes para a vagina.



Também apresentam o caso de uma senhora que possui um harém com sete maridos dóceis. Em certo momento, apresenta-se a dramatização da vida de uma dona-de-casa. A mulher desempenha três ou quatro tarefas ao mesmo tempo (imagem acima). O marido, quando finalmente aparece, é para sentar-se à mesa e comer. Ele, fantasiado de Frankenstein, após a refeição vai direto agarrar a mulher e manter relações sexuais (ao lado). A platéia urra em coro: Matrimônio! Manicômio! Matrimônio! Manicômio!

“Em resumo, La Cittá delle Donne parte de uma conflagração global e histórica entre universos de cultura. A polêmica entre os sexos confirma a prevalência de um quadro de luta de espécies sobre o de um hipotético fundamento humanista. O conflito, em seus vários níveis, põe-se predominantemente como guerra de linguagens, em que as facções mobilizam todos os recursos interpretativos para o confronto com a visão adversária. A atividade amorosa, em vez de apontar para uma unificação, põe-se como questão de poder. A sexualidade não antecede esse estado de guerra, mas se estrutura a partir dele. Constrói-se pelo e para o combate. Masculinidade e feminilidade não se põem como entes naturais, mas como estratégias e discursos de uma outra facção. Nessa perspectiva, nada é consenso ou fato natural” (2)



Como em 8 ½, o personagem de Marcello Mastroiani, Snàporaz, faz auto-análise a partir das mulheres de sua vida. Como os filmes que começam pelo sonho de alguém, Cidade das Mulheres faz do onírico seu mundo real. E com o que Snàporaz sonha? Com mulheres, é claro! E não só com as mulheres, mas com a voz delas também. Quando o Snàporaz vai ao museu Katzone, encontra uma vasta coleção das vozes das conquistas femininas do senhor Katzone (ao lado). São as vozes delas nas preliminares e no ato sexual com ele, acompanhadas pelas fotografias das mesmas. “Eu quero te comer”, algumas dizem, outras gemem de prazer, soltam grunhidos, chamam a mamãe, reivindicam seu orgasmo. Snàporaz se diverte como um menino ligando as vozes, uma por uma, todas juntas. De repente, Snàporaz encontra sua esposa (a mulher real). Segurando o botão que liga todas as vozes juntas, ela irá mostrar-lhe que não é ele o Senhor da Voz.

“E é, todavia, diz o roteiro, uma voz de mulher que escutamos, mas que não provém dessas centenas de fitas, não é uma gravação, é a voz de uma mulher real, viva, que ressoa nos ombros de Snàporaz, dura, irônica: ‘Você deseja escutá-las todas juntas, essas queridas senhoras? ’ E todas as fotos se iluminam, Transbordando seu magma sonoro; É a precipitação irresistível das vozes, e uma mulher é quem está no comando”. (3)

Em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960), existe também outro labirinto de imagens. De volta à Via Veneto, após resgatar seu pai de um mal sucedido encontro com uma vedete sua conhecida, Marcello encontra uma amiga. Nico aceita o convite que Marcello faz a si mesmo para ir à festa no castelo do noivo dela. Lá chegando, Marcello encontra Maddalena, uma milionária cansada de si mesma. Adentram uma sala cheia de quadros de retratos antigos de mulheres que leva a corredores tão labirínticos quanto o próprio conjunto de imagens de rostos. Seguem os corredores e estabelecem um diálogo à distância, dirigindo-se à presença fantasmática um do outro, já que apenas suas vozes se encontram - metáfora do distanciamento.




Marcello – Que belas mulheres! Todas têm os mesmos olhos.

Ele se vira e Maddalena cobriu a boca e o nariz com um lenço preto, à vista apenas os olhos. Marcello então completa a frase, “pensei frequentemente em você. Não a compreendo”.

Maddalena – Não? Nem eu. Mas não importa. (Responde retirando o lenço e cobrindo a cabeça com ele). – Se for um assunto sério, não quero ouvir. Esqueça. (…)
Marcello – Teme assuntos sérios então ?

Maddalena – Você não sabe mantê-los. Ou sabe?
Marcello – Aonde vamos?
Maddalena – Esta é a sala dos assuntos seios. Sente-se aqui.
Marcello – O que vamos fazer? Aonde vai?


Maddalena serpenteia pelos corredores cheios de retratos; vai a uma espécie de bebedouro, sob uma estátua de mulher, começa a falar; sua voz chega até Marcello.

Maddalena – Marcello, está me ouvindo? Já me ouviu tão perto?
Marcello – Onde você está? E você, me ouve? De onde fala?

Maddalena – De longe, muito longe. Como se eu já não existisse.
Marcello – Maddalena, Maddalena, Maddalena!
Maddalena – Sim, estou aqui. Não se mexa! Marcello, você se casaria comigo?
Marcello – E você?
Maddalena – Sim, estou apaixonada por você,
Marcello.
Marcello – Desde quando?
Maddalena – Ouça, sabe que ruído é este?
Marcello – Não sei, o que é?
Maddalena – Agora adivinhe.
Marcello – Um beijo?

Maddalena – Para você. Então, se casaria comigo? Está com medo de responder?
Marcello – Por que esta pergunta? Está um pouco bêbada, não?
Maddalena – É. Um pouco. Eu o amo, Marcello. Queria ser sua mulher Queria mulher e ser fiel. Queria ao mesmo tempo ser sua mulher e divertir-me feito prostituta.

Maddalena foi a primeira conquista de Marcello em A Doce Vida. Ele a conheceu num bar, enquanto ela morava no apartamento de uma prostituta. Parece que a fala de Maddalena surte efeito, Marcello começa a declarar seu amor e elogiar a amiga. Fellini fez de uma vida de encontros sexuais casuais a compensação possível para Marcello, já que ele não consegue se decidir por abandonar a frustrante profissão de jornalista de fofocas por uma carreira de escritor.


Marcello – Hoje, não sei por que, acho que gosto, preciso de você.
Maddalena – É mesmo?

Marcello – É verdade. Não sei se falava sério ou debochava. Não importa. Gosto de você. Queria ficar sempre com você.
Maddalena – Após um mês, me odiaria.

Marcello – Por que deveria?
Maddalena – Não dá para ter tudo, uma coisa ou outra. Já é tarde para escolher. Aliás, eu nunca escolhi. Sou uma vadia. Não tem saída. Serei sempre. Não quero mudar.
Marcello – Não é verdade. É uma moça fantástica, eu sei. Sua coragem. Sua sinceridade. Realmente pr
eciso de você. Seu desespero me dá força. Seria uma companheira a quem diria tudo, sabe? Maddalena está ouvindo? Responda!


Aqui ela permite que um homem comece a beijá-la, enquanto Marcello continua falando sozinho. “Pare com esta brincadeira. Volte, quero lhe falar. Maddalena! Maddalena!” Marcello sai a procurar, mas toma outro caminho no palácio labiríntico; sai por uma porta onde o convidam para caçar um fantasma, ele os segue.

“Maddalena está ouvindo? Responda!” Essa frase lembra bem a questão da surdez contemporânea que as pessoas acabam nutrindo em relação a si mesmas. A cena final de A Doce Vida traça uma perspectiva pessimista em relação à incomunicabilidade na sociedade moderna. Após uma orgia, todos vão à praia. Encontram um monstro marinho. Em seguida, Marcello vê ao longe uma menina (que já havia encontrado antes), ela o chama, mas ambos não conseguem fazer-se ouvir. Um monstro emborcado apodrecendo, como a busca da sociedade moderna pelo renascimento. Como o rinoceronte de La Nave Va, Fellini utilizou a natureza em estado de choque como metáfora para uma sociedade humana em crise. A menina que Marcello não consegue ouvir é a pureza perdida, vagando como um fantasma em sonhos-delírios, que precisa ser reencontrada.




Enquanto isso, Emma (acima), a ciumenta namorada de Marcello, já tentou suicídio. Certa vez, numa das brigas, ela sai do carro e manda que ele se vá. Marcello insiste que ela volte. Consegue convencê-la, apenas para que minutos mais tarde ele mesmo a expulse do carro e de sua vida. Mais tarde, retorna para onde a deixou. No dia seguinte, Marcello recebe um telefonema avisando sobre o suicídio de um amigo que ele considerava modelo de equilíbrio. Esse amigo não apenas se suicidou, antes mata os dois filhos, frutos de seu casamento supostamente feliz.

Na obra de Fellini, verifica-se uma vinculação do feminino com o autêntico e, inversamente, do masculino com o inautêntico. Num extremo está a mulher incorruptível e pura. Giulietta Masina é um exemplo disso. Outro exemplo é a menina-mulher de Agência Matrimonial (1953), tão absurdamente simplória e despreparada. Ou Luisa em Fellini 8 ½, esposa traída que não trai (ou não sabe trair, ou tem medo de trair). Essa dicotomia masculino/feminino alimenta uma guerra dos sexos onde a mulher está protegida das impurezas dos homens em função de seu comportamento correto, direto, sem dissimulação.

“O elo recorrente na filmografia [de Fellini] entre a representação feminina e o valor de autenticidade está presente em todas as personagens interpretadas por Giulietta Masina, desde Luci del Varietà [Mulheres e Luzes] (1950), passando por La Strada [A Estrada da Vida, 1954], Le Notti di Cabiria [Noites de Cabíria, 1957], Giulietta[Degli Spirit] [Julieta dos Espíritos, 1965] … E inclui também outras figuras femininas como a personagem do curta[-metragem] Agenzia Matrimoniale (1953), e, de modo marcante, Luisa, em Otto e Mezzo [Fellini 8 ½]. Esta dicotomia arquetípica é parodiada em Roma [Roma de Fellini, 1971], e vinculada ao neo-realismo, quando Anna Magnani, atriz símbolo do movimento, fecha a porta na cara do realizador e manda-o dormir, dizendo não confiar nele” (4)


Em Cidade das Mulheres, uma personagem é a mulher ideal de Snàporaz – ela que sempre ri quando o vê. Compreensiva, solicita e protetora, é Donatella. Entretanto, ela se caracteriza por um comportamento inconstante. Às vezes maternal, às vezes se divertindo ao vê-lo com problemas, Donatella representaria a subjetividade dele em ponto de ruptura. Ainda assim, ela dá a ele certeza de sua própria identidade. Donatella evoca várias outras mulheres de Fellini: Emma, Fanny e Sylvia (Anita Ekberg, a representação felliniana do eterno feminino) de A Doce Vida; Carla, a amante de Guido em Fellini 8 ½. Próximo ao final do filme, cordas caem do céu e Snàporaz embarca num balão-Donatella (acima a esquerda, ao lado a direita) ao som de uma canção de ninar – alusão ao berço é parte de uma série de elementos de um adulto infantilizado.

“A volta à infância revela-se logo provisória e frágil. O simulacro inflável de Donatella – sua mais cara e recorrente representação da feminilidade, a figura que atualiza de modo explícito o papel maternal – vai ser fulminada por tiros, desde a terra, por um outro vulto da mesma Donatella – a evidenciar a essência inelutavelmente contraditória dessas representações”.(…)”A dimensão gigantesca deste vulto feminino evoca ainda a figura do outdoor, encarnada por Anita Ekberg, em [As Tentações do Doutor Antônio (1962)], e que leva à loucura aquele outro duplo do espectador – então equiparado à figura do moralista e do fascista, em referência às inúmeras tentativas de censura, perpetradas contra [A Doce Vida]” (5)


A onírica cena do tobogã em Cidade das Mulheres mostra mais uma vez o caráter infantilizado de Snàporaz (ao lado). Em mais um de seus devaneios, desliza enquanto visualiza memórias. Em várias imagens que remetem a outros filmes de Fellini, acompanhamos o protagonista num culto de si, passeando por várias aventuras sexuais passadas. No final, cai direto na jaula que o levará ao tribunal feminista. Levado a uma arena, sobe a escada até um ringue, onde encontrará outra que o levará ao balão-berço-Donatella, onde será metralhado por outra Donatella. Ele cai-acorda no trem onde estava no início do filme.


Lá também se encontram sua esposa, a mulher que o seduziu e o atraiu para fora do trem, além de Donatella e outra vedete. Olham-se e sorriem umas para as outras. Inicialmente apreensivo, Snàporaz contenta-se com sua confusão.

Confuso entre as mulheres que está vendo acordado e as mulheres que viu sonhando, É incapaz de decidir. Tal situação leva-o a estabelecer o estranhamento da visibilidade: dissolve-se a idéia de transparência interna da experiência do visível. O visível é enigmático, plural, opaco. Tal constatação complica ainda mais a tentativa de Snàporaz para clarear sua própria opacidade interna, em oposição à crença de Guido (Fellini 8 ½) em sua própria unidade interna. Cai a perspectiva do sujeito transcendente, introduzindo o aprendizado da opacidade intrínseca a toda representação.

“A partir dessa demarcação, o sorriso de todas as figuras dentro da cabina [do trem] – de fato, um sorriso de Snàporaz na raiz de todas – pode ser reinterpretado, não só como senha interna do enredo, mas também como um novo olhar lançado pela personagem sobre sua própria condição. Logo, como uma aceno reflexivo para o público. Tal sorriso envolve, em vez da inimizade pelo que, sem ser imediato, foge ao entendimento, a estima pelo antitético ou pelo seu próprio fundo heterogêneo. Implica a aceitação distendida das formas plurais da heterogeneidade subjetiva, enfim, a auto-opacidade inata e irredutível.”(…)”A re-configuração da subjetividade, nesse sentido, supõe desprendimento e auto-ironia: a perda de si como ser imediato para si, e a assunção de si como outro. No estranhamento de si abre-se uma fenda sem termo, da qual se gera o diálogo com o outro, característico do estilo felliniano, e que atesta a pujança democrática dessa tensão”.(6)


 

Quando homens e mulheres se livrarem dos estereótipos de si mesmos, os clichês com que se acostumaram, talvez possam aí sim encontrar sua própria voz – e escutá-la. Se o conceito de mulher-feminino também está sendo questionado, talvez isso permita a reconstrução do ideal de mulher sob novos alicerces, mais próximos da realidade. Se o conceito de realidade também está em crise, talvez isso nos permita o questionamento a respeito daquilo que “realmente” esperamos ou devíamos dela esperar. Estamos condenados por nós mesmos à busca de um elemento que falta em nós, mas que nunca alcançaremos? Preferimos focalizar naquilo que nos falta. O problema não está em buscar para sempre, mas em buscar sempre uma falta em nós. Em seus filmes, talvez Fellini não estivesse dizendo que faltava encontrar a mulher. Cada filme seu constituiria sua própria fragmentação na continuidade da busca (sem fim) pela materialização dessa imagem do feminino (imagem acima, Cidade das Mulheres). Nas palavras de Fellini…

“…a sedução, no estado puro, parece que não se encontra no teatro ou em outras formas de arte. No cinema persiste uma contraditória realidade/irrealidade que se põe sempre a uma certa distância, embora se fazendo invasiva, satisfaz e junto deixa saudades; algo de perdido por reencontrar, algo que se subtrai, e que se persegue. O cinema, enquanto sedução irresistível, é algo feminino, na sua essência…”(7)


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Mussolini e a Sombra de Auschwitz

Notas:

1. MARTINS, Luiz Renato. Conflito e Interpretação em Fellini: Construção da Perspectiva do Público. SP: Edusp, 1993. P. 123.
2. Idem, p. 127. O grifo é meu.
3. [queste cari signori]. Utilizei a tradução da versão lançada em dvd pela Versátil Home Vídeo. Michel Chion, fonte da citação, traduziu para o francês “ces belles salopes”, ‘essas belas vagabundas’. CHION, M. La Voix au Cinema. Paris: Etoile/Cahiers du Cinema, 1982. Pp. 85-6.
4. MARTINS, Luiz Renato, Op. Cit. , p. 126, n.9.
5. Idem, pp. 128, 147 e n.17.
6. Ibidem, p. 150.
7. Ibidem, p. 119, n.5. 


11 de jun. de 2008

As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (IV)

Luna





“A mulher está perdida
num silêncio alegre e melancólico,
 esperando:   criança,   e   antiga
como   a   natureza”





Pasolini e a Profissão Mais Antiga do Mundo

Pai e filho seguem numa viagem alegórica pelas estradas, caminhada que alude à jornada ideológica dos subproletários italianos em sua saga visando tornarem-se pequenos burgueses. O corvo, um companheiro de estrada, se junta a eles. Ele só está ausente da fábula que é contada dentro do filme, contada por ele mesmo. O filme é Gaviões e Passarinhos (Uccellacci e Uccellini, 1966), e a fábula se refere à tarefa que São Francisco de Assis deu para pai e filho: acabar com a guerra entre essas duas espécies de aves.

Na última parte do filme, depois que a tarefa proposta por São Francisco não foi cumprida e pai e filho comeram o corvo, aparece uma personagem aparentemente sem grande interesse na trama. É Luna, a prostituta. Jovem mulher cuja única função para os menos avisados seria criar certo clímax para que os espectadores voltassem a prestar atenção até o final do filme pela exposição de um rosto feminino belo e/ou pelo comportamento machista de pai e filho em relação a ela. Entretanto, as prostitutas encarnam um elemento chave nos filmes de Pasolini.

“Dado seu duplo status enquanto figuras marginais e centrais, assim como significantes da vida e da morte, as prostitutas no cinema de Pasolini continuamente convergem duas realidades culturais, dois espaços ideológicos, e dois lugares no tempo, tornando-os essenciais para a preservação e regeneração de relações humanas elementares e genuínas. Pobres, indivíduos explorados dos níveis mais baixos da sociedade, prostitutas são, todavia, símbolos e refúgios de uma deusa antiga, e as raízes não contaminadas que elas representam restauram a vida de seus parceiros masculinos. Na verdade, a virtude dessas mulheres (como de seus desocupados companheiros e cafetões, em muitos casos) origina-se do fato de que a ética neo-capitalista varrendo toda a Itália não apaga sua vitalidade crua e identidade original – ou, se o faz, pelo menos não completamente. Em Accattone [Desajuste Social, 1961], Mamma Roma (1962) e Uccellacci e Uccellini [Gaviões e Passarinhos], prostitutas são parcialmente, senão completamente, excluídas da mentalidade materialista da grande ‘mutação antropológica’ do final dos anos 1950 e começo dos ’60. Ao contrário, nestes filmes, o status de subclasse das prostitutas firmemente representa um universo alternativo pré-existente – com códigos não escritos de honra e justiça, cujo principal objetivo é sobreviver, seja no interior de seu cosmos marginal ou na beligerante periferia de Roma. Pelo fato de suas vidas emergirem de um passado genuíno, mas se juntarem ao presente corrupto, prostitutas são como limiares conceituais ou pontos de confluência entre o velho e o novo. Numa medida bem maior do que as mães, talvez, as prostitutas de Pasolini iluminam a situação sociocultural da Itália nos anos 1960 e ajudam a avaliar o progresso (para melhor ou pior) que a humanidade alcançou em sua jornada existencial”. (1)

Entre a Prostituta e o Corvo 


Totó (célebre comediante italiano) e Ninetto, pai e filho, não fazem comentários sobre política. É sua jornada que mostra os sinais do embate entre passado e futuro, entre os modos de vida genuínos e os corruptos, entre a esquerda e a direita. Outros personagens, um corvo e uma prostituta, são dois desses sinais. O pássaro personifica o Marxismo (e talvez o próprio Pasolini). Ao final da fábula de São Francisco de Assis contada pelo pássaro, Pasolini coloca na tela um texto explicando que é o corvo: “Para quem tivesse dúvidas, ou estivesse distraído, lembramos que o Corvo é um intelectual de esquerda - digamos assim – de antes da morte de Palmiro Togliatti”.


Já Luna representa a vida ou a regeneração. Existiria uma relação de causa e efeito entre eles. Uma vez restaurados em corpo e espírito através da prostituta, pai e filho comeriam o pássaro intelectual.

“No contexto específico deste filme, parece que a autêntica agenda Marxista que se encerrou com Togliatti em 1964 alegoricamente morre outra morte através do corvo. Apesar disso, a simbólica Luna (Lua), que interage com os dois homens entre essas duas mortes, promete mudança cíclica e a regeneração da nova vida. Juntos, o corvo professoral (que pretende tornar os homens conscientes da política Ocidental) e Luna (que incita seus desejos rudimentares) sugerem que uma jornada de vida mais autêntica para pai e filho no futuro poderia combinar as forças da paixão e da razão”. (2)

Gaviões, Andorinhas e Aviões 

Para um filme que traz no título uma referência à relação entre aves de rapina e passarinhos (que são também a refeição dos primeiros), parece evidente o objetivo de Pasolini ao fazer Ninetto perguntar a Luna o que ela está fazendo ali (na beira de uma estrada vazia). Ela então responde: “Estou olhando as andorinhas”.

Luna é diferente das prostitutas de rua de Accattone e Mamma Roma. Segundo Collen Ryan-Scheutz, Luna não é uma vítima da opressão e da violência. Tampouco Ninetto e Totó, ainda segundo Ryan-Scheutz, seriam cafetões. Eles são passantes casuais atraídos pela presença atraente de Luna. Ela não diz o preço da relação sexual, agindo como se estivesse se agradando com a companhia. Também não fala que sustenta filhos ou parentes. É como se Luna fosse a personificação de uma sexualidade instintiva não contaminada. Enfim, uma personagem mítica e poética: “um sinal tangível de relações humanas que se mantêm incondicionadas pelos códigos morais dos centros urbanos”. No roteiro, Pasolini havia colocado um filho aos pés de Luna, mas não o vemos no filme. Ainda no roteiro, Pasolini a descreve Luna com essas palavras: “A mulher está perdida num silêncio alegre e melancólico, esperando: criança, e antiga como a natureza” (3).

Numa parte inicial de sua jornada com Totó, Ninetto faz um desvio e encontra uma menina que se veste de anjo para uma festa religiosa. Ela tem asas e Ninetto diz que ela parece um avião (imagem ao lado). Talvez tenhamos já aqui uma articulação com o mundo capitalista e suas máquinas. Talvez, para um jovem proletário italiano dos anos 60 do século 20, os valores religiosos nas asas de um anjo perdem significado perto das asas dos modernos seres alados de aço e ferro. Com asas fixas, que não se movem como aquelas dos seres sobrenaturais como os anjos, o campo simbólico a que pertence o pássaro metálico domina o horizonte de Ninetto, assim como a música pop moderna toma o lugar das melodias tradicionais que pai e filho em outros tempos encontrariam no bar de beira de estrada onde pararam para descalçar no começo da jornada.

Apesar de toda a distância em relação às prostitutas dos centros urbanos, o grande avião de passageiros a jato que passa sobre sua cabeça, sugere que Luna não está imune ao “barulho” ou intrusão da cultura capitalista. Com o ruído do avião, o diálogo após o sexo torna-se praticamente impossível, demonstrando como todos os momentos de nossas vidas estão suscetíveis de um afogamento sob os símbolos da cultura capitalista e suas máquinas: “O avião bruscamente se justapõe entre a vitalidade da mulher e a morte da autenticidade nas culturas ocidentais” (4).

Ninetto chama por Luna, pois é "a vez dele". Ela custa a
es
cutar, devido ao barulho da modernidade (o avião).

Luna e o PCI 

Luna só aparece no final do filme. Ela surge naquela estrada vazia logo após as imagens do enterro de Palmiro Togliatti, o líder do Partido Comunista Italiano (PCI) e antes da morte do corvo. Antes que Totó tivesse a idéia de comer o pássaro, o corvo recomeça a falar, repetindo uma frase que Pasolini já havia colocado em legenda na tela no começo do filme: “A caminhada começa e a jornada já está completa”. Na opinião de Ryan-Scheutz, esse comentário evidencia a natureza cíclica da vida e da política, assim como prenuncia o significado revitalizante da prostituta. (ao lado: Luna se arruma "após" Totó, quando ouve Ninetto)

Das várias hipóteses que poderiam explicar a morte do corvo, Ryan-Scheutz escolhe aquela que sugere que o pássaro esquerdista poderia reviver o espírito revolucionário deles. A morte do corvo falante seria parte das numerosas referências que o filme faz aos vários estados e funções do corpo. Estados e funções que Pasolini utilizaria como metáforas para os vários elementos na vida de uma nação. Ele sugere que um povo se apodera e ingere aspectos da política, processando esse “alimento” de várias formas (ativa ou passiva, racional ou instintiva, pessoal ou comunal).

“Seja qual for verdadeiramente o significado da cena final, a decisão dos homens por comer o pássaro requer certa deliberação. Totó ataca rapidamente, e, na próxima cena, apenas resta uma carcaça fumegante. Por todo Uccellacci e Uccellini [Gaviões e Passarinhos], Pasolini faz numerosas referências a estados corporais ou funções: assassinato ou morte violenta (primeira cena de funeral); defecação ([cena dos] fazendeiros); fome ([cena] da mãe ‘Chinesa’); nascimento ([cena da] atriz/mãe de Benvenuta); relação sexual (Luna); refeição e digestão (o corvo); morte real e fisiológica ([segunda cena de funeral] Togliatti). Desta forma, delineando os vários estados fisiológicos da humanidade, Pasolini se refere a ‘estados’ paralelos na vida e desenvolvimento de uma nação. Em outras palavras, as realidades corporais de pessoas são metáforas para partidos políticos, plataformas [políticas] e eras que possuem seus próprios ciclos de nascimento, crescimento, purgação, dificuldade, revitalização, interação, consumo e morte”. (5)

Será talvez neste sentido que o corvo chega a comentar que aquele que come e digere professores se torna um pouco como eles. Pasolini poderia também estar aludindo ao conflito de gerações em dois momentos. Primeiro, quando o corvo afirma, após o funeral de Togliatti e do sexo com Luna: “Talvez minha hora tenha passado... e minhas palavras caem em ouvidos surdos... mas eu sei que alguém pegará minha bandeira e continuará”. No segundo momento, quando, na última cena do filme um avião decola em paralelo a Totó e Ninetto, subindo acima de suas cabeças.




No primeiro caso, estaria marcada a crença de Pasolini (pelo menos até meados da década de 60 do século 20) que a pureza de espírito poderia reviver um marxismo genuíno. No segundo caso, seria enfatizado que um futuro marxista também dependerá da habilidade das duas gerações no sentido da compreensão mútua, a despeito das forças ensurdecedoras do capitalismo condicionando os indivíduos em ambos os lados. No princípio do filme, uma resposta atribuída ao conhecido líder comunista chinês Mao Tse-Tung (não legendada para o português) numa entrevista onde é perguntado para onde ele acredita que vai a humanidade. “Sei lá!”, ele diz (6).

Com a Lua não se Brinca 


“De quantos
problemas poderíamos
falar   a   respeito    das
prostitutas”

Comentário   do   corvo  marxista  depois  que  pai   e   filho
se serviram de Luna (momentos antes que eles o comessem)


No que diz respeito à abordagem de Totó e Ninetto em relação à Luna, uma distância fica evidente. Como se estivessem travados por códigos morais, ambos simulam vontade de defecar para poder escapar e procurar o sexo com a prostituta. Numa cena anterior, quando os dois estão defecando no campo, Totó fala sobre a lua e acredita que só ele a vê, mas Ninetto em seguida afirma também poder vê-la. Essa vontade de defecar remete também à ingestão do pássaro que será a próxima refeição após o sexo (e o necessário descarte daquilo que não serve nele para nutrir as gerações). Entretanto, a necessidade de fazer sexo com Luna não é menor do que a urgência de defecar. Os dois processos, afirma Ryan-Scheutz, estariam conectados pela autenticidade (reter aquilo que for positivo e vital, descartar o que não serve) (7).

Luna Representa o poder do culturalmente autêntico e rejuvenesce as duas gerações (Totó e Ninetto). Luna também nos lembra dos ciclos da vida (morte e renovação), que também perpassam a política. Na primeira frase do filme, é Totó quem diz: “Com a lua não se brinca”. Durante todo o filme temos imagens da lua solitária ou transpassada por nuvens ralas. Então, ao final do filme, conhecemos esta prostituta chama Lua (Luna). No dialeto da região, a frase de Totó se refere tanto a comida quanto a sexo. Totó explica a conexão entre as marés e a lua: “Porque se ela se zanga é preciso esperar pela maré alta”(...)”Já viu a sujeira que o mar traz para a areia? Do que depende aquilo? A lua tem uma força de gravidade que faz a água subir”.

Passando para a situação política da Itália na década de 60 do século 20, com a morte do comunismo (na figura do enterro de Togliatti), a sociedade não ficaria sem esperanças se pudesse contar com ciclos regulares de nova energia. Portanto, com o aparecimento de Luna logo após o funeral de togliatti e logo antes da morte do corvo marxista, Pasolini fala de sua esperança de que uma nova Esquerda fará a diferença.

“Como os gaviões do interlúdio Franciscano no filme, os quais, a despeito de suas lições sobre o amor, continuam a comer os pardais, ambas as gerações [o pai e o filho] arriscam-se a viajar pela vida como meros sobreviventes, exercendo poder quando e como podem. O fato de que a prostituta Luna é a entidade com quem os homens se juntam fisicamente sustenta a associação que Pasolini faz entre mulher e começo [princípio]. Através de Luna, ele torna o instinto humano, o corpo, e os ciclos da natureza centrais à noção de nova vida na arena política, portanto, estendendo sua tese do ser individual à comunidade ou Estado”.(8) (ao lado: pai e filho passam, Luna parece olhar através deles)




Referindo-se especificamente às prostitutas dos filmes de Pasolini, Ryan-Scheutz nota que elas vivem na fronteira entre dois mundos: a favela (borgata) e o centro da cidade. Elas acabam unindo esses dois espaços num todo contraditório e não resolvido. O comportamento dos clientes é equivocado (para não dizer hipócrita): as desejam por seus serviços, entretanto as repudiam publicamente por razões morais. As prostitutas são excluídas da prosperidade material da cidade, mas são centrais para a economia da favela.

Notas:

Leia Também:

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Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

1. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 101.
2. Idem, p. 94.
3. “La donna è persa in un silenzio lieto e malinconico, in attesa: bambina, e antica come la natura”.
4. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 95.
5. Idem, p. 97.
6. Dove va l’umanità? Boh!”. O que não deixa de ser uma resposta contraditória sendo ele um dos que acredita na marcha da história rumo ao progresso. Talvez uma visão mais poética do futuro. Na moda durante os distúrbios de Maio de 1968 em Paris, seu livrinho vermelho era brandido por muitos estudantes. Eventualmente, ele próprio levou a China ao caos genocida (atribuem a suas políticas entre 44 e 72 milhões de mortes de chineses). Embora não antes de tê-la libertado (sem a ajuda dos norte-americanos) na Segunda Guerra Mundial, tanto do opressor japonês quanto dos chineses corruptos de Chiang Kai-shek (apoiados pelos norte-americanos), transformando-a numa potência mundial que incomodava os novos senhores do mundo do pós-guerra: Estados Unidos e União Soviética.
7. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Op. Cit., p. 98 e 245-6n50.
8. Idem, p. 99.