28 de nov. de 2018

De Crápula a Herói


“O último refúgio de um canalha é o patriotismo”

Samuel Johnson (1709-1784), escritor e crítico inglês 

Esta frase é atribuída  a  Johnson por seu biógrafo,  James Boswell.  O  escritor
se refere 
  a um  patriotismo  negativo,  que  atribuiu  pejorativamente  aos  “patriotas  autoproclamados” 
em geral, que distinguia do “verdadeiro” patriotismo, o qual defendia e acreditava existir

Às Vezes Acontece
Vigarista e trapaceiro, Bardone vive de pequenos expedientes para tirar dinheiro das pessoas durante a ocupação da Itália pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial – o país já havia sido invadido pelas tropas aliadas. Covarde, seu alvo preferido são as mulheres e os velhos. Contudo, Bardone tem um vício, jogos de azar. Certo dia acaba fazendo amizade com um coronel alemão cujo carro estourou o pneu - Bardone se apresentou como Grimaldi, engenheiro. Estava aplicando mais um de seus golpes quando é finalmente apanhado. Para azar de Bardone, o chefe de polícia é justamente o coronel Müller, a quem enganou diretamente ao dar uma identidade falsa – sentença: fuzilamento. Mas o trambiqueiro está com sorte, o nazista lhe oferece um milhão de liras e um salvo-conduto para a Suíça, em troca ele deverá fingir ser um líder da resistência antifascista recentemente morto – fato que será escondido de todos. É assim que o vigarista assume a identidade do general Della Rovere.
Então Bardone vai para a prisão como della Rovere, com a tarefa de descobrir a identidade do homem que faz o contato com a resistência, devendo entregá-lo à Müller para receber sua recompensa. Durante sua estada na prisão, Bardone fica chocado com as frases escritas nas paredes de sua cela por outros que ali estiveram e sabiam que seriam fuzilados. Aos poucos o vigarista será corroído pelo remorso de trocar sua vida de escória da sociedade pela de corajosos guerrilheiros. Depois de ser torturado pelos alemães, Bardone supera sua crise de consciência e assume o lado dos resistentes contra o invasor. No final, não entrega o nome do contato e acaba por vontade própria sendo fuzilado como general Della Rovere.

Resistência sem Militares


 Se  no  imediato pós-guerra a Resistência antifascista italiana era
 vista como um fato político-organizacional, nos filmes dos anos 1960
 vigora o prisma emotivo e moralista, daí a perda de credibilidade

Evidentemente, faz sentido inserir De Crápula a Herói (Il Generale Della Rovere, 1959), de Roberto Rossellini, dentre os filmes da década de 1960 que retornaram ao tema da luta antifascista da Resistência contra o invasor nazista na Itália, assunto que havia sido recorrente nos filmes italianos produzidos entre 1944 e 1946. Mariarosaria Fabris explica que a temática da Resistência foi abandonada em 1947, num momento politicamente instável do país, para ser retomada em 1951 por Carlo Lizzani, com seu A Rebelde (Achtung! Banditi!), quando as forças conservadoras já haviam se restabelecido no poder (1). Entre 1959 e 1961, Rossellini realiza a transição definitiva a um cinema histórico de caráter didático (2). Muitos, especialmente os críticos de esquerda, questionaram os filmes realizados nesta fase como um retorno a certa dramaturgia mais convencional anterior ao Neorrealismo (3). Já em 1966, podia-se ler a seguinte crítica sobre De Crápula a Herói:

“O filme, no entanto, decepcionou. Rossellini acreditava poder retomar seu discurso sobre a luta antifascista iniciado com Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, 1945) e continuado em Paisà (1946), mas, na realidade, a crônica sincera daqueles dois filmes era substituída por uma história mitificada e, na opinião de Mario Alicata, falsificada: ‘é realmente uma falsificação da Resistência; a partir do momento em que cria o mito desse general do exército, o qual [...] resulta esperado por todos os participantes da Resistência como o homem decisivo para a situação, se afasta daquelas características graças às quais a Resistência italiana se diferencia das demais. Aquele era um filme que teria servido muito bem se tivesse querido interpretar a Resistência francesa, na qual também a classe operária lutou, teve tantos heróis e tantos mártires, foi um fenômeno popular, na qual, porém, persistiu a direção da velha classe dirigente, personificada pelo general De Gaulle, enquanto a característica da Resistência italiana foi que os chefes da Resistência, os chefes militares, os ‘quadros’, saíram das massas populares, dos partidos políticos, e os militares [...] aceitaram aquela direção’” (4)


 De Crápula a Herói  forma  trilogia  de  retorno ao tema da guerra, 
cuja segunda parte, Era Notte a Roma (1960), não foi elogiada pela
crítica  (5), por  apresentar  uma  visão  estereotipada da Resistência
  a terceira parte virá com a série para tv A Idade do Ferro (1965(6)

É neste contexto que surge De Crápula a Herói, dividindo o Leão de Ouro no Festival de Veneza com A Grande Guerra (La Grande Guerra, 1959), realizado por Mario Monicelli. Desta forma, o Fascismo, a guerra e a Resistência retornam à cena. Contudo, de acordo com Fabris, as décadas que se passaram não foram capazes de permitir a retomada destes temas a partir de um ponto de vista mais apropriado, os filmes realizados entre 1959 e 1963 propõem uma visão estereotipada da Resistência, sem a devida reinterpretação crítica. Pelo contrário, se antes a Resistência era vista como um fato político-organizacional, nos filmes dos anos 1960 ela seria vista mais através do prisma emotivo e moralista. O historiador de cinema e crítico Lino Micciché sugere uma explicação para o retorno dessa temática:

“A floração de uma corrente cinematográfica, que variadamente se inspirava em fatos, episódios e questões políticas dos anos dramáticos da ditadura, da guerra fascista, da Resistência e da queda do regime, não era somente um expediente de produção, mas tinha, certamente, ligações precisas com o debate político que naquela época de transição existia no país. As ambições neocapitalistas e as esperanças reformadoras confluíram na necessidade comum de liquidar historicamente o fascismo, por um lado, como extrema ratio [última solução] do paleocapitalismo [o primeiro estágio de desenvolvimento de um sistema capitalista] que tinha caracterizado a jovem sociedade italiana dos primórdios do século XX, depois de Versalhes [local do acordo dos vencedores da Primeira Guerra Mundial, no qual a Itália saiu insatisfeita, uma das raízes do Fascismo], e, por outro, como a fase de um choque frontal, e sem possíveis tréguas conciliatórias, entre burguesia e proletariado... Estava implícito nessas novas tendências nacionais e internacionais que o fascismo fosse transformado em história e que fosse representado com o desencanto psicológico e o distanciamento crítico de uma sociedade, nacional e internacional, que se julgava definitivamente protegida em relação àquela experiência histórica” (7)

O Insignificante Redimido


“Nunca teria acreditado que fosse tão fácil morrer”

 Nas paredes da cela, Bardone encontra frases de membros 
da Resistência  que  sabem  que  serão  fuzilados em breve

Visto por outra perspectiva, quando realizou De Crápula a Herói, Rossellini já havia deixado para trás clássicos neorrealistas como Roma, Cidade Aberta e Paisà, sem falar nos filmes do “ciclo Ingrid Bergman” como Viagem à Itália (Viaggio in Italia, também conhecido como Romance na Itália, 1954). O início de sua fase de documentários históricos para televisão, com India: Matri Bhumi (que também teve uma versão para cinema, 1959), que apareceu no mesmo ano, ainda seria entremeado com alguns filmes para cinema até 1961. Com a reconstrução do pós-guerra, não havia mais como filmar as ruínas de prédios bombardeados. Além disso, de acordo com Peter Bondanella o olhar de Rossellini em relação à guerra havia mudado consideravelmente desde 1945, agora está tingido de uma consciência irônica de que os sacrifícios feitos durante o tempo de guerra não levaram à primavera que seus personagens sonharam em Roma, Cidade Aberta.

“Quando sua parceria com Ingrid Bergman terminou, ele realizou O Medo (La Paura, 1954), filme do qual ele parece estar ausente. Pouco tempo depois foi para a Índia, onde reencontrou sua autoconfiança, juntamente com seu potencial expressivo e uma virgindade visual que o permitiu responder a mais de uma das questões que havia perguntado a si mesmo durante os anos anteriores. Seu retorno à Itália e o laçamento de De Crápula a Herói, agraciado com o Leão de Ouro em Veneza, o permitiu recuperar a reputação que perdera entre público e crítica. Era uma vez mais aclamado como um mestre do cinema italiano. A luta pela libertação [durante a Segunda Guerra] e a guerra civil [depois do conflito], temas que reprimiu por uma década, agora retornam como inspiração central para os diretores italianos, no momento em que o país está atravessando uma fase de importante transformação e crescimento democrático” (8)

Rossellini optou por não se concentrar nas implicações políticas da luta contra o invasor alemão, apresentando-nos um exemplo do tema do choque entre realidade e aparência, através da transformação da personalidade de Bardone. Durante um bombardeio próximo da prisão, o vigarista está tremendo de medo e acaba levando todos os detentos a gritarem pedindo para sair dali. Ele percebe o pânico e, apresentando-se como general Della Rovere, aos gritos conclama os prisioneiros a mostrarem coragem diante do invasor nazista. A seguir, será torturado como eles. Ao receber as cartas endereçadas ao Della Rovere verdadeiro (enviadas pela esposa, que acredita que está vivo), Bardone será engolido pelos dramas pessoais do general, além de interagir com os detentos como se fosse ele. Gradualmente, Bardone emerge de sua original condição de delator insignificante e vai se transformando na figura ilibada de Della Rovere (9). Em 1962, Glauber Rocha encaixou Bardone uma mística de Rossellini:

“Em Il General Della Rovere o caminho que leva o Crápula a se converter em Herói não é a consciência política sistematizada, mas a consciência múltipla forçada pela violência, amor, morte, respeito ao homem e principalmente pela solidão. O solitário prisioneiro numa cela nua, onde apenas inscrições de condenados se projetam como fantasmas naqueles dias, compreende o valor do homem. Sua política é mística e implica uma negação do ser comprometido por esquemas exteriores. Quando o crápula compreende a importância do heroísmo – que surge da necessidade coletiva – ele se converte em herói, mas porque ser herói é buscar a salvação de outra espécie que não a cristã. Se [Bardone] procurava a salvação econômica na Itália conflagrada pela guerra, agora, diante da imensa fortuna (um milhão de liras e um salvo-conduto para a Suíça), na solidão do cárcere, prefere salvar a consciência adquirindo a personalidade heroica do General della Rovere, um Mito, nova existência mesmo atingida pela morte. O comandante alemão não entende o novo herói. Rossellini talvez não o entenda também e é por isso que o close do herói morto [no final] não surge na tela. Como Brecht, Rossellini deixa que o espectador seja um crítico. Atingir nova existência além da vida (para quem não acredita no Deus bíblico reduzido ao Deus católico ou protestante) é a origem de um misticismo que, no caso rosselliniano, poderia ser chamado de misticismo social” (10)


Rossellini considerou De Crápula a Herói um filme insatisfatório (11)
Aquela persona o domina, até que Bardone se torna a pessoa que pretendia inicialmente apenas fingir que era. Ele chega a descobrir a identidade do guerrilheiro, mas agora já está transformado e não irá revelar, preferindo morrer com os outros patriotas. Sua execução, concluiu Bondanella, representa sua última trapaça. Através deste retrato de um criminoso insignificante simpático que assume a identidade de um personagem corajoso, Rossellini apresenta uma marca de heroísmo bastante distinta daquela que emana da luta maniqueísta entre o bem e o mal presente em Roma, Cidade Aberta
Segundo o ponto de vista feminista de Marga Cottino-Jones, é sintomático que com o fim do ciclo Ingrid Bergman, Rossellini parece ter perdido o interesse em retratar a luta das mulheres por autoconsciência e tenha retornado aos heróis masculinos, como em De Crápula a Herói, e, posteriormente, seguido pela via dos documentários históricos, todos centrados em personagens masculinos. Ainda assim, admite que a abordagem que Rossellini realizou das questões femininas é considerada única no cinema italiano das décadas de 1940 e 1950, influenciando seus colegas conterrâneos (12).
Desta forma, as conquistas políticas da Resistência antifascista são colocadas implicitamente em questão: apenas o ato de sacrifício pessoal de Bardone parece ter qualquer sentido para Rossellini, a causa pela qual Bardone morre não chega a chamar nossa atenção. Segundo Bondanella, como os melhores personagens dos filmes cômicos daquele período (início dos anos 1960), Bardone é um personagem problemático. Anti-herói, ambivalente, é mais apropriado para as incertezas de uma nova era do que para o período do imediato pós-guerra, quando fáceis escolhas morais maniqueístas encontraram campo extremamente fértil para florescer. 
Essa capacidade de atuar em papéis múltiplos num mesmo filme, apresentando personagens com temperamentos e moral distintas, acompanha a carreira do ator Vittorio De Sica faz tempo. Em 1937, atuou em Os Apuros do Senhor Max (Il Signor Max, direção Mario Camerini, 1937), quando apareceu como jornaleiro humilde que assume a identidade de um homem rico da alta sociedade. Em 1940 ele mesmo dirigiu um filme, Madalena, Zero em Comportamento (Maddalena... Zero in Condotta, 1940), onde atuou em três papéis, avô, pai e filho (13).

Atuação e Autenticidade


Rossellini não escolheu Vittorio De Sica por acaso.  A tensão entre
realidade  e  aparência  em De Crápula a Herói lembra Os Apuros
do Senhor Max,  onde  o  mesmo  ator  se  passa por um jornaleiro
 pobre que assume em segredo a identidade de um homem rico (14)

De acordo com Marcia Landy, em De Crápula a Herói, Rossellini utilizou a imagem de estrela de cinema de Vittorio De Sica para ilustrar a questão do elemento de teatralidade na vida e na ficção. Neste filme, as várias identidades de deste ator introduzem a questão de como determinar a atuação da estrela: como falsificada e inautêntica, ou, pelo contrário, confiável, real, heroica e “verdadeira”. O Bardone apresentado por De Sica é um jogador compulsivo, trapaceiro galanteador e colaborador dos nazistas com o objetivo de assegurar sua própria sobrevivência (15).
Sabemos que com o passar do tempo ele vai assumindo outra identidade. Contudo, na opinião de Landy, não é possível saber realmente se Bardone se assume como Della Rovere apenas para tentar sobreviver (uma vez que as tropas aliadas já estavam tirando a Itália das mãos dos alemães) ou se havia mesmo “incorporado” o guerrilheiro antifascista. A razão desta impossibilidade seria o fato de aqui a utilização da persona de De Sica estar ligada à impossibilidade, na relação entre a vida social e o estrelato, de identificar a persona “real” e sua autenticidade e motivos para atuar – traduzindo: não dá para saber quando uma estrela de cinema/televisão está atuando ou sendo ela mesma. 
De Crápula a Herói confunde ainda mais as fronteiras entre realidade e artifício ao apresentar De Sica, ator identificado com o papel de duplicação de personagens e representação em muitos filmes. Além disso, o filme apresenta elementos identificados com sua biografia, incluindo seu vício em jogatina, o comportamento mulherengo e sua identificação com a política de esquerda. Com tudo isso, o filme acaba questionando nossa crença numa identidade fixa e contribui para repensar o realismo. No fim de contas, não importa mais se Bardone se converteu ao heroísmo, mas se ele adotou outra persona socialmente aceitável, que se conforma às expectativas do comportamento heroico.
Para Landy, isso ainda quer dizer que no Neorrealismo que ela ainda reconhece em De Crápula a Herói envolve concepções do real distintas daquelas dos filmes sentimentais anteriores a este movimento. Citando Gilles Deleuze em Cinema 2 – A Imagem Tempo (capítulo 6), Landy conclui que “as ‘potências do falso’ são uma característica inevitável do mundo do cinema posterior à Segunda Guerra Mundial, que transferiu seu foco do ‘absolutamente verdadeiro’ para a contemplação de sua fabricação” (16).

Leia também:


Notas:

1. FABRIS, Mariarosaria. O Neo-Realismo Cinematográfico Italiano. São Paulo: Edusp, 1996. Pp. 38-42.
2. APRÀ, Adriano. Introduction à l’Encyclopédie Historique de Rossellini. In: APRÀ, Adriano (Org.). La Television Comme Utopie. Paris: Cahiers du Cinéma, 2001. P. 9.
3. FORGACS, David. Introduction: Rossellini and the Critics. In: FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (Eds.). Roberto Rossellini, magician of the real. London: British Film Institute, 2000. P. 5.
4. FABRIS, M. Op. Cit., pp. 50-1.
5. APRÀ, Adriano. Rossellini’s Historical Encyclopedia. In: FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (Eds.). Op. Cit., . 143.
6. FABRIS, M. Op. Cit., p. 41.
7. Idem, p. 42.
8. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A guide to Italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. P. 134.
9. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008. Pp. 162-3.
10. ROCHA, Glauber. Op. Cit., p. 213.
11. LANDY, Marcia. Stardom, Italian Style: Screen Performance and Personality in Italian Cinema. Indiana: Indiana University Press, 2008. P. 118.
12. COTTINO-JONES, Marga. Women, Desire, and Power in Italian Cinema. New York: Palgrave MacMillan, 2010. P. 81.
13. LANDY, M. Op. Cit., p. 56.
14. BONDANELLA, P. Op. Cit., p. 17.
15. LANDY, M. Op. Cit., p. 118-9.
16. Idem, p. 119.

31 de out. de 2018

Palhaços Fellinianos


“É culpa da perda da inocência, não há mais o olhar infantil
 dos palhaços.  Mesmo  as  crianças  não  são  mais  infantis”

Federico Fellini lamentando a situação dos palhaços de circo (1)

Qual é a Mensagem?

Em seu tão famoso filme (Otto e Mezzo, 1963), Fellini criou um personagem, Guido. Cineasta confuso, não sabe o que fazer com sua falta de inspiração – posteriormente, em suas memórias, Fellini confessa: “eu realmente gostaria de encontrar produtores que me mandassem fazer um filme sem filmá-lo: sem falsas esperas e promessas a manter” (2). No final apoteótico do filme Guido, que passa o tempo oscilando entre o presente e o devaneio (sonhar acordado) mais do que para seu passado, alcança o momento da criação (sempre irracional e misterioso, de acordo com Fellini). A mensagem de : criação a partir do nada ou, mais precisamente, dos recantos mais profundos da imaginação liberada do artista. “Eu sou Guido”, repetia sempre Fellini (3).
Na opinião de Peter Bondanella, esta ênfase na imaginação liberada é também o tema de Os Palhaços (I Clowns, 1970), combinando elementos de sua biografia pessoal (bem entendido, suas memórias de infância em torno do circo ou sua fantasia em torno do que teria sido esse passado), uma paródia de documentário (onde o próprio Fellini atua como pesquisador) implícita na sugestão de que a imaginação é mais “real” do que a realidade, e uma conclusão onde a imaginação do cineasta ressuscita a instituição moribunda da palhaçada. Ao longo da pesquisa de Fellini a respeito da história dos palhaços, somos levados à conclusão de que os palhaços estão mortos. Em determinada sequência, durante o funeral de um palhaço, alguém pergunta ao cineasta qual é a mensagem. Antes que pudesse concluir a resposta, um balde (jogado por um palhaço) cobre sua cabeça.

“Mensagens, nas palavras de um grande produtor de Hollywood, vem da Western Union [empresa estadunidense de serviços financeiros e comunicações], não de obras de arte. O magnífico cortejo fúnebre revitaliza a instituição dos palhaços por um breve momento, enquanto a criatividade de Fellini triunfa até sobre a morte antes que um comovente dueto de trompete por dois palhaços no centro do centro circular mágico do circo conclua o filme. Como conclui uma perspicaz interpretação de Os Palhaços, a visão cômica de Fellini aqui, como em 8 ½, depende da aceitação, ao invés da análise racional. Fellini aceita o absurdo de sua obsessão com uma instituição morta e, no processo de rir de si mesmo, alcança o impossível, ressuscitando os palhaços mortos num ‘mundo além da realidade’ que é o mesmo reino no qual a apoteose de Guido acontece” (4)


“O filme tenta reproduzir  um  mundo,  um  ambiente, 
de   maneira   vital.   Tenta   se   deter   nesta    dimensão, 
procurando recriar a emoção, o encanto, a surpresa” (5)

Fellini está convencido de que os palhaços pertencem há outro tempo, mas continua sua busca pelas relíquias do que chamou de “religião do riso” – sem esquecer o sorriso de Victoria Chaplin a filha de Chaplin que Fellini convidou para fazer uma ponta no filme. Kezich observa que além da divisão do mundo entre o palhaço branco e o augusto, Os Palhaços demonstra total desconfiança de Fellini em relação ao inquérito factual e a documentação da realidade - é um reflorestamento da antiga resistência anti-Zavattini de Fellini em relação ao realismo. Certa vez, Fellini até tentou racionalizar...

“Sempre fui atraído pela comédia, mas não sei por que nós rimos. Costumava pensar sobre isso. Teorizei que o riso era a liberação de tensões acumuladas em nós por um sistema social repressivo e ilógico. Então, vi um chimpanzé rir no zoológico. Acho que estava rindo de minha teoria. Aparentemente, chimpanzés tem um ótimo senso de humor” (6)
A arte dos grandes palhaços na história não será encontrada nos arquivos de cinema, assim como Bomba, a prostituta mítica que o cineasta procurou nas ruas de Roma durante a produção de Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957), ou o filme sobre os irmãos Fratellini que se queima justo quando ia ser projetado – um filme sobre o famoso Rhum também não passa de arqueologia sem sentido. Testemunhos também são efêmeros... Para Fellini, simplesmente é melhor reinventar os grandes artistas. Apesar disso, foi na gravação de um Bario Meschi emocionado demais para falar de si que Fellini encontra a conclusão poética para a conclusão de Os Palhaços: um famoso esquete dos palhaços Bario e Dario Meschi, quando o augusto procura desesperadamente pelo palhaço branco que foi declarado morto, encontrando-o no final num dueto de trompetes (7). Voltando ao balde atirado na cabeça do cineasta, Luis Renato Martins o articula também noutro sentido:

“Na obra de Fellini, a representação do autor como déspota, conjugando traços de vigarice e histrionice, parece recorrente. Um recenseamento incluiria, desde representações iniciais, em Mulheres e Luzes (Luci del Varietà, 1950), passando pelas figuras de Oscar e do mago de Noites de Cabíria, pela de Guido, com dotes de sultão, e, assim por diante. Um momento marcante dessa série estaria em Os Palhaços, em que, além de o clown branco, prepotente e vaidoso, encarnar o autor, destacar-se ainda uma cena, de folia de circo, em que Fellini – representando a si próprio, prestes a responder, no set de filmagens, a um jornalista que o interroga acerca da mensagem do seu filme – tem a sua cabeça colhida por um balde, arremessado de modo irreverente por um anônimo, fora da cena” (8)

Quem é Quem no Picadeiro Itália


“Se me imagino como palhaço, acho mesmo que devo ser um
augusto. Mas também um clown branco. Ou, talvez, seja o diretor
do  circo.  O  médico  dos  loucos  que,  por  sua  vez,  é  louco”

Federico Fellini (9) 

Fellini adaptou a frase de Shakespeare (“todo o mundo é um palco e os homens e mulheres meros artistas”) e afirmou que o mundo é um circo e os homens são todos palhaços, seja brancos ou augustos (que se chama Tony no circo italiano) – respectivamente, senhores e escravos, ricos e pobres, senhor e escravo. Tomando o circo como uma metáfora global, Fellini acredita que toda a humanidade pode ser dividida nestas duas categorias e oferece alguns exemplos históricos: Hitler é um branco, Mussolini um augusto; Pacelli (Papa Pio XII) é um branco, Roncalli (Papa João XXIII) um augusto; Freud é um branco, Jung um augusto. Fellini seria os dois! (10); Pier Paolo Pasolini seria um branco, do tipo agraciado e presunçoso, Michelangelo Antonioni também é um branco, mas do tipo silencioso, mudo, triste; Outro palhaço branco seria Luchino Visconti, um com grande autoridade. O escritor italiano Alberto Moravia é um palhaço augusto que queria ser um branco. Pablo Picasso é um augusto triunfal, audacioso, sem complexos, que sabe fazer de tudo e no final vence o palhaço branco.
Na opinião de Fellini, esse jogo é tão real que quando estamos na presença de um palhaço branco tendemos a ser o augusto e vice-versa. Em Os Palhaços, o encarregado da ferrovia é um palhaço branco, então todos (no caso, os meninos no trem fazendo piada dele) somos augustos. Na próxima passagem do trem, ele está acompanhado de um oficial fascista, que é um branco mais sinistro. Ao perceberem o militar, todos os meninos fazem a saudação fascista de maneira disciplinada. Para Fellini, aquela presença transformou todos em palhaços brancos. Giovannone, o abobado que mostra o membro como lebre morta para as camponesas é um augusto que nos transforma a todos em brancos quando dizemos, “mas o que está fazendo, Giovannone?” (11).

“[Greta] Garbo tinha uma máscara de juiz, glacial como a de um fantasma, uma espécie de versão feminina do papa. O de Chaplin era um rosto de palhaço branco, não totalmente inocente, porque jogava com seus afetos. Ele é como um sonâmbulo, ao mesmo tempo assombrado e assombrado. Gosto muito de Garbo, mas minha lealdade é dos grandes comediantes e tem sido assim desde a infância. Comediantes como o nosso Totó, cujo sorriso lembrou o Mensageiro da Morte, ou Buster Keaton, o bailarino - são meus favoritos porque os considero como os benfeitores da humanidade. Os palhaços nos fazem um mundo do bem, e fazer as pessoas rirem é minha verdadeira vocação” (12)

Informação x Expressão


(...) Para alguém que, como eu, acredita na expressão e não
na  informação   (ou  na  informação  que  nasce  da  expressão), 
a  televisão  parece  ter  limites   confinantes  demais.  Por  isso, 
considero falimentar a experiência com Os Palhaços (...)(13)

Entre 1969 e 1972, Federico Fellini realizou três filmes protagonizados por ele mesmo, onde o tema dominante é o metacinema, devotado à própria natureza do cinema: Block-notes di un Regista (1969), Os Palhaços e Roma de Fellini (Roma, 1972). De repente, Fellini passou do desprezo e desinteresse pela televisão (que já estava atrapalhando o funcionamento da indústria do cinema na Itália) ao desejo de realizar algum projeto para a telinha, que agora o cineasta afirma estabelecer uma relação mais íntima com o público. Isso aconteceu depois que ele foi abordado pelos produtores da NBC televisão, dos Estados Unidos, ainda que insistisse que no fundo a televisão o fascinasse. Das várias propostas que fez, chegou a realizar Block-notes sobre as filmagens de Satyricon de Fellini (Fellini – Satyricon, 1969), até que esse projeto de escrever para a televisão passou para as mãos da televisão italiana (RAI), então nasce Os Palhaços, espécie de documentário (14). 
Apesar de privilegiar mais a palavra do que a imagem, Fellini insistiu em afirmar que a televisão é apenas outra expressão do cinema. Entretanto, disse que o formato de entrevista o desagradou. Não só confessou que não sabia fazer perguntas como disse que não apenas uma entrevista é uma forma de invasão como a única informação que se consegue é a respeito do próprio entrevistador. Afinal, se Fellini não gostava das perguntas repetitivas de seus entrevistadores ao longo da carreira, como ele próprio se transformaria num deles agora, e que realidade ele seria capaz de capturar. Fellini desabafou:

“Sou novamente lembrado deste momento em Os Palhaços, quando um entrevistador me pergunta, ‘qual é a mensagem, senhor Fellini?’ Enquanto começo a responder à pergunta pesada no estilo pedante na qual acredito que ele estivesse esperando, um balde cai sobre minha cabeça cobrindo meu rosto, me impedindo de falar. Então, outro balde cai na cabeça do entrevistador. Esta cena curta é minha real resposta a este tipo de pergunta. Como eu era o diretor, podia fazer aquilo. Quantas vezes na vida fiz isso em minha mente para entrevistadores fazendo perguntas tolas” (15)

Além do mais, insistiu o cineasta, sua adesão às coisas é sempre subjetiva e emocional. Este último detalhe fica evidente na declaração de Fellini:

“Agora devo fazer uma confissão embaraçosa: não sei nada sobre o circo. Sinto-me a última pessoa do mundo a poder falar dele com um conhecimento histórico, de fatos, de notícias. Também devo acrescentar que assisti a pouquíssimos espetáculos circenses. Sob pena de entristecer com esta admissão – como se os traísse – os muitíssimos amigos que tenho no mundo do circo e que me tratam como se fosse um deles: um velho cavaleiro ou um engolidor de espadas. E, por outro lado, por que não? Ainda que não saiba nada, sei tudo sobre o circo, sobre seus bastidores, as luzes, os odores e até os aspectos de sua vida mais secreta. Sei, sempre soube. Desde a primeira vez, logo se manifestou em mim uma traumatizante e total adesão àquele alvoroço, às músicas ensurdecedoras, às aparições inquietantes, àquelas ameaças de morte” (16)


Tendo sido financiado pela televisão, ela reivindicava o direito 
à estreia. Os proprietários de cinemas protestaram,  mas não teve
  jeito.  Ocorre  que  a  estreia  na  noite  de  natal  não  foi  positiva, 
já que era um feriado e a televisão ainda era em preto e branco 

A estreia seria na noite de natal pela televisão, seguiu-se o protesto dos proprietários de cinemas, mas não teve jeito. Ocorre que a estreia foi ruim, já que era um feriado e a televisão ainda era em preto e branco. No dia 27, aconteceu a estreia nos cinemas, em cores. Mas o resultado foi uma catástrofe na bilheteria, já que ainda se estava durante o feriado de fim de ano. Fellini assistiu na casa de sua mãe em Rimini e não gostou, já que o filme estava muito menor do que ele queria fazer (17).
Peter Bondanella é categórico, enquanto instituição social e mídia artística, a televisão representa a antítese daquilo que Fellini acreditava constituir a essência do cinema. Seja como for, o cineasta não apenas realizaria Block-notes e Os Palhaços para televisão, como também comerciais de do macarrão Barilla, aperitivo Campari e o Banco de Roma, trabalhos que apresentam características com traços típicos da televisão e afastados da poética cinematográfica que sempre identificou Fellini (18).

“Após as revoltas do final dos anos 1960, que Fellini irá criticar duramente em Ensaio de Orquestra (Prova d’Orchestra, 1978), o diretor se inspira para evitar a repetição e se expressar honestamente. Subitamente, acolhe a ideia de trabalhar para a televisão, atraído pela possibilidade de não se preocupar com longa pré-produção e os obstáculos organizacionais da indústria do cinema. A televisão quase inteiramente elimina as lacunas entre inspiração e realização, ao mesmo tempo em que aumenta significativamente a audiência no mesmo momento que em o cinema está começando a minguar. Otimistas, Leone Film e RAI fazem um contrato para três filmes de televisão a serem coproduzidos com França e Alemanha. Enquanto isso, Fellini e Zapponi [que escreveria o roteiro junto com o cineasta] discutem os projetos na casa de Zapponi em Zagarolo, decidindo que o primeiro filme poderia ser sobre palhaços, a quem Fellini descreve como ‘os embaixadores de minha vocação’” (19)

Impasse Biográfico Bem Felliniano


“Em Os Palhaços, você nunca vê o rosto da criança, porque ela está
dentro de mim. Fui totalmente inspirado por Little Nemo. (...)
Quando  estudei  latim  na  escola,  fiquei  surpreso  ao
  aprender que ‘Nemo’ significa ‘ninguém’” (20)

Federico Fellini

Little Nemo  é  um  personagem  de  quadrinho  dos  Estados Unidos
criado pelo cartunista Winsor McCay, reproduzido entre 1905 e 1926
Da primeira vez que entrou numa lona de circo, contou Fellini em Fazer um Filme (Fare un Film, 1980), senti uma embriaguez, uma comoção, a sensação imediata de estar em casa, e nem estava ainda na hora do espetáculo. Era de manhã cedo, continuou o cineasta, e não havia ninguém. No silêncio ouviam-se apenas o canto de uma mulher estendendo roupas no varal ao longe e o relincho de um cavalo. Fiquei extasiado como um astronauta abandonado na lua ao encontrar sua espaçonave. Naquela mesma noite, o pequeno Federico assistiu ao espetáculo no colo do pai e ficou encantado. Fellini compara toda aquela mistura de animais, vários idiomas, homens, belas mulheres e palhaços, ao próprio cinema. De fato, em sua opinião, toda forma de espetáculo tem origem no circo:

“(...) Os palhaços berrantes, grotescos, atrapalhados, maltrapilhos, em sua total irracionalidade, violência, nos caprichos anormais, me pareceram os embaixadores embriagados e delirantes de uma vocação sem saída, uma antecipação, uma profecia: a anunciação feita a Federico. E de fato o cinema, quero dizer, fazer cinema, não é como a vida do circo? (...)” (21)

Correndo o risco de destruir a mística em torno da biografia do cineasta italiano, Tullio Kezich realizou a inglória tarefa de checar e comparar as famosas e muitas vezes mirabolantes histórias de Fellini a respeito de si mesmo (22). Em relação ao contato dele com o circo durante a infância, o que existe de fato é que o menino Fellini ficou impressionado quando foi assistir ao palhaço Pierino. Embora sua família sempre tenha negado o fato, o cineasta insistiu por toda a sua vida existir pelo menos um pingo de verdade na história de que fugiu para o circo assim que a cortina desceu. Talvez esse pingo de verdade tenha sido o simples desejo de uma criança pertencer ao circo depois da experiência de assistir pela primeira vez. Assim conclui Kezich, que sugere então que essa fuga realmente aconteceu, mas que apesar de ter sido apenas alguns dias, durou a vida toda de Fellini.

Reconciliação dos Contrários


“Os dois tipos de palhaço, o branco e o augusto, os quais
 representam  diferentes  aspectos  da  natureza  humana, 
se  reconciliam  no  final durante o solo de trompete” (23)

Embora em seu filme Fellini apresente os dois tipos de palhaço (branco e augusto), o próprio cineasta admite que quando diz “palhaço” ele pensa no augusto. De qualquer forma, encara os dois como as duas faces de uma moeda, onde o palhaço branco é a elegância em paetês, a seriedade e a inteligência, usa chapéu de cone e pinta o rosto de branco. O augusto usa roupas velhas e nariz vermelho, ele é como o menino que se rebela contra esse palhaço branco vaidoso e faz coco nas calças. Originalmente formavam duplas, onde o primeiro era mau e triste e o segundo bobo e alegre, até que o branco foi desaparecendo (24).

“Aquela mágoa, explicou Fellini, que existe na contínua guerra entre o clown branco e o augusto não se deve às músicas ou a algo parecido, mas às circunstâncias nas quais se apresenta aos nossos olhos um fato que diz respeito à nossa incapacidade de conciliar duas figuras. De fato, Quanto mais se quiser obrigar o augusto a tocar o violino, mais ele soltará puns com a corneta. Além disso, o clown branco pretenderá que o augusto seja elegante. Mas, quanto mais autoritário for esse pedido, mais o outro será maltrapilho, tosco, empoeirado” (25)
Fellini compara o palhaço branco com o professor, a mãe e o anjo com a espada flamejante, enquanto o augusto é, respectivamente, o menino, o filho mimado e o pecador. Representam duas atitudes psicológicas do homem divididas, explica o cineasta: o impulso para o alto (palhaço branco) e para baixo (augusto). Até que na sequência final de Os Palhaços, quando os dois se encontram e tocam trompete juntos significa justamente a reconciliação dos contrários, a unicidade do ser.

“Em Os Palhaços, Fellini afirma que os palhaços que vivem nas tendas de circos pertencem também à grande família dos seres estranhos e monstruosos que exibem sua loucura nas cidades italianas do interior. Onde encontrar as figuras do palhaço branco e do augusto? A pergunta é particularmente importante porque focaliza a concepção caricatural do trabalho do cineasta. Os rostos exteriorizam as neuroses da alma, os físicos grotescos do palhaço e do louco revelam uma loucura que, como no circo, está muito próxima do imaginário em estado puro. Os augustos nos lembram de que o espetáculo do circo é uma metáfora do mundo. Também neste sentido, o palhaço branco é uma figura apolínea e o augusto um ser dionisíaco (...)” (26)


Palhaços não têm sexo, diz Fellini. Gelsomina, Cabíria são augustos
assexuados,  assim  como  O Gordo e o Magro,  que  dormem
juntos inocentemente e por esse motivo fazem rir (27)

Fellini conta que os Fratellini introduziram um terceiro personagem, le contrepire, uma espécie de augusto aliado do patrão. Embora François Fratellini atuasse como um palhaço gentil, todos os brancos eram duros, zombavam do augusto e desfrutava dele. Em Os Palhaços, o desfile de palhaços brancos na passarela evidencia como sempre competiram entre si pela roupa mais pomposa. O augusto, por outro lado, é o eterno maltrapilho. Fellini chega a comparar a família burguesa ao branco, onde a criança é jogada na condição de augusto. O cineasta disse que só conheceu um palhaço mulher, miss Lulí. Contudo isso não parece fazer diferença, pois Fellini acha que os palhaços não tem sexo. 
Os papéis de sua esposa Giulietta Masina, Gelsomina e Cabíria, respectivamente em A Estrada da Vida (La Strada, 1954) e Noites de Cabíria, são dois augustos – embora Masina não se vise como uma palhaça (28). Contudo, insistiu o cineasta, são assexuados, são Fortunellos. Entre as décadas de 1920 e 1930 na Itália, que coincide com a primeira década de vida de Fellini, no jornal para crianças Corriere dei Piccoli muitas histórias com personagens importados eram reproduzidas ali com outros nomes. Desta forma, Happy Holligan (quadrinhos norte-americano do início do século XX, desenhado pelo cartunista Frederick Burr Opper) virou Fortunello (29). Em 1958, Fellini foi um dos roteiristas de Fortunella (direção Eduardo De Filippo), onde Masina é uma garota pobre que acredita ser filha de um príncipe. O comediante napolitano Totó era considerado pelo cineasta uma dos grandes palhaços:

“(...) O tipo de ator que sempre me encantou e fascinou, e pelo qual tenho, a cada vez, um sentimento de obscura e excitante predileção, é o ator-palhaço. O talento de palhaço que os atores em geral, sabe-se lá por que obscuro complexo, continuam a ver com antipática desconfiança é, para mim, sua qualidade mais preciosa, talvez já o tenha dito, mas estou com vontade de repetir, considero-o a expressão mais aristocrática e autêntica de um temperamento” (30)

Certa vez Fellini afirmou durante entrevista para Charlotte Chandler que quando era criança achava que ser um palhaço era uma da existência ideal a que alguém poderia aspirar, mas sabia que nunca poderia querer isso para si porque era muito tímido (31). Tullio Kezich vai dizer que Os Palhaços talvez o melhor autorretrato do cineasta italiano. Neste caso, é significativo o fato de que no relançamento do filme em 1977, o cineasta tenha pedido ao ator Gigi Proieti para dublá-lo. Kezich concluiu que essa atitude, tomada por alguém que nunca se esquivou de falar a respeito de si mesmo, soa como um receio de que ele tenha se exposto excessivamente (32). 

Leia também:


Notas:

1. ZAPPONI, Bernardino. Mon Fellini. Paris: Éditions Fallois, 2003. P. 55.
2. FELLINI, Federico. Fazer um Filme. Tradução Mônica Braga. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. P. 152.
3. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008.  Pp. 244-5.
4. Idem, p. 245.
5. FELLINI, F. OP. Cit., p. 154.
6. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995. P. 174.
7. KEZICH, Tullio. Federico Fellini. His Life and Work. New York/London: I.B. Taurus, 2006. Pp. 299-300.
8. MARTINS, Luiz Renato. Conflito e Interpretação em Fellini: Construção da Perspectiva do Público. SP: Edusp, 1993. P. 21n23.
9. FELLINI, F. OP. Cit., p. 173.
10. KEZICH, T. OP. Cit., p. 299; FELLINI, F. OP. Cit., pp. 173-4.
11. FELLINI, F. OP. Cit., p. 173-4.
12. PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003. P. 42.
13. FELLINI, F. OP. Cit., p. 183.
14. Idem, pp. 149-54.
15. CHANDLER, C. OP. Cit., p. 265.
16. FELLINI, F. OP. Cit., p. 154.
17. KEZICH, T. OP. Cit., p. 301.
18. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. P. 155.
19. KEZICH, T. OP. Cit., p. 298.
20. CHANDLER, C. OP. Cit., p. 175.
21. FELLINI, F. OP. Cit., p. 155.
22. KEZICH, T. OP. Cit., p. 8-9.
23. BONDANELLA, P. 2008. P. 246.
24. FELLINI, F. OP. Cit., p. 158-67.
25. Idem, p. 160.
26. QUINTANA, Àngel. Federico Fellini. Paris: Cahiers du Cinéma, 2007. P. 59.
27. FELLINI, F. OP. Cit., p. 166.
28. ZAPPONI, B. OP. Cit., p. 52.
29. KEZICH, T. OP. Cit., p. 9.
30. FELLINI, F. OP. Cit., p. 167.
31. CHANDLER, C. OP. Cit., p. 175.
32. KEZICH, T. OP. Cit., p. 302.

30 de set. de 2018

O Metalúrgico Grotesco de Wertmüller


Certos filmes dos anos 1970 mostram operários
 cada  vez  mais  perturbados  psicologicamente 

Gian Piero Brunetta incluiu dentre eles Mimi, o Metalúrgico (1)

Homem Pode, Mulher Não 

Em Mimi, o Metalúrgico (Mimì Metallurgico Ferito nell'Onore, 1972), Carmelo Mardocheo, também chamado Mimi, é um pedreiro de Catânia que perde seu emprego devido a sua oposição aos interesses da Máfia – votou nos comunistas ao invés do candidato da Máfia. Forçado a deixar a Sicília e sua esposa Rosalia, e, como tantos outros antes dele se mudar para Turim, no norte industrializado do país, teve de separar-se temporariamente de sua esposa Rosalia. Lá chegando junta-se a uma associação, Fratelli Siciliani, que arruma um lugar para ele morar e arruma emprego numa fábrica como metalúrgico. 

Contudo, logo Mimi percebe que por trás daquela fachada o negócio também é controlado pela Máfia. Mimi começa um romance com Fiorella Meneghini (Fiore), cujo comportamento e visão de mundo é muito diferente daquelas que ele conhecia na Sicília. Ela é financeiramente independente, mora em  apartamento próprio e vive sozinha, não pretendendo compartilhar sua vida privada com os homens.

Entretanto, Fiore também parece aceitar os preceitos católicos tradicionais da sociedade patriarcal ao se orgulhar de ainda ser virgem e aceitar sexo apenas dentro do casamento. Apesar de já ser casado na Sicília, Mimi se apaixona, se casa com ela e a engravida. Daí em diante, Fiore será enquadrada nos papéis tradicionais de esposa e mãe, perdendo sua identidade de espírito livre. Ela até aceita abandonar sua vida em Turim e retornar com ele para a Sicília, onde Mimi a mantém escondida com o bebê enquanto tenta cumprir o típico papel masculino do sul da Itália de reivindicar sua honra, ainda que não só já tivesse abandonado sua primeira esposa como a ignorava totalmente. 

Mimi descobriu que enquanto esteve fora (traindo sua primeira esposa), ela se “modernizava” abandonando seu lugar dentro de casa que a tradicional lhe impunha e teve um filho com outro homem. Mimi descobre que sua viagem para o norte do país não foi suficiente para libertá-lo dos valores culturais arcaicos do sul: ele pode trair a esposa com Fiore, mas o contrário não é possível e nem considerado lógico. Sua vingança: seduzir e engravidar uma terceira mulher; no caso, a gorda e feia bunduda Amalia Finocchiaro, esposa daquele que engravidou Rosalia.

Quando Mimi confronta seu rival (que é o chefe de polícia local) na praça da cidade, este leva um tiro disparado por pela Máfia. Mas é Mimi que vai para a cadeia, incriminado pelo pistoleiro, que coloca a arma em sua mão. Quando sai da cadeia, acaba tendo de trabalhar para a mesma Máfia que o levou a viajar para Turim, já que é forçado a sustentar Rosalia e Amalia, assim como todos os filhos.

As Feministas não Perdoam


Mimi, o Metalúrgico é o primeiro filme onde Wertmüller
retrata dois tipos distintos de mulheres,  que  retornam  em
obras  posteriores:  Fiore, magra bela, e Amalia, gorda feia

Marga Cottino-Jones (2)

Lina Wertmüller, nascida Arcangela Felice Assunta Wertmüller von Elgg Spanol von Braucich em 1928 em Roma, iniciou sua carreira em 1963 como assistente de Federico Fellini, colaborando no roteiro de 8 ½ (Otto e Mezzo). No mesmo ano realiza seu primeiro longa-metragem, mas o reconhecimento internacional só viria em 1975, com Pasqualino Sete Belezas (Pasqualino Settebellezze, 1975). Como em Divórcio à Italiana (Divorzio all'italiana, 1961) e Seduzida e Abandonada (Sedotta e Abbandonata, 1964), de Pietro Germi, o ambiente siciliano do início dos anos 1970 foi de fato o cenário perfeito para subtextos sociais subjacentes.

De acordo com Patrizia Carrano, o fato de mulheres assumirem o papel de diretoras de cinema não muda nada. Em sua opinião, referindo-se ao panorama europeu da década de 1970, ainda pesava a velha questão da criação para a dependência em relação ao homem. No cinema italiano, dizia Carrano escrevendo em 1977, existia muita autocensura por parte das mulheres cineastas – em tempo, entre 1961 e 1971, o Centro Sperimentale di Cinematografia diplomou apenas uma mulher, Liliana Cavani; em 1972, mais duas, Fausta Gabrielli e Anna Brasi. Com este tipo de criação escreveu também na época a pedagoga e feminista Elena Gianni Belotti, a criatividade das meninas já estaria definitivamente extinta aos seis anos de idade. Para Carrano, isso explica porque as mulheres italianas raramente possuíam o sentido da comicidade, pois é preciso ser capaz de capturar a realidade, dominá-la e derrubá-la (3). 

Ao contrário das feministas, pelo menos daquela época, para Marcia Landy, Wertmüller não apenas questiona a representação patriarcal misógina da mulher e da sexualidade típica do sul da Itália, como está antenada com a onda feminista contemporânea em seus filmes da décadas de 1970 e 1980.

“Embora tenha havido casos no passado de mulheres estrelas em filmes italianos (por exemplo, Elvira Notari e, em certa medida, Francesca Bertini) que assumiram papel ativo na produção em relação a seus personagens e possivelmente para decisões de direção, exemplos de cineastas mulheres que desfrutaram a mesma autoridade que cineastas homens e que alcançaram o mesmo status e fama são mais raras ainda que esta situação esteja melhorando modestamente). Duas grandes exceções do final do século XX são Liliana Cavani e Lina Wertmüller, sendo que a última alcançou maior publicidade, notoriedade e reconhecimento. Mais recentemente [Landy escreveu em 2008], Cristina, Francesca e Paola Comencini, Roberta Torre e Asia Argento. Contudo, essas diretoras mais recentes operam num meio econômico e social distinto, que torna o estrelato nacional e internacional mais efêmero” (4)


“As muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”

Primeira frase de Receita de Mulher (1957), do poeta brasileiro Vinícius de Moraes

Na opinião de Carrano, Wertmüller demonstra racismo sexual e verdadeiro horror ao próprio sexo, através dos papéis das mulheres em seus filmes. Neste filme, a crítica preferida de Carrano é a sequência em que Mimi seduz a esposa do policial para ter um filho com ela, já que o marido dela engravidou Rosalia, sua primeira esposa (mesmo que Mimi já a tivesse trocado por Fiore). Cada prega, insistiu Carrano, cada ruga, cada falha daquele corpo velho foi evidenciado através de uma gargalhada. Ainda segundo ela, o ódio profundo de Wertmüller pelas mulheres se revela nas figuras menores, os personagens coadjuvantes, sempre monstruosas, devoradoras, obscuras e revoltantes. 

“Amalia é a primeira das mulheres feias e gordas que Wertmüller insiste em cruelmente ridicularizar, enquadrando na tela em tomadas pouco estimulantes. O persistente close-up do traseiro enorme de Amalia é um exemplo claro da aversão pelo físico feminino que não se enquadra nos códigos padrão de beleza feminina. Concentrar-se em tais excessos com uma câmera tão implacável revela a falta de vontade desta cineasta mulher em lidar com as mulheres enquanto indivíduos. Essa sua preferência por generalizações desagradáveis e ridicularização na representação das mulheres é muito perturbadora, já que parece revelar uma visão misógina das mulheres ainda mais profunda e indelicada do que aquela normalmente mostrada por cineastas homens italianos na tela. A redução de personagens como Fiore de uma mulher independente para um tipo de mulher submissa e passiva, juntamente com a ridicularização cruel dos traços de um personagem como a feiura física de Amalia, serão tendências que Wertmüller exibirá na maioria de seus filmes” (5)


 Mimi, o Metalúrgico, reproduz um padrão na obra de Wertmüller: 
mulheres que no início do filme são independentes,  com potencial
para  romper  o  patriarcalismo  machista,  mas  terminam  sempre
se rendendo e aceitando  a  mordaça  do  casamento  tradicional (6)

Para Marga Cottino-Jones, vem de seu mentor, Federico Fellini, a tendência de Wertmüller de constantemente submeter suas personagens femininas a uma pressão esmagadora da ideologia patriarcal, que controla tanto a cultura quanto o cinema italianos. A maioria de suas personagens atuam em papéis tradicionais como esposas e mães ou são prostitutas exclusivamente destinadas a suprir as necessidades sexuais dos homens. Wertmüller até procura, admite Cottino-Jones, imaginar seus filmes em torno de personagens femininas que sugerem uma resistência aos papéis tradicionais das mulheres. Contudo, antes mesmo do final do filme, ela as aprisiona de volta nesses mesmos papéis tradicionais impostos pelo sistema patriarcal, como Fiore em Mimi, o Metalúrgico ou Salomé em Amor e Anarquia (Film d'Amore e d'Anarchia, Ovvero 'stamattina alle 10 in via dei Fiori nella Nota Casa di Tolleranza...', 1973). Ou ainda, faz com que essas personagens exibam características masculinas, como o instinto de poder e violência, como a comandante nazista em Pasqualino Sete Belezas e Raffaella, em Por um Destino Insólito (Travolti da un Insolito Destino nell'Azzurro Mare d'Agosto, 1974).

Na opinião de Cottino-Jones, provavelmente Paixão de Amor (Passione d'Amore, 1981), realizado por um homem, o cineasta italiano Ettore Scola, talvez seja o único filme italiano que aborda com grande sensibilidade a representação de uma mulher feia (7).

Comédia como Ponte


Para Maurizio Minnella, a ênfase excessiva num “pitoresco italiano”
atrelado a um elemento grotesco, ao invés de solução, é um beco sem
saída  para  a  compreensão da realidade cotidiana daqueles tempos

Segundo Maurizio Fantoni Minnella, um dos argumentos que durante os anos 1960 e 1970 certos diretores comprometidos propuseram para defender sua obra era que utilizariam os códigos do chamado cinema de gênero (comédia entre eles) como instrumento eficaz para veicular certos conteúdos políticos que de outra forma não apenas seriam censurados, mas talvez não fossem compreensíveis para o público de massa - Nos Estados Unidos, o título do filme foi The Seduction of Mimi, sendo a sedução direcionada à política, não ao coração (8). Na verdade trata-se aqui, explica Minnella, de uma releitura do princípio gramsciano da literatura nacional popular atualizado e revitalizado no interior de uma perspectiva propriamente cinematográfica. Eventualmente, insiste Minnella, quando autores da comédia italiana pretendiam descrever o mundo operário, objeto considerado de difícil descrição, especialmente através da ficção, permaneceram aprisionados na própria vocação para a narração do conto codificado dentro das leis do espetáculo popular. 

É o caso, conclui Minnella, de Mimi, o Metalúrgico, onde mais uma vez a Milão nevoenta e popular dos primeiros anos da década de 1970 oferece ideias interessantes de costume social infelizmente comprometido com o inevitável recurso à tipificação e ao assim chamado “pitoresco italiano” descritivo e junto com o grotesco, através do qual se pretendia saldar a fratura entre o norte e o sul da Itália através das vicissitudes de um personagem (interpretado por Giancarlo Gianini) típico/alegórico demais para parecer real. É a máscara do ator que se sobrepõe à figura social do operário projetado na difícil história italiana dos anos do Milagre Econômico e das revoltas estudantis, que perde vigor e credibilidade. Um beco sem saída para a compreensão da realidade cotidiana daqueles tempos (9).

Universo Grotesco


A  obra  de  Wertmüller  combina questões políticas da década
de  1970  e  convenções   da   comédia  grotesca  tradicional
italiana,  com  sua  vulgaridade,  seus  personagens  e  seu
ataque frontal aos valores e costumes estabelecidos (10)

Talvez devido a seu caráter extremamente regional, as comédias italianas no cinema alcançaram pouco sucesso internacional. Surpreendentemente, numa profissão dominada por homens (num país machista e patriarcal como a Itália), foi uma mulher quem mais conseguiu exportar comédias para o exterior. Assim Rémi Fournier Lanzoni define a cineasta Lina Wertmüller, que, de certa forma, com seu novo estilo de comédia, foi quem conseguiu prolongar a vitalidade deste gênero até o final da década de 1970 (11). Ao contrário da obra de Liliana Cavani, os filmes de Wertmüller não apenas foram saudados nos Estados Unidos por críticos e estudiosos, como cinco de seus roteiros foram publicados em inglês antes de estarem disponíveis em italiano, e a primeira monografia a respeito da cineasta italiana foi escrita em inglês – até 1983, quando Peter Bondanella escreveu seu livro sobre a história do cinema italiano, Wertmüller continuava não tendo sido objeto de um estudo sério em seu país (12).

Na Itália, explica Bondanella, Wertmüller raramente é levada a sério, talvez justamente pela diferença entre a crítica de cinema em seu país natal e nos Estados Unidos. Na Itália, afirmou Cavani, os críticos tendem a punir cineastas que fazem sucesso comercial, admitindo apenas filmes estadunidenses na categoria de entretenimento popular que também pode incorporar grande arte. Paradoxalmente, os italianos são um dos povos menos provinciano em sua abertura em relação a culturas estrangeiras e seus cinemas – ao mesmo tempo, tudo que vem de fora é considerado melhor do que o similar nacional. Contudo, o gosto da crítica norte-americana é temperamental. O sucesso de Wertmüller parecia assegurado com a chegada de seu cinco primeiros filmes. Então, subitamente, após sua colaboração com companhias norte-americanas num sexto filme, quase que do dia para a noite ela foi relegada a obscuridade critica quase da noite para o dia.

O cineasta italiano Nanni Moretti exteriorizou sua rejeição ao gênero (que, contudo, trai sua influência sobre ele) através de ataques à Wertmüller. Em seu primeiro longa-metragem, Io sono un Autarchico (1976), uma comédia, o protagonista Michele Apicella (interpretado pelo próprio Moretti) literalmente começa a espumar pela boca ao saber que ela recebeu uma cadeira (ficção inventada por Moretti) em estudos de cinema numa universidade dos Estados Unidos. A seguir, desqualifica uma lista de jornal que colocou Pasqualino Sete Belezas entre os melhores filmes. Em Caro Diário (1993), Michelle dispara contra Por um Destino Insólito, ao insinuar que se trata de cinismo autoral, citando o fato de que um homem e uma mulher que se odeiam estão numa ilha deserta “porque o diretor não acredita nas pessoas” (13).


 Ainda  que  não  seja  um  “filme  de  viagem”,   Mimi,  o  Metalúrgico 
 usa  esse  clichê  comparando  a  Sicília  (onde  trabalha  na  pedreira) 
à Turim (onde se torna metalúrgico):  da idade da pedra à do ferro (14)

Este já havia sido o contexto de Mimi, o Metalúrgico, que oferece uma análise profunda do antiquado código de conduta patriarcal do sul da Itália. Para Lanzoni, pode se dizer que Mimi, o Metalúrgico, Amor e Anarquia e Por um Destino Insólito, exemplificam como o ambiente e os indivíduos inspiraram a visão da cineasta e como foi definido um estoque de temas como sexo, igreja, autoridade, família e morte, sem falar de uma imagem degradante das mulheres. Por outro lado, ao contrário de Minnella, que desvaloriza a influência da atuação de Giancarlo Gianini (que interpreta Mimi), Bondanella (que chega a comparar Amalia com Saraghina) à elogia bastante e enaltece seu papel como veículo apropriado para a crítica construída pela cineasta:

“[Em Mimi, o Metalúrgico,] a visão de Wertmüller em relação ao poder e a autoridade na Itália é processada comicamente por uma série de personagens – um bispo católico, um chefe da Máfia, um inspetor de polícia, um membro do Partido Comunista, um empreiteiro - todos ostentam em seus rostos três sinais na pele que são capturados pelas lentes de Wertmüller em close-up. A Cada vez que uma dessas figuras aparece, o hino nacional italiano é ouvido na trilha musical, sugerindo um elo comum entre estas aparentemente muito diferentes organizações seja dentro ou fora da lei. São todos ‘irmãos da Itália’ como a primeira frase do hino sugere. Para mostrar como o rápido desenvolvimento industrial não pode esperar apagar os preconceitos sexuais antiquíssimos, o filme utiliza as convenções da comédia tradicional. Música e mímica também são efetivamente utilizadas, como no namoro silencioso de Mimi e Fiore com a música de La Traviata, de Verdi, um namoro realizado exclusivamente através de gestos expressivos sicilianos e movimentos dos olhos. A performance de Gianini é soberba e fornece grande parte da força cômica do filme. Especialmente memorável (e atacada por muitas críticas feministas) é a cena cômica, fotografada como lentes olho-de-peixe, que retrata grotescamente a sedução da enormemente obesa Amalia – uma figura parecida com Saraghina, reminiscente de 8 ½, de Fellini – por Mimi. Uma sedução forçada sobre ele por um código ridiculamente fora de moda que formata sua visão da honra masculina” (15)

Lanzoni lembra que Mimi, o Metalúrgico constituiu uma espetacular acusação ao código de honra numa cultura patriarcal como a siciliana no início dos anos 1970. Mais interessada pelos papéis sociais do que a identidade sexual (opção que enfureceu as feministas da época), a narrativa complexa construída por Wertmüller são menos lembradas por seus retratos solidários e sentimentais do bem estar social nos anos 1970 do que sua abordagem grotesca da sexualidade cômica e intensa. No início daquela década, a tendência popular do humor grotesco estava se tornando a expressão preferida da subjetividade. Como observou o historiador do cinema Roberto Gaetano, o grotesco não é um gênero ou um estilo, mas uma visão de mundo. Visão que estava ausente da comédia satírica dos anos 1960 – com exceção do cinema de Marco Ferreri. 


Mimi, o Metalúrgico é típico da combinação muito pessoal
que Lina Wertmüller  realiza  entre  comédia  e  política (16)

Lanzoni mostra que isso não é novo, pois na literatura clássica o “tom grotesco” era utilizado para diferenciar sentimentos: grandeza e desolação, empatia e aversão. A Commedia dell’Arte também se utilizava disso para criar uma mudança visível entre o cômico e o dramático, o trágico e o patético. Os shows de variedades na Itália do pós-guerra fizeram o mesmo. As comédias grotescas da década de 1970 evitavam as regras da narração tradicional ao organizar o enredo em torno de uma sucessão de gags autônomas que juntas formam uma narrativa compreensível – a história é um pretexto para a conexão quadros de humor. 

“Se o riso convencional dos anos 1960 mantiveram certa dose de controle sobre a realidade, o humor grotesco dos anos 1970 baseado no absurdo e na irracionalidade libertaram a mente do espectador em relação às fronteiras morais. Neste tipo de comédias grotescas, acontecimentos excepcionais irrompem constantemente e sem razão na vida diária do protagonista. Como resultado, lógica e senso comum nunca tem tempo de surgir na resposta dos espectadores. Esse tipo de dispositivo cômico, diferentemente do grotesco mencionado antes, incluiu a dimensão do absurdo para permitir a coexistência de dois conceitos opostos, como sórdido e sublime, farsa e drama, comportamento sexual violento e romantismo extremo. Por exemplo, em Sexo Louco (Sessomatto, 1973), de Dino Risi, ou Mimi, o Metalúrgico, de Wertmüller, ambos misturam fantasias eróticas em suas narrativas e segmentos da realidade, levando assim a noção de ilusão ao extremo. Nos dois casos, Giancarlo Gianini (que estrelou os dois filmes) é um homem jovem obcecado por experimentar uma relação sexual com mulher mais velha até que consegue realizar o objetivo de sua busca neurótica” (17)

Pensando em termos do cinema italiano no panorama do mercado global, a obra de Wertmüller perde apenas para Federico Fellini e Bernardo Bertolluci em termos de reconhecimento No gênero da comédia italiana, seus filmes estão dentre alguns dos mais complexos e visualmente ricos de sua época. Esta é a opinião de Bondanella, para quem a confusão da crítica em torno das intenções dela advém da ignorância em relação a sua formação cultural na tradição da comédia carnavalesca italiana. Sua exuberância imagética deve muito à Fellini, enquanto combina temas políticos dos anos 1970 e convenções da comédia grotesca tradicional italiana, com sua vulgaridade, personagens padrão e seu ataque aos costumes e valores tradicionais (isto é, patriarcais e machistas) (18). A própria Wertmüller vai apenas dizer que não fazia comédia, mas o grotesco.


Leia também:


Notas:

1. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A guide to Italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. P. 176.
2. COTTINO-JONES, Marga. Women, Desire, and Power in Italian Cinema. New York: Palgrave MacMillan, 2010. P. 159.
3. CARRANO, Patrizia. Malafemmina. La Donna nel Cinema Italiano. Firenze: Guaraldi Editore S.p.A., 1977. Pp. 114-5, 119-20.
4. LANDY, Marcia. Stardom, Italian Style: Screen Performance and Personality in Italian Cinema. Indiana: Indiana University Press, 2008. P. 220.
5. COTTINO-JONES, M. Op. Cit., p. 159.
6. Idem, p. 193.
7. Ibidem, pp. 158-9, 238n11.
8. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008. P. 355.
9. MINNELLA, Maurizio Fantoni. Non Riconciliati. Politica e Società nel Cinema Italiano dal Neorealismo a Oggi. Torino/Italia: UTET Libreria, 2004. Pp. 165, 169.
10. BONDANELLA, P. Op. Cit., p. 354.
11. LANZONI, Rémi Fournier. Comedy Italian Style. The Golden Age of Italian Film Comedies. New York/London: Continuum, 2008. Pp. 163, 166, 185-6.
12. BONDANELLA, P. Op. Cit., pp. 354, 480n6.
13. MARCUS, Millicent. After Fellini. National Cinema in the Postmodern Age. Baltimore (USA): The Johns Hopkins University Press, 2002. Pp. 289-90.
14. Idem, p. 158.
15. BONDANELLA, P. Op. Cit., pp. 355-6.
16. Idem, p. 355.
17. LANZONI, Rémi Fournier. Op. Cit., p. 170.
18. BONDANELLA, P. Op. Cit., pp. 354-5, 480n8.