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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

17 de jul. de 2010

Zurlini e o Deserto de Nossas Vidas




Tudo que restou
a eles foi enfrentar
o maior perigo dentre
todos
: mergulhar 
em si mesmos




 


A Vida Vem Sem Manual

Giovanni Batista Drogo, ao contrário do que desejava sua mãe, recém incorporado ao exército imperial como subtenente de infantaria, não será enviado para um local próximo. Seu destino é a fortaleza Bastiano, nos confins do mundo habitado no meio do nada. Drogo procura ser transferido para outro local, porém o máximo que consegue pelas mãos do cruel major Mattis é uma dispensa por motivos médicos que ainda levará quatro meses. Aos poucos ele toma conhecimento do clima confuso entre todos, alguns vêem tropas invasoras onde nunca elas estiveram. Numa cena em que Drogo caminha de um lado para o outro como se estivesse preso e o som de água pingando dão a dimensão do clima claustrofóbico da situação. A fortaleza é rodeada por uma cidade fantasma em ruínas, para além dela um grande deserto com as montanhas no horizonte. Um local inóspito que deveria satisfazer aqueles que desejam fazer carreira militar sem correr risco de vida, entretanto o que se verifica é uma insatisfação geral e o sentimento de que a vida lhes está sendo sugada. Um cotidiano entediante contrasta com a vida de aventuras que comumente se tentar vender aqueles que abraçam a carreira militar. Entretanto, eles enfrentam talvez o maior perigo de todos ao serem forçados a mergulhar em si mesmos.




Em Era Uma Vez no Oeste
(direção Sergio Leone), vemos e
ouvimos gotas d’água a simbolizar
uma longa espera. Entretanto, no caso

do filme de Zurlini o efeito foi mais
profundo, já que temos apenas
o som da água no vazio






Conflitos psicológicos e morais são o verdadeiro inimigo daqueles oficiais. Metáfora de uma guerra no interior do ser, aquele deserto vazio é como veneno nas veias daqueles homens. Drogo acaba não conseguindo sua transferência. Os vários sinais de um ataque inimigo iminente convencem Drogo de que de fato vão ocorrer, mas o oficial médico sugere que como os outros o subtenente esteja sofrendo de alucinações. Durante uma visita, um oficial superior elogia tudo na fortaleza, inclusive a comida, e se pergunta qual será o ponto fraco de Bastiano. Mesmo quando existem evidencias da presença do inimigo, negam-se a tomar providências – no passado, que as tomou teve sua sanidade questionada. Assim, desenvolve-se uma trama repleta de situações absurdas. Quando o inimigo está lá, ninguém os vê (ou quer ver); quando ele não está, começam a vê-lo. Anos se passam e quando Drogo, já doente, tem a oportunidade de sair ele insiste em ficar! Finalmente, tudo leva a crer que um ataque é iminente. No fim de suas forças, Drogo é obrigado a se retirar da fortaleza justamente no momento em que as tropas inimigas se aproximam. Na última vez que o vemos ele está na carruagem, fecha os olhos e baixa a cabeça. Está morto? Não sabemos, o filme acabou.

O Absurdo da Realidade


Zurlini gostava
de adaptar o
bras
literárias
, porém sua
prática se caracteriza
pela  “fidelidade
infiel” ao texto




Por incrível que possa parecer, O Deserto dos Tártaros (Il Deserto dei Tartari, 1976) representaria uma anomalia na obra de Valerio Zurlini. De acordo com Paolo Vecchi, o cineasta nem mesmo gostava do romance de Dino Buzzati (1906-1972). Zurlini disse que desejava ser fiel ao livro, mas problemas financeiros na produção mudaram seus planos e o resultado foi um filme profundamente zurliniano. Fidelidade não significa adesão total à poética buzzatiana. A história começa em 2 de abril de 1907 e termina em 1914, trata-se do exército do moribundo império Austro-Húngaro, que viria a se desmanchar ao final da Primeira Guerra Mundial. Vecchi sugere que esta opção foi política, mas também poética. Consta que Buzzati talvez estivesse criticando a campanha militar de Mussolini na Etiópia em 1935 - embora o próprio Buzzati tenha citado a caracterização com uniformes do Império austro-húngaro. Seja como for, o filme mantém a deriva psicológica e existencial dos personagens (1). Vecchi ressalta uma tendência à abstração que já se notava na obra de Zurlini desde A Primeira Noite de Tranquilidade (La Prima Notte di Quiete, 1972).




Zurlini filmou

na fortaleza de Bam,
fronteira do Irã com
o Afeganistão






Se o adjetivo “kafkiano” for aplicado a O Deserto dos Tártaros, subitamente a falta de lógica das atitudes daqueles oficiais começa a fazer sentido. O filme acompanha e descreve com precisão os rituais dos personagens, seus tormentos interiores, tiques e neuroses, traçando um impiedoso e tocante panorama da paisagem humana e imaginária. O estilo de Buzzati já foi comparado ao de Kafka, embora o escritor italiano negue semelhanças e até se irrite com a comparação. Desde quando começou a escrever, reclamou Buzzati, “Kafka foi minha cruz”. Todos viam muita semelhança entre seu estilo e aquele do escritor de Praga. Se a hipótese da crítica a Mussolini se puder confirmar, talvez Buzzati estivesse apenas dando um relato da situação como se apresentava na realidade. O que ele parece não ter percebido é que muitas vezes (mais do que podemos imaginar) a realidade pode ser bastante absurda. Portanto, seja como for, o livro de Buzzati já parece trazer muito do que caracterizava as preocupações estilísticas e psicológicas de Zurlini – ainda que Vecchi tenha dito que o cineasta não gostava tanto de O Deserto dos Tártaros como Buzzati o concebeu. Zurlini construiu a maioria de seus roteiros de longas- metragens a partir da adaptação de obras literárias, no caso de Buzzati manteve-se substancialmente ligado ao texto do livro, embora nutrindo uma relação de “fidelidade infiel” onde o cineasta encaixa suas próprias idiossincrasias:

“Fiz oito filmes, nos meus oito filmes existe um tema menor – aquele de Buzzati – que está contido no tema maior. Viver a vida não possui outra finalidade senão deixá-la escorrer e a morte é a única justificativa... Não existe validade de um sentimento, não existe validade de uma ilusão, não existe idealismo que dure, não existe nada que escape da amarga sobrevivência. De minha parte existe um consolo cristão, mas em sentido leigo, pagão. Desta vez, com O Deserto dos Tártaros, tudo é naturalmente levado aos extremos infinitamente mais lúcidos, não sentimentais. Desta forma, sem chegar à grandeza temática de Buzzati, todos os meus filmes se parecem, do primeiro ao último. Amar é inútil, porque amar implica a infelicidade, é inútil acreditar em alguém porque se irá se desapontar. Definitivamente, se trata sempre de uma escritura não sobre a tragédia existencial, mas sobre uma tristeza existencial” (2)


Antonioni+Visconti =Zurlini? 




Segundo Zurlini,
Antonioni é o pai dos
cineastas italianos que se voltaram para dentro
dos personagens







Na opinião de Zurlini, a literatura de um Alessandro Manzoni (1785-1873), ou de Liev Tolstoi (1828-1910), F. Scott Fitzgerald (1896-1940) ou Vitaliano Brancati (1907-1954), poderiam ser transferidas para a tela. No fim, quem decide é o autor – a questão do estilo. Embora certas descrições de eventos cotidianos (um velho que todo dia caminha nas mesmas direções, seu cabelo na testa, seu perfil, etc.), pareçam banais do ponto de vista literário, sua aplicação à tela surte efeito. Não se trata de construir com elas filmes de suspense ou muito menos de construir um relato a partir de uma imagem descritiva: é o olho que deve procurar. Antes da ação, qualquer que seja, encontramos sempre uma cadência meditativa, como a que se pode encontrar em Antonioni. Zurlini era o primeiro a sublinhar, Antonioni é “o pai de todos”:

“O grande desenvolvimento estilístico do cinema italiano traz um grande nome, o de Michelangelo Antonioni. De quem todos somos filhos, pequenos, grandes, bastardos, herdeiros... Porque o primeiro a levar o discurso para o interior do personagem, e em seguida a não confiar apenas na realidade que via, foi Michelangelo Antonioni. Antonioni é o ponto de passagem entre duas gerações de autores: os grandes mestres e nós, que somos seus filhos. Dignos ou indignos não me cabe julgar” (3)

Entretanto, Vecchi acredita que se possa dizer que Zurlini mistura Antonioni com Luchino Visconti. Na verdade, que ele corrige Antonioni com Visconti e vice-versa. De Visconti, teria espelhado a preocupação literária, e o amor ou, até mesmo veneração, pelos clássicos, além de preocupação manter-se conectado com o mundo da cultura nacional. De fato, Zurlini tinha especial admiração por Visconti (4). De Antonioni, o cineasta teria herdado a exigência primária da pesquisa da linguagem fílmica como atributo imprescindível da individualidade do autor. Esta seria a razão, segundo Vecchi, quando percebemos nos filmes de Zurlini a presença da literatura e do teatro, transfigurados de forma a não parecer mais nem um nem outro, enquanto em Visconti freqüentemente se verifica o enrijecimento e a contaminação de estilo.


“Creio que todos
 os   diretores   que
viram os filmes de Zurlini tenham algo a aprender dele
. Ou seja, a vontade de chegar ao público sem nenhuma concessão ao mercado
de consumo”


Bruno Torri (5)


Vecchi afirma ainda não encontrar em Zurlini traços de Rossellini e nem da Nouvelle Vague. Embora destes verifica-se em Zurlini a idéia de que o cinema é mais paixão do que aprendizado, e que se aprende a fazer filmes olhando com os próprios olhos, mais do que atuando como assistente de algum outro diretor. Vecchi conclui dizendo que a despeito do esquecimento em torno da obra de Zurlini (tanto na Itália quanto fora), o cineasta merece o título de autor europeu. Ele teria procurado sempre olhar sempre para além dos limites nacionais. Muito embora, pelo menos num comentário a respeito de Verão Violento (Estate Violenta, 1959), Zurlini não considerasse o seu um cinema de autor, naquele que de acordo com Vecchi é um de seus filmes menos italianos (O Deserto dos Tártaros) (6), o cineasta teria sido bem sucedido na aventura de dar escala ampla e européia a um romance que talvez não a tivesse, dobrando a lógica da superprodução cinematográfica à coerência de um projeto mais autoral.



Leia também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
O Cinema Político de Valerio Zurlini
A Trilogia de Valerio Zurlini
Zurlini, Ilustre Desconhecido
Luchino Visconti, Rocco e Seus Irmãos
A Itália em Busca do Realismo Perdido (I), (II), (final)
Medo do Diferente ou Conveniência Política?
O Diferente (do Oriente) Como Bode Expiatório
Wim Wenders e o Vídeo no Cinema
As Mulheres de Rainer Werner Fassbinder (VIII)
Pênis Guerreiro

 Notas:

1. VECCHI, Paolo. Tra Vuoto e Nulla. Appunti su Il Deserto dei Tartati In ACHILLI, Aberto; CASADIO, Giamfranco. Elogio Della Malinconia. Il Cinema di Valerio Zurlini. Ravenna: Edizioni Girasole, 2000. P. 56.
2. Idem, pp. 56-7.
3. Ibidem, p. 59.
4. Comentário de Piero Schivazappa, amigo e assistente de direção de Zurlini, em A Garota com a Valise (La Ragazza con la Valigia, 1961) e Dois Destinos (Cronaca Familiare, 1962). Extras do dvd de A Garota com a Valise, lançado no Brasil pela Versátil home Vídeo.
5. Dos extras de A Garota com a Valise.
6. Comentário de Alfredo Sternheim nos extras de Verão Violento, lançado em dvd no Brasil também pela Versátil. 


14 de jul. de 2010

Bertolucci e a Revolução Burguesa



Pasolini
o considerou
um
exemplo do cinema de
poesia
. Elogio que também
seria um epitáfio
, já que sua hipótese afirmava que este cinema seria neutralizado,
absorvido
, e se tornaria
clichê de cinema 
burguês (1)


Maturidade é Tudo

Em Antes da Revolução (Prima della Rivoluzione, direção Bernardo Bertolucci, 1964), Fabrizio é um jovem que cresceu na rica classe média de Parma, uma cidade do norte da Itália. Tem dois amigos mais próximos: Agostino (imgem abaixo, à esquerda), uma pessoa rebelde, que acaba se afogando (se suicidando?), e Cesar, um professor do ensino elementar com quem Fabrizio compartilha sua fé na ideologia comunista. É precisamente para ser mais verdadeiro em relação a sua filosofia política que Fabrizio decide romper seu relacionamento com Clelia (imagem abaixo, à direita; com Fabrizio ao fundo). Segundo o ponto de vista de Fabrizio, ela representa a vaidade da burguesia. A partir daí, o jovem burguês que se crê comunista inicia uma relação com a atormentada Gina (imagem acima), sua tia. Ela é sua tia e veio de Milão para visitar a família na Páscoa.

“Filho
da burguesia
abastada, Fabrizio
olha para seus pares
com  uma  atitude
crítica que beira
o desdém”
(2)


Quando ela parte e a relação impossível termina, Fabrizio reata com Clélia e se casam. Este desfecho marca o retorno de Fabrizio àquilo que ele anteriormente se referia como os sórdidos valores da classe média. A música no casamento “recordar”. Cesar é mostrado em sala de aula, está lendo Moby Dick para seus alunos, numa tradução feita por Cesar Pavese, que já tinha sido lembrado por ele quando da visita de Fabrizio e Gina a casa de Cesar: “lembra do Pavese”, Cesar pergunta, “maturidade é tudo” (3). Embora tenha negado a intenção, uma série de situações, incluindo os nomes dos personagens, sugerem que Bertolucci fez uma releitura de A Cartuxa de Parma (La Chartreuse de Parme), de Stendhal. No final deste livro, todos morrem, exceto conde Mosca. No filme, com exceção de Agostino, as mortes se dão num nível metafórico. Mas sentimento de vidas sendo varridas permeia os dois trabalhos. Assim como a equivalente de Clelia no livro nunca poderá ver seu amor por causa de seu voto para Nossa Senhora (voto que será quebrado várias vezes), também a silenciosa Clelia de Bertolucci, mesmo sem um voto, nunca será capaz de enxergar o verdadeiro Fabrizio (4). (imagem abaixo, à direita, Gina e Fabrizio no enterro de Agostino)

A Revolução, entre Marx e Freud



Bertolucci admite
que
,  como  Fabrizio,
sente uma nostalgia
pelo   presente





Bernardo Bertolucci afirmou que seu filme não é um tratado de história política, mas uma obra pessoal que fala de um jovem extremista do interior. Para os brasileiros, 1964, o ano de lançamento de Antes da Revolução, tem um significado especial. A partir desse ano, o véu negro da ditadura de direita caiu sobre o país pelos próximos 20 anos. Talvez não seja coincidência o fato, que só pode surpreender aos desinformados, de o filme só haver estreado no Brasil 34 (t-r-i-n-t-a e q-u-a-t-r-o) anos depois! Muito embora talvez apenas no título Antes da Revolução pudesse criar problemas para os direitistas daqui, já que o filme questiona uma série de palavras de ordem e clichês da esquerda! Na própria Itália, contou Bertolucci, o filme parecia ter surgido antes de seu tempo. Embora tenha sido apresentado no Festival de Cannes em 1964, Antes da Revolução só apareceria nos cinema de Paris entre 1967 e 1968. Na França foi um sucesso, enquanto na Itália passava sem deixar marcas. Mas o ano de 1968 faz toda a diferença! Fabrizio havia antecipado as coisas que os jovens diziam em 68, expondo certo caráter infantil, romântico (5).


“O meu futuro
de   burguês  está
no  meu  passado
de  burguês”

 

Fabrizio à Cesar, no dia
da Festa da Unidade



Antes da Revolução
explora as implicações modernas da afirmação de Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (1754-1838) de que aqueles que não viveram antes da revolução não poderiam saber como a vida era doce [dolcézza] – no caso, ele se referia à revolução francesa. Fabrizio tem a pouca sorte de viver numa época em que suas aspirações ideológicas entram em conflito com suas reais possibilidades, como ele diz no começo do filme: Clelia “é aquela alegria de viver [dolcézza] que me recuso a aceitar”. Rejeitando suas origens burguesas, mas incapaz de transcendê-las, Fabrizio vive num tempo antes da revolução. Como Bertolucci, ele sofre de uma “nostalgia pelo presente” típica da classe média. Fabrizio diz que tem uma febre que o faz sentir saudades do presente: “Sinto que já vão longe os momentos que estou vivendo. Por isso, não quero modificar o presente”. Sua incapacidade de contestar os costumes sociais e anunciar abertamente seu escandaloso caso com a tia é paralelo à sua incapacidade de abraçar a causa da classe trabalhadora num nível além do puramente intelectual. Como notou Peter Bondanella, Antes da Revolução articula sexualidade e política, Freud e Marx, de uma forma problemática e bem ao estilo de Bertolucci (6).

As Confusões de Gina




O problema de
Gina  é  que  ela
não sabe amar





Aparentemente, Gina entrou em crise em função da morte do pai, com quem tinha uma relação conturbada. Foi o tédio que a trouxe à Parma, em Milão ela faz “transmissão de pensamentos”, toma três banhos por dia, chora e ri. Rebelde como Agostino, Gina se opõe ao mundo de uma forma mais passiva. Não é necessário fugir de casa, ela diz, basta ficar em casa quando os outros saem. Gina cai no choro quando encontra uma menininha que poderia ser sua imagem no espelho. A garotinha fica repetindo uma canção de criança até que Gina se desespera. De acordo com tonetti, Gina tem a capacidade de complicar ainda mais o que já é complicado. Como a garotinha, ela repete frases sem sentido. Mas ao contrário da garotinha, procura racionalizar. Depois de começar a namorar o sobrinho, ela arruma um desconhecido na rua – embora, nesse particular, se possa admitir que caso ela fosse homem, “ninguém” acharia anormal arrumar um flerte! Enquanto os dois homens, que chegaram a se ver, caminham cada um numa direção para um mundo fora de foco.



“Ao contrário das
excêntricas mudanças
de  expressão  de  Gina,
Clelia   é   constante  e controlada” (7)



Tonetti chama atenção para uma cena que está no roteiro do filme, mas nunca foi filmada. De acordo com Cesar, o problema de Gina é a incapacidade de amar. Ela ultrapassa o obstáculo se apaixonando por Fabrizio e o amando precisamente porque ele é o filho de sua irmã. “Para amá-lo”, disse Cesar, “você deve pagar por esse amor: deve pagar com um sacrilégio. Com um ato terrível! Porque você está doente! Doente!”. Referindo-se a 1945, o final da guerra, Cesar diz, “que bela desordem eu tinha em minha cabeça”. Gina se satisfaz em acreditar que a vida não é ordem. A diferença, concluiu Tonetti, é que Cesar encontrou a ordem na desordem, navegando nela guiado por sua paixão pelo magistério (8).

Antonioni e Bertolucci



Para   além   do   cinema
de poesia e as semelhanças
do ponto de vista  do  estilo,
existe identidade filosófica






Na opinião de Tonetti, Agostino juntou-se ao partido como um último ato de sua curta vida – talvez deixando uma mensagem para Fabrizio. O riquinho se juntou às crianças subproletárias para um banho no rio. Ele nunca voltou daquela água fria, suas roupas e bicicleta eram recolhidas pela polícia enquanto Fabrizio olhava para um feio pilar fincado no centro do rio (atrás do qual Agostino se afogou) (imagem abaixo, à esquerda). “Os ricos são mais delicados”, disse um rapaz que falou com Agostino pela última vez (9). Agora Fabrizio procura saber o que Agostino disse (“ele deve ter dito algo”, insistiu). A seqüência do afogamento de Agostino seria inspirada em Michelangelo Antonioni em sua ênfase na incerteza. Close-ups mostrando expressões angustiadas se alternam com tomadas longas em que a câmera faz uma panorâmica vagarosa sobre a água, como em A Aventura (L’aventura, 1959). Além de impregnar o pilar de concreto com o simbolismo de um destino inconquistável, a insistência de Bertolucci nele recorda a auto-avaliação de Antonioni quando diz que seus filmes “são sobre nada... com precisão”. (imagem acima, da cena em que Puk, o ex-rico falido que nunca aprendeu uma profissão, se despede de seu mundo)


“A  coisa  mais  atroz
que você pode fazer para
alguém  é  dizer que  não acredita na dor dele”

Cesar à Fabrizio,
que desvalorizou
a luta de Agostino
consigo mesmo


A influência de Antonioni nesta seqüência, afirma Tonetti, não é apenas uma questão de estilo, mas de filosofia. A inspiração de Antonioni vem de Lucrécio, um poeta romano (99 a.C.) que ele citou após a apresentação de A Aventura no Festival de Cannes, em 1959: “Nada aparece como deveria em um mundo onde nada é certo. A única coisa certa é a existência de uma violência secreta que torna tudo incerto” E completou: “O que Lucrécio disse sobre o tempo dele ainda é uma realidade perturbadora, porque me parece que essa incerteza é muito do nosso tempo” (10). Seria também de Antonioni o entendimento da indiferença como um comportamento violento. As crianças que estavam no rio continuam brincando, quando Fabrizio sacode uma delas e pergunta se “isso é certo!” (imagem abaixo, à direita). Fabrizio está reagindo com raiva e frustração a penetrante violência da realidade e a sua própria indiferença agressiva em relação a seu amigo. A frase de Cesar, afirma Tonetti, poderia ser o epitáfio de Agostino: “A coisa mais atroz que você pode fazer para alguém é dizer que não acredita na dor dele” (11). (imagem acima, à direita, vista aérea de Parma no começo do filme, mostrando o rio que atravessa a cidade, e separa ricos e pobres)

Fabrizio e sua Religião

(...) Permitiram
que sonhasse
com
a dignidade burguesa.
E   agora   também
quer ser burguês”

 

Fabrizio,  opinião  sobre  o  posicionamento
político do proletariado italiano nos anos 60



Antes da Revolução, segundo filme dirigido pelo cineasta Bernardo Bertolucci, é permeado por um sentimento de perda. O comunista Fabrizio... Ou talvez fosse melhor dizer... Fabrizio, mais um esquerdista em crise de valores, depois de duas horas de muitos questionamentos, casa-se com Clélia, a mesma burguesa que havia renegado no começo do filme. No mesmo começo do filme acompanhamos Fabrizio numa corrida pela cidade, seu ponto de chegada é uma igreja católica. Esse dado seria banal se não soubéssemos que as palavras que ouvimos durante sua corrida são de A Religião de Meu Tempo. Os versos escritos por Pier Paolo Pasolini refletem a desilusão que foi para ele perceber que a igreja católica passou para o lado do poder dominante, ao invés de servir de instrumento para a revolução contra ele. Quando Pasolini chegou a Roma, explicou o escritor e seu amigo Alberto Moravia, e descobriu o subproletariado, passou a considerá-lo uma sociedade alternativa e revolucionária análoga às sociedades proto-cristãs que carregavam uma mensagem inconsciente de humildade e pobreza que se contrapunha à burguesia niilista e hedonista (12).



A  postura  cristã
dos primeiros séculos foi destruída quando o Milagre
Econômico italiano fez com
que  todos  preferissem se tornar   burgueses   e
a Igreja apoiou


Pier Paolo Pasolini


De acordo com Alberto Moravia, o comunismo de Pasolini não era de tipo marxista, mas uma forma popular e romântica animada por amor e nostalgia pela terra natal. Tudo isso teria sido destruído quando a prosperidade econômica da década de 60 do século passado gerou um novo consumismo que transformou o subproletário num novo burguês. Antes da Revolução foi lançado em plena vigência do Milagre Econômico. Embora em 1962, época em que o filme acontece, a prosperidade ainda não havia metamorfoseado os estratos mais baixos da população. E o rio Parma, como Fabrizio nos informa, ainda separava os ricos dos pobres. A Igreja de que falam Pasolini e Fabrizio, é a que serve aos ricos. Na conversa com Cesar durante os preparativos para a Festa da Unidade, Fabrizio confessa que não acredita que o proletariado possa tomar consciência de alguma coisa. Na opinião de Fabrizio, o ideal do proletário é irracional, acredita naquilo que lhes dizem e “permitiram que sonhasse com a dignidade burguesa. E agora também quer ser burguês”. Do pouco que vemos Clélia, concordamos com Claretta Tonetti que ela não é ambígua em relação à Igreja. Na cena do adeus na igreja, logo no começo do filme, a diferença entre os closes dele e dela sugere o poder dela sobre ele. Tonetti considera esta cena a primeira “ambigüidade espelhada” do filme.



Clelia  n
ão  fala,
as palavras
de Fabrizio
não ajudam Agostino e Gina

faz qualquer coisa para
falarem com ela




No que diz respeito a Agostino, a incapacidade de Fabrizio em ajudar o amigo através da tentativa de anular emoções, sem conseguir substituí-las adequadamente através de conselhos racionais e superficiais (junte-se ao partido, converse com Cesar, assista filmes...), constitui a segunda ambigüidade em seu comportamento. Ao contrário de Clélia, Fabrizio precisa de palavras. Precisa delas para justificar suas ações e sentimentos, mas não chega a conseguir encontrar as palavras corretas para ajudar Agostino. Este, ao contrário, fala através de sentenças curtas, às vezes desesperadas, às vezes cheias de expectativas em relação a um auxílio que nunca chega. Aos 20 anos, Agostino é para Fabrizio alguém que vive na fantasia de uma rebelião infantil através da bebida, as expulsões de colégios suíços e as várias tentativas de fugir de casa. Por outro lado, as racionalizações de Fabrizio não conseguem alcançar Agostino. Como quando Fabrizio tenta convencer Agostino de que tudo que ele diz pode fazer sentido, mesmos os erros. Para Agostino, filiar-se a um partido político seria como passar de uma autoridade para outra. A crise dele, explica Tonetti, é existencial. Quando ele grita com Fabrizio, (“E você, o que acha que está fazendo? A revolução?”) ele está à frente do amigo. Agostino percebe que a crença de Fabrizio de que a revolução é iminente não passa de ilusão (13). (acima, Gina; abaixo, Clelia)




“Ai daquele que
não sabe qu
e é burguesa
essa fé cristã
(...) (14)





Tonetti acredita que Bertolucci mostra a incapacidade de Fabrizio lidar com a situação quando vemos que ele não parece incorporar dois versos do poema de Pasolini, que no fundo é um hino à emoção: “Ai daquele que acredita no impulso da razão/que responda o coração” – mas esses versos não estão no filme. Tonetti conclui que não adianta Agostino falar de sua dor para Fabrizio, ele não entende. Tonetti chama atenção para o roteiro do filme e uma curiosa insistência nas cores da bicicleta de Agostino (verde e preta). Tonetti achou curiosa essa referência posto que o filme seja preto e branco. As cores são como os sentimentos de Agostino: estão lá, mas são vistos pelo espectador apenas em preto e branco, exatamente como Fabrizio percebe os sentimentos do amigo. Essa é uma estranha percepção, conclui Tonetti, vindo de um Fabrizio que cita Pasolini e que pensa que a vida de sua namorada, assim como a dos burgueses de Parma, é muito superficial e limitada (demasiado preto e branco) para ele. (abaixo, Fabrizio procura Gina pelos corredores da Ópera)



O compo
rtamento
de Fabr
izio está repleto
de   ambigüidades






Uma terceira ambigüidade no comportamento de Fabrizio se apresenta na seqüência com Puck, o amigo de Gina. A busca por um tempo perdido, que já está presente na preferência de Bertolucci em escolher imagens de Parma onde não se perceba a mão destruidora do progresso, está toda na seqüência em que Puck está com um amigo pintor próximo a uma lagoa. Goliardo Padova, o pintor, está pintando um mundo prestes a ser engolido pelo progresso. Antes muito rico, agora Puck perdeu a propriedade e não tem idéia de como sobreviver – ele nunca pensou em aprender uma profissão. Embora enciumado pelo contato físico entre Puck e Gina, Fabrizio é atingido pelo sentimento de perda e fracasso de Puck, sua incapacidade de seu libertar do hábito e do estilo de vida. Uma locução com a voz de Fabrizio denuncia seus pensamentos: “Nesse momento, percebi que Puck havia fala também por mim. Seria igual a ele com o passar dos anos. E tive a sensação que para nós, filhos da burguesia, não havia saída”.



Fabrizio conclui que mesmo
a  ideologia  não  t
raz   alívio,
pois a revolução  foi  vencida
pela   ânsia   dos   proletários

em   se   tornarem burgueses



Puck é o espelho de Fabrizio, refletindo seu futuro. Em Puck Fabrizio vê a ambigüidade de seu próprio status em relação à sua fé política. Naquele senhor fora de moda, ele percebe como o destino pode derrotar a ideologia e os acasos da vida se infiltram nas melhores intenções. A melancolia de Fabrizio é onipresente, ele não vê saída para si, para a burguesia, para os proletários. Na parte final, durante a Festa da Unidade (imagens acima e abaixo), comenta com Cesar sobre como os ideais do povo são agora os da classe média: Eles querem se tornar burgueses, “querem vestir roupas burguesas, entender os shows burgueses, os livros burgueses”. Cesar retruca dizendo que acham justo que os trabalhadores queiram melhorar de vida. Fabrizio não responde, aparentemente porque neste momento se deixa atrair por trabalhadores que misturam o dialeto dos pobres e o idioma italiano. Fabrizio havia procurado convencer Agostino de que “mesmo se você comete um erro, ele faz sentido”. Agora ele percebe que a ideologia é apenas outra teia através da qual os sentimentos, hábitos, o ego, caem por terra, derrotando o ideal revolucionário. Sua lógica se enrosca nele como uma serpente e ataca as relações importantes de sua vida, deixando-o com um sentimento de fracasso e culpa: ele não ajudou Agostino, deixou Gina ainda mais angustiada, e não alcançou calma e certeza no partido comunista. Os trabalhadores que Fabrizio reconheceu são William e Enore, que estavam no rio quando Agostino morreu. O mais novo fala em dialeto, o idioma dos trabalhadores, o maior começa com o dialeto e passa para o italiano, o idioma das classes superiores. Com esta observação lingüística, Tonetti chama atenção para o comentário de Bertolucci a respeito dos desejos das massas – que pretendem se tornar burgueses.


Fabrizio cobra
dos proletários um
equilíbrio e maturidade
que ele pró
prio não demonstrou




Em seguida, com a ajuda de Cesar, Fabrizio recita o Manifesto Comunista, de Karl Marx: “(...) As classes dominantes tremem só de pensar numa revolução comunista”. “(...) Os proletários não tem nada a perder [senão suas correntes]. Aliás, eles só têm a ganhar. Proletários de todo o mundo, uni-vos!” (15) No final do filme, enquanto Fabrizio e Clelia se casam, acompanhamos Cesar lendo para seus aluninhos na sala de aula a tradução de Moby Dick realizada por Cesar Pavese. “Lembra do Pavese?”, perguntou Cesar para Fabrizio e Gina, “maturidade é tudo”. Tonetti sustenta uma conexão entre o branco da baleia e do vestido de noiva de Clelia. O branco representaria muitas coisas: o capitalismo, a cobiça, valores burgueses, serenidade e poder de atração. O “encantamento da brancura” (16), que fascinou ao capitão Ahab e Fabrizio.

Notas:

Leia também:

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1. PASOLINI, Pier Paolo. Il Cinema di Poesia (1965). In Empirismo Eretico. Garzanti, 2000.
2. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The Cinema of Ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 28.
3. Idem, p. 42.
4. Ibidem, pp. 32, 35 e 43.
5. PRUDENZI, Angela; RESEGOTTI, Elisa. Cinema Político Italiano. Anos 60 e 70. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. Pp. 126-7.
6. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008. P. 189.
7. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., p. 41.
8. Idem, pp. 37-8.
9. Na cópia em dvd distribuída no Brasil pela Versátil home Vídeo, a legenda diz “...adultos são mais delicados”. Além de “ricos”, uma das traduções possíveis para “Signori” é “senhores”. Entretanto, estamos nos referindo a Agostino, um rapaz nos seus vinte anos!
10. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit, p. 31. Citação do poema “De Rerum Natura” (A Natureza das Cosias) In Michelangelo Antonioni The Bowling Alley on the Tiber. New York: Oxford University Press, 1986. P. xix.
11. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., p. 32.
12. Idem, p. 28.
13. Ibidem, p. 30.
14. No dvd da Versátil home Video, a legenda sugere outra tradução: “Ai de que não sabe que é burguês. Essa fé cristã como sinal de cada privilégio, rendição e servidão”.
15. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., p. 40.
16. Idem, pp. 43. 


12 de jul. de 2010

Quando Fellini Sonhou com Pasolini





“Desse    ponto
em  diante
,  podemos
dizer que
para Fellini
a vida é
sonho”

Tullio Kezich,
 

a respeito da influência de
Jung sobre  o  cineasta  (1)



 

Súbito Vazio Psíquico

O ano era 1954, restavam apenas vinte dias para a conclusão das filmagens de A Estrada da Vida (La Strada). Federico Fellini mergulhou numa profunda depressão que descreveria mais tarde como uma explosão, um súbito vazio psíquico. Anos depois, Fellini ainda se referia ao episódio como “uma espécie de Chernobyl psíquico”. Subitamente, todas as ansiedades dos tempos de criança reaparecem. Na época Fellini escondeu o fato, temendo que Dino De Laurentiis, o produtor do filme, cancelasse todo o projeto. Giulietta Masina, sua esposa, percebeu o que estava acontecendo mesmo que Fellini tenha tentado esconder dela também. Muitas noites de insônia passaram a povoar o cotidiano do cineasta, que vivia em constante temor do colapso total. Giulietta chamou um psicanalista. Na primavera de 1954, a chegada de Emilio Servadio na casa de Fellini marca a entrada oficial da psicanálise no mundo do cineasta italiano. (imagem acima, Susy/Iris/Fanny em Julieta dos Espíritos; abaixo, à direita, A Estrada da Vida)





“É como se alguém, sem qualquer aviso, apagasse
as   luzes
   subitamente

Federico Fellini,
sobre depressão (2)




A psicanálise, conclui Tullio Kezich, entra na vida de Fellini como um pronto-socorro, não como um interesse intelectual. Servadio sugere que o cineasta se acalme e siga com as filmagens, terminar o filme era essencial. Fellini iniciou o tratamento após a estréia de A Estrada da Vida, mas disse que só compareceu a duas sessões e não gostou da relação entre paciente e analista. O som do relógio que marcava o final de cada sessão era como um regulamento burocrático e achou o divã sufocante. Certo dia, Servadio vê seu paciente correr para a janela do consultório à procura de ar. A tempestade de verão que desabava lá fora foi a desculpa do cineasta para escapar. Muito tempo depois, Servadio questionou a versão dos fatos fornecida por Fellini. Foram mais de duas sessões, e não foram inúteis. Não havia uma tempestade naquele dia, embora tenha ocorrido algo realmente importante: Fellini era um caso clássico de “fuga para a cura”(3).

O Insaciável Dragão de Fellini

“Uma mulher possui
uma   mensagem,  e  o
prazer  da  vida  está  na
espera  pela  mensagem,
 não   pela   mensagem
propriamente  dita”

Fellini (4)





Fosse real ou imaginária, o que aconteceu durante essa tempestade? Fellini disse que se refugiou numa árvore, quando surgiu uma lindíssima mulher com um guarda-chuva oferecendo abrigo. Ela parecia ter saído de uma revista de moda! Ela passará a ser identificada como a “mulher felliniana” por excelência. Depois da chuva, o casal continuou a se encontrar e separar durante alguns anos. As mulheres sempre foram importante assunto na vida de Fellini. Ele estava sempre fazendo piadas sobre sexo e considerava o amor uma “feliz obsessão”. Vivia desenhando cenas eróticas e pornográficas em guardanapos de papel, mas seus amigos costumavam dizer que Fellini “fala muito e faz pouco”. O cineasta respondia ameaçando expor seu “insaciável dragão” escondido dentro da calça! Ainda assim, Kezich garante que nada seria capaz de abalar os laços de seu casamento com Giulietta Masina (5). (imagem acima, à esquerda, Anita Ekberg como Sylvia, em A Doce Vida)





A traumática iniciação
 sexual   do   jovem   Fellini
foi num bordel e teria gerado
 uma intratável “ansiedade
em  relação ao  sexo”(6)







De acordo com Kezich, Fellini só foi infiel a Giulietta Masina duas vezes: com Lea Giacomini e Anna Giovannini. Lea chegou a ameaçar o casamento, ele não resistia à sensualidade dela. Baseado em conversas e meias confissões que obteve, Kezich sugeriu que Lea inspirou a criação de Emma - a namorada de Marcello Rubini, em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1959) (imagens acima, à direita, e abaixo, à esquerda). Insegura ao extremo, Marcello se vê obrigado a provar incessantemente que a ama, embora não aprove a concepção que ela tem de um relacionamento afetivo. Emma tentará se suicidar. Kezich definiu Lea como uma “personalidade difícil”. Alguns sugerem que a cena em que (para variar) o casal estava brigando, teria sido baseada em fato real. Marcello acaba mandando ela embora numa estrada deserta. Em seguida, a chama de volta, ela não quer voltar para o carro. Mas então volta, e aí começa outra discussão. Desta vez Marcello a expulsa de vez do carro. É quase dia quando ele volta para buscá-la. Os dois, este é o ponto, são irredutíveis. Para cada um, apenas a fantasia do outro é que é uma fantasia! O detalhe é que os gritos e argumentos de Emma não teriam sido nada perto da reação violenta de Lea – que apedrejou o carro de Fellini. Marisa, o “trem sexual” de A Voz da Lua (La Voce della Luna, 1990), também parece ter sido inspirada pela exuberância de Lea – ainda que nessa época ela já tivesse morrido num hospital psiquiátrico. Segundo Kezich, os únicos rastros conhecidos de Lea são alguns desenhos feitos por Fellini.


                                                   
Lea era passional
e   violenta .   Fellini
reagiu  da  única  forma
que  sabia,  criou  Emma,
uma  personagem  de  A
Doce   V
ida,   insegura
ao extremo e suicida





O caso com Anna Giovannini seria ainda mais intenso e longo. Fellini a chamava de la Paciocca – uma pessoa carnuda e animada. Foi em 1957, e ela largou seu emprego de caixa numa farmácia a pedido dele - para ficar disponível. Kezich afirma com certeza que Anna e sua voluptuosa figura foi o modelo para Carla, a espirituosa e charmosa amante de Guido Anselmi em Fellini 8½ (Otto e Mezzo, 1963) (imagem abaixo, à direita). Apesar da intensidade do caso, Anna nunca ameaçou o casamento do cineasta, mesmo que Giulietta - alertada por almas bem-intencionadas de plantão – estivesse enciumada. Existe até uma referência ao caso em Julieta dos Espíritos (Giulietta Degli Spiriti, 1965), na cena em que Giorgio, o marido infiel, é seguido e filmado por um detetive.



Anna inspirou a criação

de Carla, que parecia mais
 independente  do  que   ela. 
De  acordo  com  Anna,  em
nome de seu amor Fellini
 a  “rodeava com nada” (7)







Fora Lea e Anna, Kezich disse que a vida secreta do cineasta estava mais para o cômico. Disse também que Fellini adorava “atuar” em seus flertes como o do grande sedutor - que ele realmente não era. Durante a produção de A Doce Vida, muitos queriam saber se ele tinha um caso com Anita Ekberg. Certa vez ele respondeu a um amigo: “Com certeza, por favor, você devia dizer a todo mundo que eu tive”. A esse respeito, lembrou Kezich, é digna de nota a piada de Indro Montanelli em seu livro de memórias. Ele escreveu que quando Ekberg foi à Roma para filmar, a primeira coisa que fez foi convidar Fellini a seu hotel. Ela o recebeu nua na cama. Mas como Fellini não era um desses caras que está sempre pronto, entrou em pânico. Deu uma desculpa de que estava com apendicite e sumiu. Nada disso é verdade, decreta Kezich, Ekberg nem estava interessada num papel em A Doce Vida – assinou o contrato por insistência de seus agentes. Não é impossível, sugere Kezich, que a fábula tenha sido inventada pelo próprio Fellini - apesar da dúvida posta sobre sua potência sexual.

Entre as Mulheres e Pasolini 

“Numa revista semanal (Gente), 
Lea  p.p.,  que  parece mais velha
diz:  ‘Se  Federico  tivesse  vendido
essa história, então agora eu deveria
ser sua mulher’. Há o rosto levemente
inchado   de  uma  mulher,  fixado  em
sua irredutível certeza. Numa tumba
debaixo   da   terra,   um   esqueleto
 de homem agride um de mulher,
 sugerindo   [união]   eterna”

Fellini sonhou em
20 de junho de 1977 (8)




Pier Paolo Pasolini, que até então não era cineasta, escreveu os diálogos das prostitutas em Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957) (imagem abaixo, à direita) e A Doce Vida. Sua relação com Fellini, nas palavras de Kezich, era baseada em dedicação total e intimidade afetuosa. Mas tudo acabou quando Pasolini resolve dirigir filmes também. Kezich acredita que Fellini possa ter sentido ameaçado. O “grupo de Fellini” chegou a permitir que Pasolini fizesse algumas cenas e editasse o que viria a se tornar Accattone. Desajuste Social (Accattone, 1961). Espalharam que ficou muito ruim, e Pasolini percebeu que o clima daquela amizade havia mudado - Fellini não iria produzir seu filme. Após cinco anos idílicos de trabalho em conjunto, Pasolini tornou-se um irmão para Fellini, mas não um colega. Enquanto para Pasolini, Fellini era um irmão, mas não um amigo. Nessa altura, o cineasta Vittorio De Seta menciona o nome de seu psicanalista à Fellini (9).







“Pasolini [estava] rindo baixo
com   seus   amantes  cruéis”...

Num de seus sonhos, em junho de 1968,
Fellini está
 todo atrapalhado no local de uma filmagem, reclama
de   várias    pessoas,    inclusive   de   Pasolini    (10)








Ao contrário dos analistas freudianos, o junguiano Bernhard optou por um tratamento mais flexível que chamou de “entrevistas psicológicas”. Fellini guardou em seu bolso o telefone dele por um longo tempo, até que ligou por engano – pensava estar ligando para uma mulher. Ambos se entenderam muito bem e Fellini tornou-se um habitual freqüentador – três vezes por semana durante quatro anos. Para Bernhard, os sonhos eram mais importantes do que tudo. Fellini começou a achar que Jung possuía uma personalidade muito próxima da sua. Desde criança, Fellini gostava de deixar sua mente vagar e fantasiar. Ele retornou a esse antigo hábito em 1953-1954, na época de A Estrada da Vida. Sob a orientação do Dr. Bernhard, Fellini aprendeu a compreender sua psicologia, para além do nível consciente. Através de Bernhard, Fellini não temia mais o desconhecido, aprendendo a memorizar, escrever e ilustrar seus sonhos (11).




Fellini permitia que
amigos    folheassem
seu   Livro   dos   Sonhos.
Kezich  foi  um  deles,  mas
confessou que sentia como
se bisbilhotasse a vida
privada de alguém (12)





Segundo Kezich, o Dr. Bernhard ajudou o cineasta a perceber certa natureza pueril que o dominava. Fellini personificaria a eterna criança – ou, mais exatamente, um jovem rebelde. Em 1965, durante as filmagens de Julieta dos Espíritos, Bernhard morre. De acordo com Kezich, o fruto mais tangível desse encontro foi o lendário Livro dos Sonhos. Kezich reparou que a maioria dos sonhos é como uma “cidade das mulheres” – uma referência a Cidade das Mulheres (La Città delle Donne, 1980) (imagem acima) -, onde a maioria delas é do seu tipo que agradava à Fellini - voluptuosas e exuberantes. Mas também existem os sonhos onde ele é forçado a transar com mulheres repelentes. (imagem abaixo, à direita, Pasolini, esquerda, e Fellini, durante as filmagens de Noites de Cabíria)


Pasolini, excluído do trono reservado a amigos de Fellini, continuou em seus sonhos

O antigo amigo que, ao tornar-se cineasta, passou a ser visto como um competidor protagonizou sonhos curiosos. Se fosse possível, ou mesmo razoável, tirar conclusões a partir dos sonhos de Fellini, poderíamos comparar a mitologia do mulherengo (e o traumático fim de sua virgindade no bordel) com seus encontros com Pasolini em sonhos. A conta parece simples: um Fellini sexualmente problemático, casado com “a mulher de sua vida”, que ao mesmo tempo nutre uma imagem pública de Don Juan. Em seus sonhos com Pasolini, entretanto (ou talvez justamente por causa disso), Fellini nem fala de mulher. Muito pelo contrário...



“Eu estava na cama com Pasolini, no pequeno quarto em Rimini onde eu estudava quando era garoto (trinta anos atrás). Dormimos juntos toda a noite como dois irmãozinhos, ou talvez como marido e mulher, porque agora que ele está levantando vestindo camiseta e cueca, dirigindo-se ao banheiro, eu percebo que estou olhando para ele com fortes sentimentos de terna afeição” [Fellini não datou este sonho. A época provável é fevereiro de 1961] (13) (abaixo, à esquerda, Fellini; à direita, Pasolini)



“Numa estrada suja, na periferia mais distante da cidade, já a meio caminho da zona rural, eu estava andando entre Pasolini e um de seus amigos homossexuais. Tínhamos que falar um pouco entre nós porque tudo que estávamos dizendo era captado e transmitido ao vivo por uma câmera de televisão que nos seguia. A estrada está cheia de poças – deve ter chovido – e o céu noturno está sujo com grandes nuvens rasgadas, mas a noite estava luminosa. De ambos os lados da estrada, atrás de troncos de árvores e até nos postes e fios do telégrafo, eu percebi enormes, sujos e imundos ratos se arrastando para fora, brilhantes com a água da chuva. Alguns deles, os maiores, têm grandes asas de morcego” [sonho de 28/03/1975, Pasolini morre em 2 de novembro] (14)







Os sonhos de Fellini
com Pasolini em 1961, 1968
e 1975,  diferiam  daqueles de
1977,  quando  Pier Paolo  já
havia sido assassinado



“’É vida e também morte’. Cantava alguém uma canção maravilhosa que me disseram ser de O Trovador [de Giuseppe Verdi]. ‘É vida e também morte’. Eu acordei com o eco dessa música feliz e festiva em minha cabeça. Quem estava cantando? Talvez Pier Paolo Pasolini, que em meu sonho tinha uma pequena participação em meu filme. É a cena final. Pasolini foi gentil, simpático, preparado e disposto. Ele pensou que sua pequena parte havia acabado e foi para casa, quando me lembrei que tinha de pegar um close dele. Poderíamos fazer isso no dia seguinte. Então eu estava no carro com ele. Titta estava lá também. Pier Paolo estava sentado entre nós. Nossas mãos procuraram uma à outra e com ternura se uniram de brincadeira. Pier Paolo olhava as antigas muralhas romanas que passavam à esquerda e pareciam emolduradas por mármore moderno. ‘Como alguém vai descrever essas ruínas estupendas!’ Disse Pier Paolo, sorrindo e melancólico. ‘É vida e também morte...’ Eu ainda posso ouvir aquela música, aquela noite e o verso misterioso porém de significado cristalino. Seria esse o final do filme?” (Sonho de 6 de junho de 1977) (15)





“Na casa de Pasolini. Eu o abraço com afeto, meu coração doente porque sei que ele foi condenado à morte. Aparentemente ele matou um amigo, ‘o diretor’. Estou convencido de que não é verdade, de que a sentença é injusta e estou surpreso que Pier Paolo esteja calmo e sereno a ponto de perguntar sobre minha saúde, debochando cordialmente sobre minha atividade sexual. Eu digo para ele que tudo está bem: Eu acrescento que ‘estou cheio de vitaminas’, Pier Paolo sorri docemente e pede para que eu coloque algumas dessas vitaminas em seu ‘Agnese’, referindo-se a alguma coisa que ele escreveu e amaria que [eu transformasse num filme]. Sabendo que ele poderia ser executado de um dia para outro me deixava indescritivelmente mortificado. ‘Temos que pedir a Leone (o presidente [italiano]) para perdoá-lo’, eu digo, meus olhos cheios de lágrimas. ‘Você tem de ser perdoado!’ Mas eu sei que a sentença já foi passada de qualquer forma as regras e os labirintos da burocracia fariam qualquer ajuda chegar tarde demais. Eu me sentei numa cadeira próximo à Pier Paolo mas, seu cão latiu para mim e me forçou a sentar no chão. A fera saltou imediatamente para a cadeira, Pier Paolo explicou que é a “cadeira dele”. E assim sentamos tranqüilos, olhando um para o outro no silêncio do pequeno e modesto quarto” (16)


Leia também:

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Fellini e sua Biografia: Mitos e Verdades

As Mulheres de Luis Buñuel
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As Mulheres de Ingmar Bergman (I)
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As Mulheres de Federico Fellini (II), (IV)
A Doce Vida, o Espaço e o Tempo
Fellini e a Psicanálise (I), (final)
Fellini no Mundo da Lua
Bertolucci no Mundo da Lua
Bertolucci e a Psicanálise: O Conformista (I), (final)
Yasujiro Ozu, o Tempo e o Vazio
Fassbinder e a Psicanálise

Notas:

1. KEZICH, Tullio. Federico Fellini. His Life and Work. New York/London: I.B. Taurus, 2006. P. 227.
2. Idem, p. 158.
3. Ibidem, p. 159.
4. Ibidem, p. 161.
5. Ibidem, p. 160.
6. Ibidem, p. 165.
7. Ibidem, p. 164.
8. BOARINI, Vittorio; KEZICH, Tullio (eds.). Federico Fellini. The Book of Dreams. New York: Rizzoli, 2008. P. 534.
9. KEZICH, Tullio. Op. Cit., p. 219.
10. BOARINI, Vittorio; KEZICH, Tullio (eds.). Op. Cit., p. 515.
11. KEZICH, Tullio. Op. Cit., pp. 202-3.
12. Idem, p. 225.
13. BOARINI, Vittorio; KEZICH, Tullio (eds.). Op. Cit., p. 474.
14. Idem, pp. 526-7.
15. Idem, pp. 336 e 534.
16. Ibidem, pp. 339 e 535. 


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