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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

31 de jan. de 2018

O Cinema Italiano Depois do Fascismo


“A Itália está esperando por seus Balzacs, 
seus Tolstoys, seus Gorkys”

Carlo Lizzani

L’Italia deve avere il suo cinema, artigo publicado 
em Il Politecnico, 13 de outubro, 1945 (1)

Renascendo das Cinzas
É um fato conhecido que os filmes neorrealistas faziam mais sucesso no exterior do que na Itália, apesar de tudo poderíamos concluir que pelo menos existia para o cinema italiano do imediato pós-guerra um mercado de exportação relativamente importante – foi assistindo a Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, 1945) e  Paisà (1946) (imagem acima) nos Estados Unidos que a atriz Ingrid Bergman conheceu o trabalho de Roberto Rossellini, se mudou para a Itália e abandonou marido e filha para ficar com o cineasta italiano. Na opinião de Peter Bondanella, apesar do esforço de transmitir uma imagem autêntica da Itália através de uma linguagem cinematográfica honesta, o Neorrealismo ficaria sempre restrito ao nicho do “filme de arte” e nunca alcançaria o sucesso de público do cinema comercial – o que vale também para o mercado exterior. As plateias italianas simplesmente estavam mais interessadas nos filmes que Hollywood despejou no país depois da guerra, dominando totalmente esse mercado entre 1945 e 1950. Além de não considerar o cinema uma prioridade na reconstrução do país, o governo italiano (juntamente com o Vaticano) parecia mesmo interessado em entregá-lo para Hollywood. Mesmo depois de um acordo entre a Associazione Nazionale Industrie Cinematografiche ed Affine (ANICA) e a American Motion Picture Export Association, as exportações do Tio Sam para a Itália superavam em várias centenas seu “oponente”. Nem mesmo baixo custo de produção dos filmes neorrealistas era suficiente para cobrir os custos. Além da bilheteria fraca, as filmagens fora de estúdio (mais baratas) foram neutralizadas pelo maior tempo e custo de realização (2). Paolo Bafile define a atitude do governo em relação ao cinema e a presença dos Estados Unidos:

“Essa quase absoluta dominação pelas produtoras norte-americanas foi trazida para a Itália (como ocorreu, de fato, em outros países) através de uma política comercial – levando na esportiva – eficaz e perspicaz que visava, mais do que o lucro imediato, alcançar uma posição ‘dominante’ de longa duração no mercado ou, em termos objetivos, de caráter permanente. Nesse período, a ‘política’ das grandes companhias norte-americanas em nosso mercado (italiano) é talvez o único fenômeno que vale a pena estudar, uma vez que a ‘política’ das categorias industriais do cinema italiano (produção e distribuição) era não ter política nenhuma. Contra a poderosa Motion Picture Export Association of America, nosso cinema não construiu nada similar ou comparável, mas apenas discórdia, desorganização, conflitos de interesse (entre os próprios produtores) e assim por diante” (3) (imagem abaixo, Arroz Amargo)


Arroz Amargo foi um dos poucos sucessos comerciais
do  neorrealismo, e sua produção estava muito longe do típico filme
de  baixo  orçamento  com  recursos  técnicos  limitados.  Um crítico
italiano até o definiu como um ‘neorrealista colossal’” (4)
Devido à falta de praticamente tudo num país que estava um caos depois da derrota definitiva dos nazistas em 1945 (fala-se muito da invasão da França pelas tropas aliadas, embora seja menos famosa, a guerra na Itália duraria dois longos anos), o advento do Neorrealismo só foi possível em função de uma reinvenção dos métodos de produção. Em 19 de março, no número inicial de Mondo Nuovo (revista editada pelos norte-americanos na Itália) o artigo, Cinema italiano. Manca tutto ma si lavora lo stesso, foi o primeiro que segundo Gian Piero Brunetta descreveu o nascimento físico do Neorrealismo:

“Produzir um filme na Itália é como construir uma casa começando pelo telhado... Apesar disso, filmes continuam a ser feitos nos estúdios. É uma maravilha que só agora, sem contar com os meios de ontem, o cinema italiano continue a refletir a alma do país... Ontem, Cinecittà era tão luxuosa. Hoje, é um campo de refugiados. Como se não bastasse, a maior parte do equipamento foi levada para o norte [do país]. As únicas câmeras e holofotes que restaram foram escondidos por cineastas bem intencionados. E a iluminação? Apagões são constantes. Película, materiais para construir cenários, vestuários, e maquiagem tornaram-se um problema. Até isso é difícil encontrar. Contudo, filmes continuam a ser feitos” (5) (imagem abaixo, guerrilheiros atacam nazistas no moderno  EUR, bairro que Mussolini havia começado a construir nos arredores de Roma, Roma, Cidade Aberta, 1945)

Politicagem, Neorrealismo e Hollywood 


 Após o final da guerra,  a tese duplamente esdrúxula  dos  militares 
dos Estados Unidos era muito conveniente para Hollywood. Segundo
o almirante  Stone,  o  cinema  italiano  havia   sido   inventado   pelos
fascistas de Mussolini, o que era motivo suficiente para destruí-lo (6)

Em 10 de julho de 1944, dez pessoas se reuniram para formar a ANICA. Surgida das cinzas da Federazione Nazionale Fascista Industriali dello Spetacollo (fundada em 1926), representava os interesses de produtores, distribuidores e projecionistas. Como a primeira agência de regulação do entretenimento havia nascido durante o Fascismo, era crucial que isso não contaminasse as iniciativas de consolidação da produção em níveis competitivos. Tal empreitada incluía a tentativa de afastar-se da política, embora um dos interesses da nova agência fosse justamente proteger o cinema italiano da colonização pelos Estados Unidos. Através da ANICA os produtores tentaram estabelecer relações com os corpos políticos e diplomáticos. Riccardo Gualino (presidente da LUX) pediu subsídios e redução de taxas - o país estava em plena reconstrução e eles pediam que o cinema fosse incluído nos investimentos, especialmente sabendo do interesse dos Estados Unidos em frear a renovação daquela indústria. Contudo, desde o começo, a imprensa criticou a principal característica do Neorrealismo: mostrar os problemas institucionais e morais na Itália (“roupa suja se lava em casa”, vociferavam alguns articulistas) visando à transformação da sociedade e da nação – pelo menos até que comece a se “dissolver” no chamado neorrealismo rosa (7). Mas o golpe de misericórdia partiu de militares norte-americanos como o almirante Stone (diretor do setor de guerra psicológica), para quem o cinema na Itália deveria ser destruído porque foi inventado pelos fascistas (8). Sem a indústria não teria havido Neorrealismo cinematográfico...

“(...) O Neorrealismo pode ser encarado como simplesmente outra tentativa de criar uma comunidade imaginada para substituir a (igualmente construída pela mídia) comunidade imaginada do período fascista. Que este projeto – o projeto neorrealista – pareça tão vital dentro dos textos próprios neorrealistas evidencia a profunda desordem em que a Itália se encontrava no final da guerra, uma desordem marcada precisamente pelo colapso de uma narrativa nacional coerente que poderia ser considerada significativa pelos italianos. Deste modo, o Neorrealismo funciona não apenas para imaginar uma nova Itália para os italianos, mas também uma nova Itália a ser exportada para o mundo. [Nele se] construía o espaço narrativo de uma maneira decisivamente diferente do modelo clássico do cinema de Hollywood (e dos filmes telefone branco dos fascistas) (...)” (9) (imagem abaixo, Rossellini e Ingrid Bergman durante as filmagens de Stromboli, 1950)


A retomada do cinema 
italiano se beneficiaria de
uma capacidade de receber
pessoas  que haviam  aderido
e/ou   até   trabalhado  para o
Fascismo: os atores, atrizes, 
técnicos e diretores como 
Roberto  Rossellini 


Como o próprio Vaticano estava interessado em neutralizar um cinema mais combativo e voltado à denúncia das mazelas do Estado e da Igreja, ao mesmo tempo em que procurava incentivar seus temas carolas e moralistas apoiava também a iniciativa de Hollywood – embora a conivência com os temas, modas e tendências morais da sociedade norte-americana não fosse fácil para a cúpula da Igreja Católica. Apesar de tudo, o cinema italiano resistiu, foram produzidos vinte e oito filmes em 1945. No ano seguinte foram sessenta e dois, e em 1946 a indústria começa vagarosamente a retomar o mercado – especialmente em função da lei de 1949 que reativou mecanismos de incentivo fiscal e limitou a importação de filmes estrangeiros. Outro dado importante para explicar a rápida retomada é o fato de que depois da guerra ninguém foi banido. Mesmos aqueles diretores que haviam sido fascistas nas duas décadas de vigência do império de Mussolini foram reintegrados à indústria – inclusive aqueles que haviam seguido com Il Duce para a República de Salò. De acordo com Brunetta, durante o Fascismo, a seguir neste momento de transição e até durante a Guerra Fria, o cinema italiano sempre se manteve unido graças a um espírito de unidade, tolerância, e vontade de seguir em frente e absolver diretores, técnicos, atores e atrizes (ou qualquer outro que pudesse ser útil ao processo de filmagem), de seus pecados ideológicos. Os Estados Unidos estavam dispostos a investir em todos os setores da Itália, menos no cinema, por considerá-lo muito contaminado pelo Fascismo – pelo menos este era o discurso oficial do governo daquele país onde estava a “ingênua” Hollywood... 

“É certo que o cinema neorrealista voltou-se para os problemas prementes da época – a guerra, a Resistência e a luta dos guerrilheiros [anti-nazifascistas], desemprego, pobreza, injustiça social e coisa do tipo -, mas nunca houve uma abordagem programática para estas questões ou qualquer método preconcebido para representá-los em celuloide. O fenômeno era claramente diferente de outros movimentos de vanguarda no sentido de que nunca aderiu a um manifesto de governo ou jamais sentiu que fosse necessário. Em resumo, o Neorrealismo não foi um ‘movimento’ no sentido estrito do termo. A ficção de controle de filmes neorrealistas, ou pelo menos da maioria, é de que lidavam com problemas atuais, que utilizavam histórias contemporâneas, e que focalizavam personagens críveis encontrados muito frequentemente na vida cotidiana da Itália. Contudo, os maiores cineastas neorrealistas jamais esqueceram que o mundo que projetavam na tela era menos uma experiência ontológica [(do conhecimento empírico e da experiência)] do que algo construído por convenções cinematográficas, e nunca foram ingênuos a ponto de negar que as demandas de um meio artístico como o cinema podem ser tão urgentes quanto aquelas do mundo em seu redor. De fato, em muitas de suas obras sublinham a relação entre realidade e ilusão, ficção e fato, de maneira a enfatizar sua compreensão do papel que desempenham em sua arte (...)” (10) (imagem abaixo, Os Eternos Desconhecidos, 1958)

Entre Mercado Livre e Protecionismo


Em  1958   criou-se  uma  agência  autônoma  de  cinema
que absorveu a Cinecittà e o Instituto LUCE, que continua ativa. 
Hoje o Instituto  supervisiona também a produção,  distribuição, 
operação,  conservação  e  arquivo  de  filmes  e  cursos (11)

Embora o governo norte-americano acreditasse que a solução para a economia italiana estava numa injeção de mercado livre e aberto, os grandes estúdios de Hollywood tentaram contornar as diretivas do Departamento de Estado tirando vantagem de uma indústria cinematográfica italiana capenga. Os distribuidores e proprietários de salas de cinema (pelo menos quinhentos na época) saudaram a chegada de centenas de filmes velhos dos Estados Unidos no mercado italiano, na esperança de evitar a revitalização do cinema na Itália. De fato, a retomada do cinema italiano se beneficiou de certo desapontamento em relação aos filmes de Hollywood. As reações eram muito mais variadas do que desejariam magnatas de Hollywood, governos norte-americano e italiano e o Vaticano. O suporte da Igreja Católica (que proibia muitos filmes italianos e cinemas de suas paróquias) era determinante e necessário, mas não incondicional. Os produtores oscilavam entre abraçar o mercado livre e defender legislações protecionistas de subsídio para o cinema italiano (e para eles mesmos). Em razão do sucesso de cineastas como Rossellini e Vittorio De Sica (que, além disso, era ator), ambos bem sucedidos durante o Fascismo, aqueles produtores que também estiveram daquele lado sentiram-se confiantes para auxiliar o novo governo Democrata-Cristão. Em 1947, os americanos pretendiam liquidar o Instituto LUCE (grande parte de seu acervo só foi devolvida nos anos 1960) devido a sua conexão com o regime fascista – que o havia criado em 1924 para produzir e distribuir filmes e documentários. Mas o governo italiano pensava em continuidade e foi bastante lento para cumprir a ordem do Tio Sam, permitindo inclusive que continuasse a produzir cinejornais e documentários.

“Nos anos 1960, o cinema italiano era extraordinariamente robusto, e o filmes de arte que o definiam internacionalmente eram apenas parte de uma próspera indústria de produção. Além dos agora canônicos filmes de arte, havia as comédias mais populares all’italiana que, embora realizadas para a plateia nacional, começou a encontrar uma plateia internacional com filmes como Os Eternos Desconhecidos (I Soliti Ignoti, direção Mario Monicelli, 1958) e Divórcio à Italiana (Divorzio all'Italiana, direção Vittorio De Sica, 1961). De fato, as comédias eram apenas o mais respeitável de certo número de gêneros que floresceram nos anos 1960, o mais notável deles sendo o Horror (Dario Argento, Mario Bava) e os peplums (o ciclo Hércules, por exemplo). Na verdade, este último gênero, com seus enredos fáceis de seguir que celebravam masculinidade como uma espécie de mito, encontraram plateias internacionais cujas visões de mundo essencialistas ainda não haviam sido modernizadas pelas estruturas econômicas internacionais mutantes. De certa forma, o nicho criado pelo peplum forneceu um público pronto para os faroestes espaguete de Sergio Leone. Finalmente, no final dos anos 1950, Hollywood descobriu a ‘doce vida’ de filmar na Cinecittà, trazendo mais energia (e dinheiro) para uma cena de cinema já vital” (12) (imagem abaixo, Paisà, episódio 6, 1946)


Com o pretexto de proteger o cinema italiano  contra  Hollywood, 
o governo ofereceu ajuda ao setor,  contanto que fosse  neutralizado
o conteúdo ideológico e os temas controversos.  No  fundo  era  uma
maneira de tirar temas neorrealistas da agenda dos produtores (13)

Ao sucesso relativo do Neorrealismo seguiu-se a identificação de novos nichos de mercado, mais voltados para o entretenimento. Em 1946, a ANICA solicitou ao governo italiano quer o cinema fosse incluído nas negociações de comércio com outros países europeus. No final dos anos 1950, metade da produção italiana de filmes eram coproduções com capital estrangeiro (inclusive a União Soviética, como em Os Girassóis da Rússia, I Girasoli, direção Vittorio De Sica, 1970). Em 1947 a ANICA estabelece uma relação com a Associação de Exportação de Filmes que não apenas estipula um limite para a importação de filmes dos Estados Unidos como estabelece um fundo para ser reinvestido no financiamento do cinema italiano. Se não resolve a questão exportação/importação, pelo menos tal esforço levou à criação de um mercado europeu de cinema que ajudou a expandir a produção de filmes entre os países que participaram do acordo (também França, Espanha e Alemanha Ocidental), cujos produtos transitavam livremente entre suas fronteiras. É dessa época o estrondoso sucesso de Giuseppe De Santis com Arroz Amargo (Riso Amaro, 1949), que lançou Silvana Mangano ao estrelato e abriu caminho para outras pin-ups italianas durante da década seguinte. Se em 1946, o cinema italiano detinha apenas 13% do mercado, em 1954 já havia atingido 34%. No final dos anos 1940, o Neorrealismo já estava sendo torpedeado por todos os lados, as maiores bilheterias do pós-guerra na Itália foram musicais, dramas, filmes de ação e comédias. Contudo, foi o legado do Neorrealismo que marcou a cinematografia italiana e de muitos outros países. Em 2009, Daniela Treveri Gennari não conseguiu encontrar meios para elaborar uma mensagem muito otimista em relação ao cinema italiano:

“Para o cinema italiano do pós-guerra os tremores secundários da derrota para o superpoder americano continua a reverberar. Em abril de 2008 a revista L’Expresso revelou que a televisão estatal RAI, enquanto era proprietária de RAI Cinema, o principal coprodutor de filmes italianos, parecia mostrar um número muito baixo de filmes italianos em seus próprios canais, RAI 1, RAI 2 e RAI 3. Comparado à situação em 1948, pouco havia mudado. De fato, naquela época a maioria dos filmes exibidos nos cinemas italianos era  norte-americano e o número de filmes [provenientes dos Estados Unidos] apresentados indica que a indústria de cinema [deles] desempenhou papel chave no desenvolvimento do cinema nacional italiano. Apesar de enfrentar um adversário tão poderoso como os Estados Unidos, que as vezes era apoiado pela Igreja Católica, a indústria italiana de cinema conseguiu resistir” (14)


Leia também:


Notas:

1. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A guide to Italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. Pp. 110, 332n7.
2. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008. Pp. 35-6.
3. GENNARI, Daniela Treveri. Post-War Italian Cinema. American Intervention, Vatican Interests. New York/London: Routledge, 2009. P. 61.
4. BONDANELLA, P. Op. Cit., p. 83.
5. BRUNETTA, G. P. Op. Cit., p. 108.
6. Idem, p. 111.
7. RESTIVO, Angelo. The Cinema of Economic Miracles. Visuality and Modernization in the Italian Art Film. Durham & London: Duke University Press, 2002. P. 35.
8. BRUNETTA, G. P. Op. Cit., pp. 108-115.
9. RESTIVO, Angelo. Op. Cit., p. 25.
10. BONDANELLA, P. Op. Cit., p. 34.
11. BRUNETTA, G. P. Op. Cit., p. 113.
12. RESTIVO, Angelo. Op. Cit., pp. 8-9.
13. BRUNETTA, G. P. Op. Cit., p. 114.
14. GENNARI, D. T. Op. Cit., p. vxii.

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