30 de jun. de 2010

Zurlini, Ilustre Desconhecido






Através de

 A     Moça     com
a     Valise    Claudia
Cardinale alcança
o estrelato

Millicent
Marcus (1)





Zurlini Quem?

Embora o nome de Valerio Zurlini seja respeitado, raramente se encontram referências a sua obra. Muitos (e muitos) livros sobre cinema italiano sequer citam seu nome numa pequena nota de pé de página (imagem acima, A Moça com a Valise; as duas próximas imagens, O Deserto dos Tártaros). A razão por que certas pessoas são relegadas ao ostracismo é variada, por enquanto não é possível saber por que motivo a literatura especializada em cinema italiano demonstra completa ignorância em relação ao cineasta. Quais fatores facilitaram o desinteresse em torno de sua figura, mas enalteceram a obra infinitamente mais hermética de Michelangelo Antonioni, é algo que dá o que pensar. Na falta de maiores esclarecimentos, limitamo-nos a perguntar qual é a posição de Zurlini no cinema italiano?






O   jeito   extrovertido
de    Zurlini    escondia    um
pessimismo     profundo.   Um
mal-estar existencial que se refletia em seus filmes

Piero Schivazappa,
Assistente de direção em
A Moça com a Valise (2)




Apesar de existir certa concordância em considerar Zurlini um autor, ele mesmo não se via como tal. Desdenhosamente, o cineasta afirmou que “o ’68 cria o filme de autor. Péssimo, porque faz o autor acreditar ser mais importante do que as coisas que disse. Faz o autor acreditar ser mais importante do que aqueles que o escutam” (3). Por aí, poderíamos concluir que Zurlini cumprira seu destino, ainda que com certa dificuldade a obra dele venha sendo redescoberta, pouco se sabe sobre seu processo de criação (4). Zurlini se via mais como um artesão, no sentido nobre da palavra:






O
elogio que mais
 apreciava é aquele  de

 haver    feito    sempre
mesmo  filme (5)







Giacomo Manzoli chama atenção para o fato de que o conceito de autor possuía já uma conceituação especial na Itália, antes de 1968. Ele aceita a afirmação de Zurlini quando consideramos o ano de 1968 como uma categoria do espírito, um espírito jovem e revolucionário. O mesmo espírito, Manzoli sugere, surge no cinema com a Nouvelle Vague, quando o conceito de autor adquire uma acepção distinta. Entretanto, Manzoli chama atenção, ele se refere a uma “Nouvelle Vague italiana”. Uma definição que se deve utilizar com cuidado, que se refere a um fio que liga personalidades muito diversas e cujo denominador comum seria apenas a tentativa de afirmar um cinema pessoal durante um período de transformação radical. Lino Micciché enfatiza apenas os aspectos econômicos e de produção dessa nova onda (6). (imagem abaixo, à direita, enquanto Pietro Di Bernardi era entrevistado, ao passear pela sua sala a câmera encontrou esta placa conquistada por ele, que dá a dimensão da importância de Zurlini - pelo menos enquanto estava vivo)




Chegaram
a incluir Valerio Zurlini
numa  Nouvelle  Vague
italiana





Manzoli esclarece que a “Nouvelle Vague italiana” é citada em livro de Gian Piero Brunetta sobre a história do cinema italiano. Brunetta reunir sob essa bandeira autores que se viam como “proprietários” dos filmes que dirigiram. Gente que dava as costas à tirania do mercado, além de uma série de recorrências temáticas e estilística. Zurlini continuava fiel a sua postura “artesanal”, mas de forma algum era indiferente ao êxito comercial de seus filmes. Embora seus filmes tenham uma clara intenção de contar uma estória linear, as soluções formais de seu cinema remetem ao horizonte da Nouvelle Vague propriamente dita. Certamente, o cineasta foi incluído nessa lista porque seus longas-metragens situam-se no período a partir de 1959 (com a exceção de Quando o Amor é Mentira, Le Ragazze di San Frediano, 1954, que Manzoli considera um episódio particular), porque das inquietações que refletem o espírito do tempo, porque fala de sentimentos e de amor louco, porque reflete sobre alguns signos da modernidade de então (o amor pelo jazz e muito mais...). A crítica da época oscilava de forma ambígua entre considerar Zurlini um homem do Cinema Novo e da continuidade. Mesmo assim, Manzoli ainda está cético quanto a incluir Zurlini na lista de Brunetta, que conta com nomes que são símbolo de ruptura e rebelião, como Pier Paolo Pasolini (7).

 

Pasolini Onde?

Em   A   Primeira   Noite
de   Tranqüilidade,   Zurlini
vestiu com seu próprio casaco
a  personagem  de  Alain Delon.
Em seu Édipo Rei, Pasolini teria
vestido    a     personagem     de
Silvana      Mangano      com
roupas        semelhantes
às    da    mãe    dele (8)


Manzoli enfatiza que basta uma visão superficial para perceber que é difícil imaginar dois autores mais distantes do que Zurlini e Pasolini. Deste que seria, na opinião de Brunetta e de Lino Micciché, o maior expoente dessa nova onda, Zurlini guarda apenas algumas semelhanças, além de uma amizade. Para além das coincidências de caráter pessoal elencadas por Manzoli, o que nos pode interessar é o profundo conhecimento de ambos em relação a historia da arte. Incluíam muitas citações pictóricas os seus filmes, através das quais se pode perceber a admiração comum em relação à Piero della Francesca. Houve inclusive uma colaboração entre ambos, embora o único registro sejam as palavras de Zurlini, pois não há documento que ateste o fato. É que Pasolini foi indicado pelo produtor Carlo Ponti para fazer modificações no primeiro roteiro de A Moça com a Valise (La Ragazza con la Valigia, 1961). Consta que Ponti desejava adaptar o roteiro para que valorizasse Sophia Loren. Mas a colaboração durou pouco e, por conselho do próprio Pasolini, voltou-se ao ponto inicial do roteiro – não restando nenhum traço de sua participação. Cláudia Cardinale atuou no papel da personagem principal (9). (imagem acima, A Primeira noite de Tranquilidade)



Zurlini era visto como
o cineasta da paisagem (das
cidades  e  da  alma). Primeiro
filmava a paisagem
, só então surgem os personagens

Célia Regina Cavalheiro (10)



Zurlini e Pasolini tiveram como projeto um filme sobre São Paulo, que não se realizou. Zurlini também deveria participar da obra conjunta (ou filme em capítulos) Amor e Raiva (Amore e Rabbia, 1969), que contou com Carlo Lizzani, Bernardo Bertolucci, Pasolini, Jean-Luc Godard, Marco Bellocchio. A contribuição de Zurlini cresceu demais e acabou se tornando um longa-metragem, Sentado à Sua Direita (Seduto Alla Sua Destra, 1968) (imagem acima). Um filme político que aborda os conflitos na África, um tema que interessava tanto a Zurlini quanto a Pasolini. Neste filme, admite Manzoli, encontra-se uma grande influência de Pasolini. Um filme sobre o Terceiro Mundo, ambientado na África, onde encontramos Sergio Citti, amigo de Pasolini desde sua estada nas favelas de Roma, tendo atuado em alguns de seus filmes. Manzoli ressalta que, como se não bastasse a idéia de Pasolini de aplicar ao continente negro um mito fundador da civilização ocidental em Padre Selvaggio (texto incluído em seus Escritos Corsários, 1975), e de Appunti per un’ Orestiade Africana (1970), o próprio Zurlini declarou que uma versão da estória do ladrão que morre ao lado de Cristo lhe fora sugerida desde A Ricota (La Ricotta, episódio de outro filme coletivo do qual participou Pasolini, Rogopag, 1963). Influência, Manzoli afirma, se dá à distância já que, em 1968, Pasolini estava envolvido com dois de seus filmes Teorema (1968) e Pocilga (Porcile, 1969), atípicos em sua filmografia na mesma medida que Sentado à Sua Direita o é na de Zurlini.




Os longas
-metragens de Zurlini são  adaptações de
obras literárias  e  seguem
uma ótica existencialista


Célia Regina Cavalheiro (11)






No documentário Pugilatori (1952), Zurlini teria se aproximado de uma “prosa documental pasoliniana”. O texto do roteiro, bem entendido, fala de jovens da favela que pouco tempo depois encontraremos nos filmes iniciais de Pasolini, Accattone (1961) e Mamma Roma (1962). Mas Manzoli avisa que este vínculo com Pasolini não ultrapassará Quando o Amor é Mentira. O próprio Zurlini disse que este filme é dotado de “um humor popularesco, e os meus filmes oscilam sempre sobre outra classe social: nunca mais fiz um filme popular; fiz somente filmes burgueses ou filmes aristocráticos” (12). Tal coisa, disse com razão Manzoli, escavaria um abismo intransponível entre Zurlini e Pasolini. Este poderia inclusive direcionar a Zurlini as críticas que fez ao “existencialismo provinciano de Antonioni”. (imagem acima e no final do artigo, O Deserto dos Tártaros; abaixo, à direita, A Primeira Noite de Tranqualidade)




Zurlini admitiu

que  fosse  baseado   em   si
mesmo o personagem de Alain
Delon em A Primeira Noite
 de Tranquilidade

Célia Regina Cavalheiro (13)




De acordo com Pasolini, é necessário avaliar a angústia burguesa a partir de fora, através de instrumentos de uma ideologia não-burguesa. Se não conseguimos imaginar que Zurlini pudesse abjurar sua própria origem burguesa (como Pasolini parece pretender haver conseguido) para aderir ao objeto, podemos pelo menos constatar esse fenômeno (nas palavras de Manzoli, tipicamente italiano do período) de dois amigos fazendo cinema numa mesma época. Ambos burgueses, cristãos, marxistas, pertencendo a uma mesma tendência cinematográfica, decadente enquanto expressão de um momento histórico em que o esqueleto da cultura burguesa apodrece e desmorona em grande fracasso. Dois autores que, nas palavras de Manzoli, mesmo trabalhando próximos acabam por germinar duas obras distantes anos luz entre si.





Cineasta   da   melancolia
,
Zurlini   queria   filmar   a
trajetória do ser em bus
ca
de sua própria identidade


Célia Regina Cavalheiro (14)








Leia também:

O Cinema Político de Valerio Zurlini
A Trilogia de Valerio Zurlini
Uma Fantasia Nostalgica do Paraíso
Pasolini e o Cinema de Poesia

Notas:

1. MARCUS, Millicent. Italian Film in the Shadow of Auschwitz. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 68.
2. Em entrevista nos extras de A Moça com a Valise, lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo.
3. MANZOLI, Giacomo. Zurlini, Pasolini e la Nouvelle Vague Italiana In ACHILLI, Aberto; CASADIO, Giamfranco. Elogio Della Malinconia. Il Cinema di Valerio Zurlini. Ravenna: Edizioni Girasole, 2000. P. 79.
4. Louve-se o esforço da Versátil Home Vídeo, que vem lançando no Brasil a obra do cineasta - acompanhada de extras esclarecedores, devidamente legendados. Especificamente, em A Primeira Noite de Tranqüilidade e A Moça com a Valise – ainda que nesse último, infelizmente, quando Pietro De Bernardi fala de Mulheres no Front (Le Soldatesse, 1965) as legendas se refiram a Quando o Amor é Mentira... Existem erros similares noutras entrevistas!
5. MANZOLI, Giacomo. Op. Cit.
6. Idem, p. 81.
7. Ibidem, p. 80.
8. No caso do filme de Zurlini, a referência foi o comentário de Piero de Bernardi, nos extras de A Moça com a Valise. No caso de Pasolini, Todos os Corpos de Pasolini (São Paulo: Perspectiva, 2007. P. 59), de Luis Nazário.
9. MANZOLI, Giacomo. Op. Cit., pp. 82-3.
10. Em entrevista nos extras de A Primeira Noite de Tranquilidade, lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo.
11. Idem.
12. MANZOLI, Giacomo. Op. Cit., p. 84.
13. Ver nota 10.
14. Idem. 


29 de jun. de 2010

O Holocausto de Pasqualino





A vida de
Pasqualino
é uma comédia
que  é  uma
tragédia





 

Uma Casa Italiana... Com Certeza!

Pasqualino Frafuso vive em Nápoles, na Itália Fascista de Benito Mussolini. Têm sete irmãs, seu apelido é “Pasqualino sete belezas“. Um Don Juan quando se trata das mulheres e filhas dos outros, seus problemas começam quando sua irmã Concettina torna-se prostituta. Obcecado com a honra da família, acaba matando Totonno, o responsável pela “queda” dela. A única forma de se safar da pena de morte foi optar pelo manicômio por 12 anos. No caminho, encontra outro detento e se gaba por ter assassinado e esquartejado um homem. O outro olha impassível e diz que foi condenado há 28 anos. Impressionado, Pasqualino quer saber por que. Apontando com a cabeça para um retrato de Mussolini na parede, o homem diz que ser socialista na Itália do Duce é um crime maior! (imagem acima, Pasqualino entra no teatro e vê Concettina no palco rebolando)




Prostituir seus valores
,
 submetendo-se ao mundo
 para sobreviver a esse mesmo 
mundo   é    a   contradição
 da  vida   de   Pasqualino
e   de   todo   mundo





No manicômio, Pasqualino consegue ser transferido para a ala feminina – onde o vemos recolhendo pinicos mijados. Ele vai levando, até que estupra uma paciente que encontrou amarrada na cama. Depois de uma terapia de choques elétricos que mais parece uma tortura, é solto com a condição de alistar-se no exército – a Itália entrou na Segunda Guerra Mundial e Mussolini agora precisa de todos que puder mandar para a morte. Quando o filme começa, acompanhamos o desertor Pasqualino perdido no campo de batalha se passando por um ferido de guerra, juntamente com um companheiro de arma. Preso pelos alemães, ele acaba num campo de extermínio. (imagem acima, à direita, Pasqualino conversa e toma conselhos com o mafioso da cidade. Quando Ele entrar no mundo do campo de extermínio, o ângulo da câmera de Werttmüller se inverterá. Se Pasqualino era focalizado de baixo para cima em Nápoles, passará a ser visto de cima para baixo, acentuando assim sua inferioridade diante da situação de total submissão às circunstâncias)


Ao  contrário   do   que   se
poderia  imaginar,  quando
responde  com  os mesmos
insultos  aos    homens   da
platéia  que   ridicularizam
seu  número  no   teatro de
 revista,  Concettina   acaba
por  reforçar  justamente o
machismo  que  a  sufoca  (1)


Tentando sobreviver, Pasqualino tenta conquistar Hilde, que administra o campo com mãos de ferro. Quando consegue chamar a atenção o suficiente para que a nazistona queira trepar, ele não consegue reunir forças para dominar o corpanzil dela, que chega a bocejar enquanto o patético macaroni (como ela, e todos os nazistas, se referiam aos italianos com desprezo) tenta desesperadamente tornar-se indispensável a ela. Hilde até dá uma trégua oferecendo um prato de comida ao exausto Pasqualino. Depois de humilhá-lo com palavras ao referir-se a inferioridade dos mediterrâneos, ele é Kapo – ela diz que a sede de sobrevivência dele a enoja, mas admite que esse comportamento absolutamente submisso permitirá aos inferiores triunfar sobre os fortes (os nazistas) no final. (imagem acima, à esquerda, Concettina rebola no palco do teatro de revista, enquanto a platéia masculina a hostiliza com comentários machistas)







Na  volta  do  campo de extermínio, Pasqualino passa
a ter  outro  entendimento d
a palavra “sobrevivência”






Como Kapo, Pasqualino será um dos guardas. Hilde ordena que escolha seis prisioneiros para morrer – se não o fizer, ela matará a todos. Pedro, o anarquista, se oferece como voluntário, mas Pasqualino se recusa a incluí-lo na lista. Decidido a acabar com sua vida, se atira no fosso de merda do banheiro dos prisioneiros – sendo metralhado pelos soldados. Francesco, outro prisioneiro, protesta. Pasqualino deve matá-lo para não morrer. Quando a guerra acaba, Pasqualino volta a Nápoles. Descobre que Carolina, sua namorada virginal, também virou prostituta, mesmo assim deseja se casar com ela – tendo se prostituído também, Pasqualino já não fala mais em defesa da honra... Sua mãe resume o dilema dizendo que o importante é que ele está vivo. (imagem acima, à direita, Pasqualino ameaça Concettina e diz que vai matar alguém)

Dilemas da Sobrevivência (em Qualquer Ditadura)





O filme sobrepõe
o assassinato  cometido
por Pa
squalino ao assassinato
em    mas
sa     cometido
pelos    nazistas







Lina Wertmüller, que dirigiu Pasqualino Sete Belezas (Pasqualino Settebellezze, 1975), começou sua carreira como assistente de direção em Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, direção Federico Fellini, 1963) (2) – na verdade, uma terceira assistente, cujo nome não aparece nos créditos (3). Peter Bondanella o incluiu na lista de filmes marcados por citações da obra de Fellini (4). Wertmüller combina temas da comédia do sul da Itália com questões políticas. Agora ela incluiu o Holocausto e as questões morais das escolhas que se tem de fazer para sobreviver a esse pesadelo (5). Alguns questionaram a sobreposição do crime comum e o assassinato em massa. Wertmüller insistiu que apenas com esta justaposição poderia levar o espectador a reagir ao horror da condição a que Pasqualino fora reduzido. (imagem acima, à esquerda, Pasqualino esquarteja Totonno e coloca os pedaços em três malas, que despacha de trem. Mas a estratégia não dá certo e ele será preso)



“[Pedro,]
o  anarquista   espanhol

que   escolheu   morrer   no
campo    de    concentração   é
o porta-voz   da  cineasta e mesmo hoje ela mantém
essa crença”

Josette Déléas (6)




O instinto de sobrevivência de Pasqualino será testado até o limite. Ele foi obrigado a matar Francesco num fuzilamento que lembra como matou (supostamente sem querer) Totonno. Não podemos esquecer a curiosa coincidência entre o número de prisioneiros que Pasqualino tinha que matar. Incluindo as mortes de Pedro e Francesco, somam oito pessoas – o que corresponde a suas sete irmãs, além da mãe. Na opinião de Bondanella, ao incluir personagens como Pedro e Francesco, Wertmüller desaprova Pasqualino e o preço que concordou em pagar (7). Pedro dizia que era preciso um “homem em desordem” que se opusesse à ordem insana do Terceiro Reich. Francesco, por sua vez, acreditava que a culpa italiana está implícita na aliança entre a “Itália de Mussolini” e a “Alemanha de Hitler”. (imagem acima, o clima no campo de extermínio para onde Pasqualino foi mandado é particularmente aterrorizante)

O Holocausto é Uma Piada



O  macabro e  o  grotesco
são entrelaçados por  Lina
Wertmüller    para    incitar
a
s    reações     emocionais  e
também      racionais     que
de      outra      forma    não
   despertariam autocrítica
(8)





Millicent Marcus ressaltou a vontade de Lina Wertmüller em contrastar a vida de Pasqualino no pré-guerra e a posterior condição de prisioneiro do campo. Discípula de Federico Fellini (9), Wertmüller construiu uma trama em flashbacks. Ao contrário de outro filme sobre o tema, A Vida é Bela (La Vita e Bela, direção Roberto Benigni, 1997), que aprofunda a separação entre o antes e o depois... Os numerosos flashbacks, que recontam os dias gloriosos do trapaceiro napolitano são inseridos no presente do campo de concentração, onde será obrigado a se prostituir para garantir sua sobrevivência (10). O beco sem saída entre a morte e a sobrevivência traz imediatamente à memória Kapo, Uma História do Holocausto (Kapò, direção Gilo Pontecorvo, 1960). (imagem acima, à esquerda, a tristemente famosa frase encontrada em todos os campos de concentração e extermínio nazistas: "O trabalho liberta")




Pasqualino
,  a  identidade reduzida à zero após o coito 
com     Hilde,    como    um   feto
mal    nascido    espera    sua 
encarnação como Kapo (11)






Marcus contrapõe as estruturas de Pasqualino Setebelezas e A Vida é Bela. No filme de Wertmüller, a constante oscilação entre o passado carnavalesco de Pasqualino e seu presente em Buchenwald neutralizaria o choque entre as duas etapas da vida do protagonista. No filme dirigido do Roberto Benigni, ao contrário, a rachadura entre passado e presente é muito mais radical, separando o romantismo da 1ª parte e a parábola da 2ª. Marcus chega a sugerir que existe uma esquizofrenia entre as duas partes de A Vida é Bela, a ruptura entre antes e depois é muito radical e violenta – além da controversa caracterização de uma comédia do Holocausto (12).


O vai-e-vem
entre   a   máquina

 exterminadora   nazista 
e  o   passado  de  escroque
bufão       de       Pasqualino
compõe os mecanismos
de contraste caros a
Wertmüller (13)




Na opinião de Peter Bondanella, ao lado de O Porteiro da Noite (Il Portiere di Notte, direção Liliana Cavani, 1974), Pasqualino Sete Belezas está entre os mais provocantes filmes sobre os dilemas existenciais da vida nos campos de concentração nazistas (14). Além desses, Millicent Marcus citaria Kapo, Uma História do Holocausto e O Jardim dos Finzi-Contini (Il Giardino dei Finzi Contini, direção Vittorio De Sica, 1970), como únicos filmes sobre o tema que tiveram algum impacto na história do cinema italiano (15). Marcus sugeriu que a falta de relevância do Holocausto como tema no cinema italiano advém do fato de que os filmes sobre o tema não foram capazes de estabelecer um diálogo entre si. É como se cada cineasta construísse seu filme a partir do nada. Amnésia nacional?





 As     valas     cheias
 de   cadáveres   semeiam
o   solo   europeu,   que   de
tempos em tempos colhe
seus frutos malditos






Desta forma, faltou a visibilidade que “filmes menores” sobre o tema tanto precisam. Contrapostos aos filmes da comédia italiana ou o cinema político italiano, categorias repletas de filmes que se comunicam entre si, fica fácil entender o ponto de vista de Marcus. Os filmes italianos sobre o Holocausto feitos no pós-guerra possuem mais em comum com seus contemporâneos de outros temas. Aquilo de Marcus chama de filmes da segunda onda (1960-6) compartilham com outros trabalhos contemporâneos o romance sentimental melodramático, enquanto a produção autoral de meados dos 70 flerta com a temática sexual do período. Resumindo, os cineastas realizaram seus filmes mais em função do contexto cinematográfico do que de um discurso sobre o destino dos judeus italianos. (as três imagens acima, o açougue nazista em seus momentos mais sombrios)

A Comédia Italiana e a Lição da Mulher Nazista


Lina Wertmüller
 parte    da    commedia
dell’arte
e expõe o controle
sobr
e o indivíduo  através  de 
instituições como a família
  ou de  conceitos como masculinidade
(16)




Para Bondanella, o cotidiano de Pasqualino em Nápoles poderia constar entre os momentos clássicos da comédia italiana. Refletem a influência de Fellini no trabalho de Wertmüller. Como a seqüência em que Concettina dança no teatro de revista. Outro desses momentos é o assassinato de Totonno, quando ele é esquartejado em pequenos pedaços. Bondanella cita especialmente a cena do julgamento de Pasqualino pelo assassinato de Totonno, em Nápoles. Realizada sem diálogos, apenas um fundo musical e as expressões faciais. Temos ainda a bufonaria da seqüência em que Pasqualino rouba comida de uma fazenda alemã, onde uma roliça loura toca e canta Sonhos, de Wagner, ao piano – um prelúdio romântico à entrada no campo de da morte, onde A Cavalgada das Valquírias, também de Wagner, introduz a enorme e emburrada Hilde (17). (imagem acima, à esquerda, Pasqualino tenterá conquistar Hilde, mas ela sabe que o único objetivo dele é conseguir comida)





(...) O riso  é a  vaselina
que faz as idéias penetrarem

melhor, não no traseiro, mas no cérebro. No coração”

Lina Wertmüller (18)






As seqüências tragicômicas que acompanham as tentativas de Pasqualino para seduzir Hilde são um capítulo à parte. O napolitano pouco faz, pois seu estado físico é deplorável. Ela ordena: “agora você come, depois você trepa... se não trepar, você morre!”. Quando volta para casa depois da guerra, ele descobre que tudo que fez para proteger a honra de sua família foi em vão. Para sobreviver, suas irmãs, além de sua virginal namorada Carolina, prostituíram-se com os soldados norte-americanos. Ele percebe que a atitude delas ecoa a sua própria. Depois que sua mãe insiste que o importante é que ele está vivo, acompanhamos um close de seu rosto enquanto ele olha fixamente para si mesmo no espelho. Nesta cena final, conclui Bondanella, fica claro que alguns valores são mais vitais à existência humana do que a sobrevivência (19). (imagem acima, o elemento cômico é articulado ao grotesco da situação e da figura da nazistona)



O      efeito      cômico
da    figura   de    Hilde
  remonta    ao    grotesco 
 na   obra    de   Rabelais,
 onde     ao    exagerar   a  anormalidade,         um
sopro  moral  e  social
   é dado à aberração
(20)



Hilde foi inspirada em Ilse Köhler, esposa do comandante do campo de extermínio de Buchenwald, chamada de “a bruxa de Buchenwald” – ou “a puta de Buchenwald”, ou “a Besta de Buchenwald”, sendo nomeada capataz (Oberaufseherin) pela SS. Sobreviventes falaram de seu sadismo e devassidão com os prisioneiros – teria ordenado que estuprassem uns aos outros. Sentenciada à prisão perpétua, enforcou-se em 1967. O filme também discute a masculinidade e família. As mulheres que Pasqualino defende (mãe e irmãs) também explora. Outras mulheres ele conquista sem pensar em honra – chega a estuprar uma mulher amarrada. Apesar disso, a velha senhora, chefe do manicômio, o liberta. Considerando-o normal, ela estimula um estado infantil e incentiva seu machismo. Hilde o faz rastejar, no final do sexo Pasqualino está derrotado, exausto e na posição fetal. (imagem acima)




Hilde   evoca   o

“monstruoso feminino”
e  um  horror  baseado  no
medo ancestral de ser sugado

 de   volta   ao  útero  materno, 
lugar da não-diferenciação
e   abjeção   do   estado
de não nascido (21)





O refrão da música que ouvimos durante todo o filme diz: “Viv’e campar” (viver e sobreviver, viver e salvar-se) (22). De saída, tudo que defendia foi por água abaixo, como não havia dinheiro pagar um advogado, a mesma irmã por quem Pasqualino matou um homem teve de se prostituir. Já no tribunal, encontramos todas as irmãs de cabelo pintado de louro, cópias da atriz norte-americana Jean Harlow (1911-1937). O olhar virginal de Carolina, talvez a única coisa a sustentar a estratégia de Pasqualino, muda quando ele volta do inferno. “Sim... Eu estou vivo”, Pasqualino repete tentando se convencer do que importa para sua mãe – que ele esteja vivo. A seguir, Pasqualino em frente ao espelho, Carolina à esquerda, a mãe dele à direita, ele no meio. Olhamos em seus olhos junto com ele, que se encara como se estivesse procurando a si mesmo. (última imagem do artigo)

Finalmente, o Prólogo!


“Enquanto formos cúmplices
 das opressões    dos    homens, 
enquanto   os   repetirmos em
nossas crianças, fabricando  à
vontade vigorosos opressores
 ou dóceis vítimas de opressão
, 
nunca, nunca seremos  livres”

Annie Leclerc,
Filósofa e feminista francesa (23)



No início de Pasqualino Sete Belezas, acompanhamos uma seqüência repleta de imagens de cine-jornal da época da guerra. Cenas que mostram a destruição da guerra. A imagem de Mussolini e Hitler num fraterno aperto de mãos é repetida várias vezes. Talvez nos lembremos dessa imagem quando Francesco sugeriu que, a partir do momento que Mussolini se uniu a Hitler, a Itália passou a ter culpa de tudo que os nazistas faziam naquele lugar. A trilha sonora do prólogo tem uma letra bastante irônica. (imagem acima, à esquerda, Carolina, a angelical namorada de Pasqualino, também se tornou uma prostituta. Mas agora ele sabe porque certas coisas acontecem...; abaixo, à direita, Hitler e Mussolini confraternizam nas imagens de cine-jornal do prólogo)




“Na verdade
, todas as
suas  ações   são  as  de um

covarde, de cujo machismo
[Wertmüller] zomba”

Josette Déléas (24)





Concordamos com Josette Déléas, Lina Wertmüller pretendia ridicularizar o nacionalismo fascista e sua natureza destrutiva. As frases da música no prólogo soam como palavras que circulavam na Itália da época (e/ou depois do fim). Pasqualino já pode ser visto em tomadas curtas. Uma metralhadora executa judeus. Pasqualino não compreende a reação de seu companheiro de fuga, que insiste que se deveria dizer “não” ao fascismo. Na cabeça de Pasqualino, entretanto, a questão é simples: agir naquela situação significaria sua morte. Seu único objetivo: sobreviver a qualquer custo! O filme termina com uma imagem da mulher como mercadoria. As mulheres de Pasqualino (a mãe, as irmãs e sua namorada) tornaram-se prostitutas. “[Que os homens delas] sejam os soldados [norte-]americanos que chegaram para libertar a Itália, constitui a derradeira ironia” (25).





...Aqueles  que  acreditam
e
m  tudo,  até  em  Deus”(...)
...Aqueles    que    não    se
divertem   nunca,   mesmo
quando sorriem. Oh yeah

da canção no prólogo
O Porteiro da Noite e a Cumplicidade da Vítima

Notas:

1. DÉLÉAS, Josette. Lina Wertmüller: The Grotesque in Seven Beauties In LEVITIN, Jacqueline; PLESSIS, Judith; Raoul, Valerie (eds.). Women Filmmakers: Refocusing. New York/London: Routledge, 2003. P. 158.
2. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995. P. 377.
3. The Internet Movie Database. Disponível em:
http://www.imdb.com/name/nm0921631/ Acessado em: 25/06/2010.
4. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. P. 7.
5. ------. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. Pp. 361 e 363.
6. DÉLÉAS, Josette. Op. Cit., p. 158.
7. BONDANELLA, Peter. Op. Cit, 2008.
8. DÉLÉAS, Josette. Op. Cit., p. 161.
9. KEZICH, Tullio. Federico Fellini. His Life and Work. New York/London: I.B. Taurus, 2006. P. 137.
10. MARCUS, Millicent. After Fellini. National Cinema in the Postmodern Age. Baltimore (USA): The Johns Hopkins University Press, 2002. P. 283.
11. MARCUS, Millicent. Italian Film in the Shadow of Auschwitz. Toronto: University of Toronto Press, 2007. P. 59.
12. Idem, pp. 76-7.
13. Ibidem, pp. 55-6.
14. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., 2008. P. 352.
15. MARCUS, Millicent. Op. Cit., 2007. P. 29.
16. DÉLÉAS, Josette. Op. Cit., p. 152.
17. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., 2008. P. 363.
18. DÉLÉAS, Josette. Op. Cit., p. 161.
19. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., 2008. P. 365.
20. DÉLÉAS, Josette. Op. Cit., p. 159.
21. MARCUS, Millicent. Op. Cit., 2007. pp. 58-9. Marcus se refere ao conceito elaborado por Barbara Creed, em Monstrous-Feminine. Film, Feminism, Psychoanalysis. London/New York: Routledge, 1993.
22. Idem, pp. 56-7.
23. DÉLÉAS, Josette. Op. Cit., p. 159.
24. Idem, p. 154.
25. Ibidem, p. 157. 


21 de jun. de 2010

Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (VI)



“A mulher representa
a vitalidade
.  As coisas
morrem e sentimos dor
,
mas  então  a  vitalidade
retorna
:  eis  o  que  a
mulher representa”


Halliday, personagem de Gaviões
e Passarinhos
, direção Pasolini


O Cinema Italiano (Que Não Foi B
anido)

O cinema italiano gerou muitos filmes que abordam o tema, poderíamos destacar alguns entre tantos, embora não toquem “na ferida” como Pasolini. Em As Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, direção de Federico Fellini, 1957), a prostituta Cabíria passa de mão em mão. Devido a seu conhecimento da gíria das ruas e favelas da periferia de Roma, foi o próprio Pasolini que escreveu os diálogos dessas mulheres, tanto em As Noites de Cabíria quanto em A Doce Vida (La Dolce Vita, direção de Federico Fellini, 1959). Em Accattone. Desajuste Social (Accattone, 1961) e Mamma Roma (1962), Pasolini mostrou o cotidiano das prostitutas e cafetões na periferia de Roma e na margem do Milagre Econômico italiano. Em Mulheres no Front (Le Soldatesse, direção de Valério Zurlini, 1965), um grupo de prostitutas é levado para servir às tropas italianas que invadiram a Grécia durante a Segunda Guerra. Em Adua e suas Companheiras (Adua e le Compagne, direção de Antonio Pietrangeli, 1960), acompanhamos a nova vida de algumas ex-prostitutas na esteira da lei que baniu os bordeis e tornou a prostituição ilegal. Em Kapò (direção de Gilo Pontecorvo, 1960), estamos em Auschwitz, onde uma prisioneira acredita que sua única chance de sobreviver é se prostituindo aos nazistas, ela acaba sendo promovida ao posto de guarda, uma das judias que vigiava os próprios judeus. Em Feios, Sujos e Malvados (Brutti, Sporchi e Cattivi, direção de Ettore Scola, 1976), uma bela jovem ganha dinheiro tirando fotografias para uma revista masculina, enquanto sua mãe ignorante acredita que aquilo é um emprego nobre de artista.



À hipocrisia
generalizada no âmago

do casamento, soma-se o machismo que presenteia
o homem com
a condição
de dono da mulher


Mais recentemente, em Malena (direção de Giuseppe Tornatore, 2000), uma viúva é deixada de lado pelo Estado e acaba se prostituindo. Os maridos tornam-se clientes dela, mas a repudiam quando suas esposas a expulsam da cidade. Enquanto isso, o marido, que na verdade não morreu, volta à cidade e é esculachado pelos mesmos chefes de família que desfrutaram de sua esposa indefesa. Em Mediterrâneo (direção de Gabriele Salvatores, 1991), produzido pelo próprio Berlusconi, voltamos à Grécia durante a Guerra. Uma prostituta vem oferecer seus “serviços” aos soldados italianos. Mas o filme de Pasolini foi o único que questionou radicalmente a hipocrisia do Estado italiano e sua promiscuidade. Basta lembrar também que, durante a década de 70, em plena explosão da indústria pornográfica, apenas o filme de Pasolini foi perseguido, censurado, banido. (as duas imagen acima: a prostituta "de" Accattone é surrada pelos inimigos napolitanos dele; a bolsa e o sapato de salto alto da mulher são transformados em signos da presença dela, uma marca registrada que parece não mudar através dos tempos, Accattone. Desajuste Social)

A Família e o Consumo 


“Como se enterra
firmemente um prego
entre as juntas das pedras
, assim penetra insidiosamente
o pecado entre a venda
e   a   compra”

Eclesiastes, XXVII, 2

A falsidade do movimento moralizante contido no “imposto pornô” proposto por parlamentares se estenderia ao suposto zelo do Estado italiano em relação à família. O poder precisa incentivar o comportamento hedonista para manter o consumismo de massa – viver o aqui e agora, mas só se for para consumir sem pensar. A religião e a Igreja estavam fora desse jogo e o indivíduo tinha que ser destruído. A família tornou-se o núcleo preferido pelo novo fascismo do consumo. O indivíduo não é confiável para uma estratégia de consumo, ele deve ser substituído pelo “homem-massa”. Em O Frango Caseiro (Il Póllo Ruspante, direção de Ugo Gregoretti, 1963), marido, esposa e filhinhos estão cercados pelas exigências do consumo, nota-se a insatisfação do marido. Ao chegar a casa, o pai é surpreendido pelo filho com uma arma de brinquedo e leva vários tiros de espoleta. Como desta vez o pai não descobre a identidade do bandido, a criança grita: “eu sou Pasolini!”




O   homem   pode
ser o dono da mulher
.
Mas o mercado é dono
dos dois
, que escravizará
através   das   chantagens sentimentais do casamento
, 
articuladas às exigências mercadológicas



Enquanto o pai tenta ligar a televisão recém comprada, o menino dispara vários tiros contra ela também. Pasolini dizia que abominava o consumismo no sentido físico do termo. O Frango Caseiro, que nem havia sido dirigido por ele, mostra claramente sua tese: é no seio da família que o homem se tornava um consumidor. Primeiro, as exigências sociais do casal, em seguida as exigências do capitalismo (a verdadeira família). O sentido de suas vidas passa a ser incorporar os valores do hedonismo de massa, cujos padrões de gosto estão no mais baixo nível, para que a manipulação se exerça livremente. O resultado é, disparou Pasolini, uma mutação antropológica dos povos e sua completa redução a um modelo único (1). (imagem acima, à esquerda, poderia ser qualquer parte do Brasil, mas trata-se de uma periferia italiana, em Gaviões e Passarinhos, Uccellacci e Uccellini, 1966; acima, as protitutas, Accattone. Desajuste Social; abaixo, à esquerda, Accattone delirando; à direita, Pasolini conversa com Anna Magnani, durante as filmagens de Mamma Roma, 1962)



A televisão,
autoritária
e repressiva,
materializa o
novo Poder



Pasolini responsabilizava a escola por ensinar apenas valores pequeno-burgueses e a televisão - que multiplicaria isso. Ele acreditava que a televisão, cujas vendas estavam então em plena expansão na Itália, era responsável pela degradação física e moral da humanidade. As auto-estradas, ligando toda a Itália ao centro (Roma), facilitavam a centralização. A mídia de massa era decisiva, um país que era muito variado em suas manifestações culturais foi gradativamente homogeneizado. Além de produzir e reproduzir consumidores, qualquer ideologia que não direcionasse ao consumo seria esquecida. A massificação do casal pequeno-burguês que valoriza apenas os bens de consumo gerou uma sensação de humilhação nos jovens subproletários italianos, que passam a esconder suas profissões – é preferível se apresentarem como estudantes. Como os pequeno-burgueses, eles também começam a desprezar a cultura e sua meta agora é se identificar com os modelos inoculados pela televisão. Quem não era burguês sentia-se humilhado. Para Pasolini, a televisão é tão repugnante quanto os campos de extermínio nazistas.



Pasolini
se ressentia de
não poder mais odiar a
burguesia, já que agora
todo italiano era

burguês



Nota:

Leia também:

Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I), (II), (III), (IV), (V)
Herzog, Fassbinder e Seus Heróis Desesperados
Crítica Cinematográfica e Mercado (I), (II)
Isto é Hollywood!

1. Palavras de Pasolini em Pas d’amour, pas de culture: um langage sans origine e le véritable fascisme e donc le véritable antifascisme, Écrits corsaires, pp.86-9. Citado em NAZÁRIO, Luiz. Todos os Corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007. P. 105.