20 de ago. de 2010

Roberto Rossellini e os Mistérios da Fé (final)



Junto com
Paisà e Europa 51
, Francisco, Arauto de
Deus
é um dos três
filmes favoritos de
Rossellini
(1)




 


Rossellini e Francisco

O roteiro de Francisco, Arauto de Deus se baseia em alguns episódios da vida de São Francisco de Assis e de seus primeiros seguidores, entre eles Irmão Juniper – Fellini estava entre os colaboradores no roteiro. Certos episódios são baseados em dois textos italianos anônimos do século XIV, As Florzinhas de São Francisco (I Fioretti di San Francisco) e A Vida do Irmão Juniper (La vita di Frate Ginepro). Rossellini acreditava que o primeiro guardava ainda a mensagem franciscana original, embora provavelmente desconhecesse que o escrito ataca a supremacia então exercida pelos frades conventuais sobre a Igreja, além de estimular a prática da pregação a partir do exemplo – questões que não seriam desconhecidas dos padres católicos que o auxiliaram no roteiro. Para uma exploração do efeito do cisma religioso sobre a unidade da crença religiosa e suas instituições teríamos que esperar por Agostinho (Agostino d’Ippona, 1972). No campo da política, a convicção de Rossellini quanto à necessidade de unidade foi mostrado em Anno Unno, o Nascimento da Democracia Italiana (Anno Unno, 1974), filme que realizou sobre a trajetória do político Democrata-Cristão Alcide De Gasperi (2). (imagem acima, São Francisco prega aos pássaros)



“Deus, Deus..., Francisco
cai ao chão e repete ante a visão do leproso que cruzou seu caminho. Identificado
com o sofrimento de Jesus... Francisco beija o coitado




Como a idéia do filme já vinha sendo gestada desde 1948, dois anos antes de o projeto ser iniciado, Millen não acredita que Francisco, Arauto de Deus tenha sido uma tentativa de Rossellini para aplacar a ira das autoridades eclesiásticas italianas (talvez também as norte-americanas) em relação ao escândalo que foi seu casamento com Ingrid Bergman – que se uniu ao cineasta sendo ainda casada e com uma filha pequena (3). De qualquer forma, foi aparentemente muito conveniente que seu lançamento no Festival de Veneza em 1950 tenha coincidido com o fato de que aquele foi declarado um Ano Santo pelo Papa Pio XII. Durante uma entrevista em 1954, para um jornal católico de cinema, Rossellini se referiu a esse período de sua vida como “cheio de amargura e desapontamento” e que este filme forneceu um modelo positivo para ele. Entretanto, confessou sua surpresa com o fato de sua intenção de compartilhar com o público a alegria que alcançou ao dirigi-lo não ter sido compreendida ou bem recebida – o filme não foi bem de bilheteria. (imagem acima, São Franscisco beija o leproso; abaixo, à esquerda, depois que o leproso se afasta)





Além de Francisco,
cobriram o rosto Karin,
em Stromboli
, na pesca e no topo do vulcão, e Katherine,
em Viagem à Itália, ao ver
o casal morto preservado
pela lava de Pompéia





De modo geral, a crítica especializada tendia a dar mais importância a outros filmes dirigidos pelo cineasta – mesmo os críticos que admitiram gostar de Francisco, Arauto de Deus. Talvez a comparação entre a visão contestatória em relação ao poder em filmes como Roma, Cidade Aberta e Paisà ainda estivesse muito impregnada de uma interpretação política de esquerda. Além disso, apesar do fato de São Francisco ser um dos santos padroeiros da Itália, sua imagem fora construída a partir da Divina Comédia, de Dante Alighieri (Paraíso, Canto XI), e do poeta e ideólogo da direita, Gabriele d’Annunzio – a partir do acordo celebrado entre o Vaticano e o Estado Fascista italiano em 1929, São Francisco de Assis e Santa Catarina de Siena foram proclamados os santos padroeiros da Itália (4). Por outro lado, a década de 50 do século passado foi bastante instável no âmbito político e militar, a Europa Ocidental era induzida a aderir à OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte, liderada pelos Estados Unidos), para fazer oposição à Europa Oriental, por sua vez sob influência dos soviéticos. São Francisco de Assis, tendo uma Oração pela Paz atribuída a ele, pode ter sido uma contribuição de Rossellini ao diálogo entre as nações.


Francisco, Arauto
de Deus
, poderia ser
a resposta de Rossellini
à incapacidade da Itália optar pela neutralidade numa época de enorme tensão entre  a  Europa ocidental  e  oriental
. E
havia também tensão
entre  o  Vaticano  e
ordens religiosas
(5)


De acordo com Millen, as declarações de Rossellini a respeito de sua fé religiosa parecem bastante evasivas, embora se possa dizer em sua defesa que é da natureza da fé que não possa ser confirmada ou negada por outras. Nos filmes de Rossellini, afirma Millen, infortúnios e tribulações parecem cair sobre as vítimas sem aviso, inesperada e imerecidamente. Isso causa um efeito emocional de medo primordial, notadamente em Roma, Cidade Aberta. Em Francisco, Arauto de Deus, esse medo de sofrer se resolve através da “perfeita alegria” dos franciscanos – essa era a sensação que Rossellini desejava comunicar à platéia para mostrar o que sentiu enquanto estava fazendo o filme, numa época de “amargura e desapontamento”. O medo de Juniper em seu encontro com o tirano Nicolau, seu sofrimento nas mãos do bando dele se resolve através de sua devota e santa indiferença ao sofrimento infringido a ele – sua participação num estado de graça. Segundo a evidência das cenas finais de Stromboli e Viagem à Itália, a graça pode ter visitado personagens que não a esperavam ou não mereciam sua intervenção – graça preveniente, graça preventiva, graça salvadora (6). (imagem acima, São Franscico; abaixo, à esquerda, o tirano Nicolau enfretado por Juniper)

As Palavras de Rossellini 



Rossellini
tinha amigos entre
as ordens religiosas
,
nenhum na Curia
do Vaticano





Sobre O Messias (Il Messia, 1978), último filme de Rossellini, o cineasta afirmou em entrevista que o projeto se encaixa perfeitamente em seu objetivo dos quatorze anos precedentes em que havia abraçado a televisão: a informação. E ele a distingue de uma busca da didática, em sua opinião não é preciso ensinar, mas fornecer dados brutos para que cada um possa elaborar por si mesmo. Neste contexto, a vida de Cristo, segue uma documentação que ele considera precisa porque baseada na bíblia. Rossellini procurou sempre se dirigir aos homens e tê-los como objeto. Cristo, disse Rossellini, em toda a história da humanidade foi aquele cuja mensagem soube mais profundamente explicar o homem para ele mesmo. Seguindo os Evangelhos, especialmente o de João, além de algumas passagens do Antigo Testamento. Rossellini disse também que se concentrou mais na palavra do que nos milagres. Estes são muito fáceis de serem criados na televisão e costumam convencer a poucos, já as palavras de Jesus são capazes de persuadir. O catecismo não dá conta delas. Além disso, muitos cristãos não conhecem as palavras de Cristo. Foi isso que Rossellini tentou fazer, colocar as palavras de Cristo em primeiro plano (7). (última imagem do artigo, todos se reúnem e São Francisco os dispersa pelo mundo para pregar a palavra)




No final
, sempre giramos
em círculos e esbarramos na
maior dificuldade
: explicar o homem para si mesmo






Rossellini ressaltou que as palavras de Jesus encontram sua força na simplicidade. Por exemplo, disse o cineasta, para ser compreendido, nas parábolas Jesus utilizou-se de fatos comuns da vida cotidiana. Assim que Rossellini reproduziu na tela essa vida cotidiana simples. Não criou efeitos espetaculares e preferiu atores não-profissionais ou atores desconhecidos. De acordo com o cineasta, um rosto conhecido encarnando Jesus seria como empregar os truques do cinema, ninguém seria persuadido. Rossellini insistiu em sua tese: apenas “mostrar”, um rosto conhecido iria “demonstrar”. Ele também destacou o papel do plano-seqüência em seu filme. Tudo concentrado no interior de uma única imagem, uma imersão do personagem em seu meio, a atmosfera, a luz, as horas que passam e os objetos que o circundam. Rossellini citou o exemplo das mãos de Pedro na Ceia. Um close nas mãos, enquanto pegam o pão e o vinho. Mãos cheias de calos de um trabalhador, de um homem simples. Em seguida, há um deslocamento para seu rosto. Seja um personagem mundano ou religioso, Rossellini buscava mostrar a realidade. Evocando certa realidade particular a Pedro, estas mãos “mostradas” “demonstram” mais do que demonstrações pretensiosas e subjetivas (8).




De acordo com Roberto Rossellini, não é preciso ensinar, mas fornecer os
dados para que cada um
os elabore por si mesmo




Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (I), (II), (III), (IV), (V)
Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I)
Zurlini e o Deserto de Nossas Vidas
Uma Judia Sem Estrela Amarela
Fellini e a Orquestra Itália
Jacques Tait e Seus Duplos (I), (II), (final)
As Tentações do Rosto-Paisagem

Notas:

1. MILLEN, Alan. Francis God’s Jester in FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (eds.). Roberto Rossellini, magician of the real. London: British Film Institute, 2000. P. 80.
2. Idem, p. 82.
3. Ibidem, p. 80.
4. Ibidem, p. 93n3.
5. Ibidem, p. 92.
6. Ibidem, p. 89.
7. Entrevista com Rossellini à Gian Luigi Rondi, 1975 In APRÀ, Adriano (org.). La Télévision Comme Utopie. Roberto Rossellini. Paris: Cahiers du Cinéma, 2001. Pp. 187-8.
8. Idem, pp. 189-90. 


19 de ago. de 2010

Roberto Rossellini e os Mistérios da Fé (II)




Com O Milagre
,
Rossellini se aproxima do cinema de Buñuel

Charles
Tesson (1)






 

De Paisà ao Beijo do Leproso

Ao contrário de Amédée Ayfre, Charles Tesson vê certa semelhança entre Buñuel e Rossellini. Segundo Tesson, Nazarin (Nazarín, 1958), dirigido por Buñuel, poderia ser uma refilmagem de Europa 51: redimir uma falha, justificar sua vida, dar um sentido à existência, o duro caminho da compaixão e a necessidade de sofrimento. O destino dos personagens (especialmente de Nazarin) que encontram sua verdade no final, mas ficam com um gosto amargo sem relação com a revelação e a graça, a redenção e a saúde, não estão longe dos personagens de Rossellini – mesmo que os caminhos destes sejam complexos e tortuosos, como em Stromboli e Viagem à Itália. A loucura e a santificação, estado final de Irene em Europa 51, é também o que espera Nazarin. Não nos surpreenderíamos, conclui Tesson, ao encontrar a mendiga de O Milagre ao lado de Nazarin, acompanhada por Andara e Beatriz, suas duas seguidoras. Ayfre parece preferir acreditar que Rossellini tinha uma maneira particular de olhar para “esses mistérios do mundo”. O mistério da morte, por exemplo, recebe tratamento especial em Paisà. Não é a câmera que vai buscar o guerrilheiro morto que desce o rio Pó numa bóia. Fixa num ponto, ela o espera passar e se aproximar da lente. Como seres incompletos, somos forçados a buscar nossos semelhantes. Mas em várias cenas os personagens se afastam daqueles que os rodeiam. O jogo ou, a hesitação, entre as câmeras objetiva e subjetiva inquieta ao evidenciar as incertezas do estar-no-mundo. Alguns outros exemplos na obra de Rossellini onde se pode perceber essa câmera de “duplo foco” em que uma consciência e uma paisagem se misturam são, o passeio do jovem Edmund nas ruínas de Berlim antes de se suicidar em Alemanha Ano Zero; Nanni escalando a montanha guiada por uma cabra em O Milagre (Il Miracolo, 1947) (imagem acima, após chegar à igreja vazia no topo da montanha, ela dá a luz); Karin explorando o labirinto da vila em Stromboli; o primeiro dia de trabalho de Irene na fábrica em Europa 51; os passeios de Katherine por Nápoles em Viagem à Itália. A estranheza dessas cenas nasce mais do realismo de suas imagens do que de qualquer irrealismo. Que elas terminem num grito, conclui Ayfre, não deveria nos impressionar, já que tudo nelas prepara a explosão (2).

A fenomenologia
de Ayfre dependia da
crença na superioridade estética do neo-realismo
,
o que faz com que algumas
de suas idéias constituam mais uma ética do neo- realismo de que uma

teoria do cinema (3)





De acordo com Ayfre, Rossellini se afasta de Simone Weil ao ultrapassar a necessidade do recurso ao transcendente. O interesse dele na reencarnação é a importância que atribuía ao “espírito da infância”, Ayfre sugere, o afastam do estoicismo e maniqueísmo na obra dela. Rossellini estaria mais para um católico ortodoxo. Quanto a isso, Ayfre destaca dois lados da questão. Por um lado, o cineasta mistura os mistérios mais sobrenaturais à vida mais cotidiana que se possa imaginar. Se em Europa 51 são os problemas religiosos do sentido da vida e do sentido de cada um dos personagens (os problemas do casal sendo uma conseqüência) (imagem abaixo, à esquerda, a explicação de Irene sobre a fé em Europa 51 deixa o padre confuso), em Stromboli (imagem acima), O Medo (La Paura, 1954) ou Viagem à Itália, acontece o contrário. Neste caso, a maneira como a ternura, o ciúme e a indiferença são apresentados os transforma em outra coisa, carregando-se de um peso de eternidade, para além das flutuações psicológicas.



Para Ayfre e Bazin
,
o neo-realismo foi um realismo humano que
ilustra com sua técnica
um incessante diálogo
entre os homens e a
realidade física
(4)






Por outro lado, quando a graça, ou mesmo o milagre, intervém na trama, nunca se dá a partir de uma ruptura aparente ou extraordinária (ainda que às vezes seja pelo heroísmo), mas sim através de uma continuidade a partir de uma nova luz, de uma mudança de sentido. É por essa razão que acontecimentos como as lágrimas de Karin no topo do Stromboli, a multidão que grita por um milagre no final de Viagem à Itália, ou ainda os “mio santo figlio” da pobre em O Milagre, são sempre ambíguos sem jamais serem equívocos. Um “espírito da infância” atravessa toda a obra de Rossellini. Mas não se trata de saídas infantis. Supõe uma “alma nobre” e uma “perfeita alegria” incompatíveis com o inconsciente satisfeito e um otimismo sereno ou beato. O Cântico do Sol vem depois do Beijo do Leproso (última imagem do artigo) em Francisco, Arauto de Deus (Francesco, Giullare di Dio, 1950); e será apenas depois de um longo calvário que a “inocente” de O Milagre esquecerá toda dor, “feliz por ter colocado um filho no mundo”. (imagem abaixo, à direita, depois de ser pescado pelos companheiros, o guerrilheiro anti-nazista morto e lançado no rio Pó recebe uma sepultura; como lápide, o próprio aviso que os nazistas penduraram no cadáver que descia o rio)



De acordo com Amédée

Ayfre, a obra de Rossellini é sobre a Paixão de Cristo






Sem dúvida, revela Ayfre, o mistério cristão da redenção jamais é nomeado na obra de Rossellini. No entanto, tudo está na forma como ele apresenta as questões. Em sua crença na capacidade do neo-realismo em mostrar alcançar a realidade da vida Amédée Ayfre defendeu a hipótese de que A Paixão de Cristo está na própria alma do universo rosselliniano – a mudança de postura de Rossellini, defendendo um maior interesse pelos aspectos internos existenciais dos personagens em nada parece abalar a tese de Ayfre. Referências perceptíveis mesmo nas imagens de sua obra que pareçam mais afastadas e contrárias a esse universo religioso. Sem falar das imagens mais diretas, como a subida ao calvário de O Milagre e Stromboli, o Cristo indignado de Roma, Cidade Aberta, A Pietá de Alemanha Ano Zero, os gemidos “crucifixo, crucifixo” de São Francisco em Francisco, Arauto de Deus, ou os “bairros populares” (as favelas Primavalle e Tiburtino III) de Europa 51 (5).


“Só quem está
ligado a nada
, está
ligado a todos os
seres humanos”


Irene,
ao juiz que pretende
determinar se a fé dela
é na verdade loucura




Leia também:

Rossellini, Cidadão Italiano
A Diva e a Magnani
Accattone: Favelado, Cafetão e Cristo
A Itália em Busca do Realismo Perdido (I), (II), (final)
Roberto Rossellini e os Mistérios da Fé (final)  
Bertolucci e a Revolução Burguesa
Buñuel, o Blasfemador (I), (II), (final)
Yasujiro Ozu e Seus Labirintos

Notas:

1. TESSON, Charles. Luis Buñuel. Paris: Éditions de l’Étoile/Cahiers du Cinema, 1995. Pp. 227-8.
2. AYFRE, Amédée. Sens et Non-Sens de la Passion Dans L’univers de Rossellini In ESTÈVE, Michel (org.) La Passion du Christ Comme Thème Cinématographique. Paris: M.J. Miniard – Lettres Modernes, Études Cinématographiques, 10-11, vol. II, 1961. Pp. 179-80.
3. ANDREW, Dudley. As Principais Teorias do Cinema. Uma Introdução. Tradução Tereza Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989. P. 247.
4. Idem, p. 248.
5. AYFRE, Amédée. Op. Cit., p. 183. 


17 de ago. de 2010

Roberto Rossellini e os Mistérios da Fé (I)




“Sem dúvida
,
Rossellini não
é Buñuel
(...)

Amédée
Ayfre (1)




 

Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!

Mesmo em filmes como Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta, 1945), Paisà (1946) e Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero, 1948), famosa trilogia pela qual Rossellini é muito lembrado, é possível perceber que ele não está abandonando preocupações existenciais mais profundas em nome de um discurso mais engajado na realidade da Itália do imediato pós-guerra. Esta é a opinião de Amédée Ayfre, padre jesuíta e amigo do crítico francês Andre Bazin, que se tornou um estudioso do cinema preocupado com a interseção entre as imagens da sétima arte e o sagrado. Bazin e Ayfre compartilhavam uma visão fenomenológica do cinema que, de acordo com Dudley Andrews, após a morte de ambos (entre 1958 e 1963) perderia a força que teve (2). Ayfre sugeriu que Rossellini opõe à força das armas e da lei um “espírito desarmado”. Assim como Joana D’arc no Fogo (Giovanna d’arco al Rogo, 1954), o militante comunista de Roma, Cidade Aberta morrerá invicto sob a tortura, enquanto o padre olha para os carrascos nazistas e se entrega à ira ao vê-lo morto (“Malditos. Serão esmagados como vermes”) (imagem acima). Em Europa 51 (1952), Irene se oporá a todos os conformistas, seja do seu meio, da Igreja ou do Partido, antes de ser trancada pela ciência oficial no manicômio. Mas será ela quem testemunhará o melhor para a liberdade de espírito, como em Onde Está a Liberdade? (Dov’é la Liberta, 1954), com um pouco mais de humor (3). Entretanto, ele se pergunta à que vítima seria permitido proclamar a vitória da Verdade sobre a aparente vitória de seus carrascos? O mal triunfará, conclui Ayfre, se o mártir o for apenas para si mesmo!




Adepto de uma
teoria fenomenológica
do cin
ema, Amédée Ayfre pretendia desvendar uma
verdade impossível de
reduzir à lógica
(4)





Ayfre invoca os escritos de Intuições Pré-Cristãs, onde Simone Weil disse que a infelicidade teria como função forçar a alma a gritar: “por que”. A alma gritará sempre que a falta de finalidade inerente ao universo tocar o vazio. Se não se renuncia a amar, chegaríamos um dia a ouvir, não uma resposta porque esta não existe. Mas um silêncio muito mais significativo, a própria palavra de Deus. É por este caminho que Irene sai do impasse, mas só perceberá quem pensa como Weil. O próprio Rossellini disse que fez de Irene uma irmã espiritual de Simone Weil. Ayfre acredita que esse grito do qual falava Simone pode ser ouvido de uma forma ou de outra em todos os filmes do cineasta. Na oração silenciosa do padre, e mesmo de seu gesto de cólera diante do torturado em Roma, Cidade Aberta; ou daquela mulher que grita ao ver o menino cair do prédio, se aproxima para olhar, exclama um “Meu Deus!” e se ajoelha diante da criança morta no final de Alemanha Ano Zero (última imagem do artigo); das lágrimas de Irene enquanto se afastam aqueles que vêem nela uma pobre louca; do casal de Viagem à Itália (Viaggio, in Italia, 1954), separado por tantas coisas, mas bruscamente procurando se reunir sem saber por que no final do final, no meio da multidão delirante da procissão (abaixo, à direita); ou ainda mais explicitamente em Stromboli (Stromboli, Terra di Dio, 1950), Karin no topo do vulcão “Meu Deus! Meu Deus!” (imagem acima). “Meu Deus!”, explicou Rossellini, “é a invocação mais simples, a mais primitiva, a mais comum que pode sair da boca de um ser invadido pela dor. Pode ser uma invocação mecânica ou a expressão de uma verdade superior. Num caso ou noutro, é sempre a expressão de uma mortificação profunda que pode ser também o primeiro brilho de uma conversão” (5).

Santos e Pecadores



A santidade de Iren
e
está em sua fraqueza
,
assim como a pobre
mulher de
O Milagre






Esses gritos da “voz humana” nas trevas são sempre um apelo mais ou menos consciente à Luz – referência de Ayfre ao texto de Jean Cocteau, Uma Voz Humana, filmado por Rossellini em 1947 e lançado num filme em dois episódios, O Amor (l’Amore), o segundo sendo O Milagre (baseado em texto de Federico Fellini) (imagem acima); ambos protagonizados por Anna Magnani. Esta é a conclusão de Ayfre, para quem o mal não é um absoluto, defendendo a existência de um para além do mal. Para alcançá-lo, diria Rossellini, não seria suficiente ir ao psicanalista, ou se encher de cocaína e tranqüilizantes. Trata-se, sobretudo de, e ainda sob a égide de Simone Weil, sentir “através do sofrimento, a presença de um amor análogo àquele que lemos no sorriso de um rosto amado”. Não se trata também de abandonar o combate necessário à miséria do mundo, porém ela terá adquirido outra feição explica Rossellini: “É preciso que o homem esteja na luta, com uma imensa piedade por todo mundo, por si mesmo, pelos outros, com muito amor, mas é preciso estar muito firme na luta”. Mas ultrapassar o desespero e o ódio, Ayfre sugere, não faria nenhum sentido se não se acredita que possa ser ouvido o apelo ao Testemunho supremo de toda justiça.


Segundo Ayfre,
muitos dos estudos
sobre arte impõem as leis
da sociologia
, da lingüística, semiótica, etc, para descobrir
a posição de um trabalho
em relação à vid
a. Mas
nunca estudam a
própria vida
(6)




Por outro lado, Ayfre alerta que a confiança de alguns na possibilidade da resposta não significa que sejam santos. Afinal, aqui em baixo, santos não são sempre pecadores? Talvez seja o caso de Irene em Europa 51, cheia de defeitos embora considerada uma santa para os desvalidos que ajudou. Além do que, as razões de suas ações permanecem tão obscuras para ela quanto para seus parentes, que não compreendem o interesse dela pelos pobres após a morte de seu filho. Ayfre enumera alguns equívocos e incongruências presentes no comportamento dela: renúncia genuína e auto-acusação mórbida muitas vezes misturam-se; sua hipersensibilidade que muitas vezes exagera, distorcendo as manifestações mais puras; certo irrealismo; falta de experiência que a impede de encarar situações imprevistas - de modo que Irene nem sempre escapa à extravagância gratuita e ao ridículo. Se existe alguma santidade, aflora apesar das fraquezas dela. Irene prefere estar próxima daqueles cujo destino pretende influenciar, mas compreende quando eles não se contentam com um paraíso que só será conhecido pelas gerações futuras.



Em conversa com
André
, o comunista,
Irene diz que para ela
só existe um paraíso
,
que inclui os vivos e
também os mortos
(7)







Leia também:

Notas:

1. AYFRE, Amédée. Sens et Non-Sens de la Passion Dans L’univers de Rossellini In ESTÈVE, Michel (org.) La Passion du Christ Comme Thème Cinématographique. Paris: M.J. Miniard – Lettres Modernes, Études Cinématographiques, 10-11, vol. II, 1961. P. 172.
2. ANDREW, Dudley. As Principais Teorias do Cinema. Uma Introdução. Tradução Tereza Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989. P. 242.
3. AYFRE, Amédée. Op. Cit., p. 175.
4. ANDREW, Dudley. Op. Cit., pp. 185 e 243.
5. AYFRE, Amédée. Op. Cit., pp. 176-7.
6. ANDREW, Dudley. Op. Cit., pp. 242-3.
7. AYFRE, Amédée. Op. Cit., pp. 177-8.