“Existem duas almas
em Zabriskie Point,
o retrato da América
e a história privada,
elas não chegam a se fundir num filme
harmoniosamente”
Wim Wenders (1)
A Classe Média Em Nós
Alberto Moravia questionou Michelangelo Antonioni em relação ao papel daqueles estudantes em
Zabriskie Point (1970). Afinal de contas, até então seus filmes só haviam mostrado os burgueses da classe média lutando contra seus problemas. Aqueles estudantes, Moravia lembra, procuravam colocar a si mesmos fora do sistema. Antonioni disse que se interessou realmente por eles, a ponto de incorporá-los ao filme. Na concepção de Antonioni, eles eram elementos típicos da situação dos Estados Unidos de então (2).
“(...)[Em Zabriskie Point],
eu não mudei as cores, tentei explorar as cores que tinha”
Antonioni comentando sobre sua
tendência de mudar as cores das
árvores e das ruas em seus filmes (3)
Antonioni chega a insinuar que esses estudantes são a parte dos Estados Unidos que ele gostou, sendo que a classe média foi justamente de quem não gostou. Em seguida o cineasta faz uma comparação, em sua opinião a classe média norte-americana é louca, alienada e cheia de boas intenções, enquanto a classe média européia é corrupta, embora não seja louca. Aqueles jovens estudantes, Antonioni enfatizou, ao contrário da burguesia, demonstram uma absoluta indiferença em relação ao dinheiro. É o caso de perguntar quantos anos durou essa indiferença!
Sexo Grupal com Areia
A sexualidade foi outro aspecto daquela juventude norte-americana que parece ter tido grande impacto em Antonioni. Na famosa cena da orgia no deserto, Mark e Daria transam na areia. Aos poucos, outros casais surgem, multiplicando aquele sexo num delírio que Aldo Tassone sugere teria sido fruto da imaginação de Daria – que ofereceu maconha para Mark, que recusou. Triunfo
hippie do sexo livre e da quebra das convenções. Tudo isso em Zabriskie Point, numa parte isolada do deserto da Califórnia chamado Vale da Morte.
Citando Jean-Luis Bory, Tassone fala do deserto e do sexo: “Esse deserto da morte, onde reinam a esterilidade e a pureza – o grau zero da sociedade de consumo – torna-se um paraíso de poeira luminosa para Adão e Eva 1970 que, reinventando o casal, fazem renascer a vida. A poeira não é mais fim, mas começo” (4). Mas o Éden, como bem lembrou Tassone em seguida, não passa de uma miragem, um delírio onírico. Antonioni gostava dos desertos e disse que “freqüentou” alguns dos encontros de amor (Love-ins) dos hippies. Pensou em inserir um desses encontros no filme, mas desistiu. No Ano Novo de 1968-9 ele antecipou algumas considerações sobre a polêmica em torno do sexo em Zabriskie Point, que ainda não havia sido lançado:
“Foi só uma idéia, mas eu nunca vi essa idéia como algo real. Eu não tinha a imagem, eu não achava a chave para fazer isso. Eu vi muitos encontros de amor [
Love-ins] na América – com grupos brincando e gente fumando ou dançando ou não fazendo nada, apenas no chão. Mas eu estava procurando por algo diferente – algo que fosse mais relacionado com o caráter especial de Zabriskie Point [o lugar no deserto], eu não encontrei essa relação. Vou colocar isso no filme de qualquer jeito, mas de uma forma diferente – apenas algumas pessoas e um fundo quase vazio” (5)
Peter Brunette, que não gostou de Zabriskie Point, não conseguiu esconder que considerou muito bem composta a cena da orgia dos hippies no deserto. Depois de elogiar, preferiu denegrir a imagem de Antonioni dizendo que a cena foi uma coisa embaraçosa vinda de um cineasta já com seus 57 anos liberando sua sexualidade. Curiosamente, Brunette não faz o mesmo tipo de comentário em relação às cenas ousadas em Blow Up. Depois Daquele Beijo (Blow Up, 1966), apenas alguns anos antes de Zabriskie Point – não podemos esquecer que Brunette é norte-americano, talvez não queira correr o risco de pensar... diferente... dos seus pares/patrões. A respeito da cena, Antonioni disse em 1969:
“A América me modificou. Agora eu sou uma pessoa muito menos isolada; mais aberto, preparado para dizer mais. Eu até mudei minha visão do amor sexual. Em meus outros filmes, eu olhava par o sexo como uma doença do amor. Eu aprendi aqui [nos Estados Unidos] que o sexo é apenas uma parte do amor; estar aberto e receptivo um ao outro, como os garotos e garotas de hoje estão, é a parte importante” (6)
Eu Quero que (Quase) Tudo se Exploda
“(...)
Uma das raras
vezes que estive feliz foi
durante a explosão final em
Zabriskie Point.
Estava muito tenso,
mas feliz.
A audácia da cena era
tão interessante! Espero que
essa confissão não seja mal
interpretada”
Michelangelo Antonioni (7)
Como bem lembrou Tassone, o começo da seqüência final evoca a seqüência final de O Eclipse (L’eclisse, 1962). Logo depois que Daria deixa a casa e o mundo do patrão, Antonioni mostra partes vazias da mansão. O terraço deserto, uma revista tem suas páginas viradas pelo vento, um cigarro aceso no cinzeiro. Quando já estamos nos acostumando com aquele passeio do olhar, a ponto de esquecermos que momentos antes Daria teve um brevíssimo lampejo da explosão, somos assaltados por uma série de repetições da mesma explosão.
Há quem tenha visto uma provocação na repetição da destruição da mansão do representante da burguesia norte-americana. Antonioni utilizou 17 câmeras e filmou a cena de vários ângulos e distâncias. Dali a pouco, o quadro muda para uma visão alucinatória da explosão. Acompanhamos o vôo em câmera lenta de vários objetos típicos da sociedade de consumo, incluindo frangos crus e livros, passando por geladeiras, televisores e mesas, pacotes de pão e cereal. Quando já estamos nos acostumando com tudo aquilo, de repente voltamos a Daria, com um leve sorriso nos lábios olhando para a mansão intacta.
“Para alguns,
o cineasta só se
apaixonou de verdade
pelas seqüências
do deserto”
Aldo Tassone (8)
Daria entra no carro e vai embora, e o filme acaba num grande sol. Seria o entardecer do estilo de vida norte-americano? Seria o anúncio do crepúsculo da sociedade norte-americana sugerido por Alberto Moravia quando chamou os Estados Unidos de “soberba Babilônia dos tempos modernos”? (9) Bem, seja como for, ninguém pareceu se incomodar em colocar um carro entre os objetos da explosão alucinatória em câmera lenta. Será que o automóvel, um dos símbolos do estilo de vida norte-americano, não entra nessa conta? Seria hippie demais da conta não possuir um carro, mesmo para Moravia ou Antonioni?
Salvos pelo gongo!
A crítica à sociedade
de consumo não inclui
largar o carro!
“Uma conclusão tão abertamente alegórica encorajou interpretações apocalípticas de um filme que se queria sobre tudo uma história de amor. Adaptação moderna do mito de Ícaro, que escapou do labirinto da sociedade de consumo (Jean-Luis Bory), metáfora do amor impossível (Fernaldo Di Giammatteo), Zabriskie Point foi interpretado, sobretudo, como um apelo a revolução. Partir de novo do zero depois de um apocalipse de proporções bíblicas, uma condenação da sociedade de consumo. Moravia viu nesse filme ‘uma profecia do desastre atômico que punirá a sociedade de consumo pó haver permitido que Tanatos triunfasse sobre Eros. Que o fim, a saberá o homem, se torna-se o meio, e o meio, a saber, o lucro, se torna-se o fim’: ‘O filme apresentou a hipótese nova e perturbadora segundo a qual um fogo ‘moralista’ poderia destruir a orgulhosa Babilônia moderna, os Estados Unidos’. Todavia, Antonioni não é um moralista, e seu filme não é um panfleto sobre ou contra a América; mas a tela de fundo da estória – a sociedade Americana – é tão forte e tão determinante que termina por tomar o lugar do herói (...)” (10)
A primeira coisa que salta aos olhos de alguém que conhece os filmes de Antonioni é a presença constante de uma trilha sonora musical. Um excesso absoluto de melodias típicas daquela época e lugar, levando-se em consideração que Antonioni renegava completamente o uso de trilhas sonoras para fazer clima... Talvez isso tenha relação com as mudanças de humor que o cineasta disse que experimentou em sua visita aos Estados Unidos. Pelo menos a parte da trilha sonora fruto do grupo inglês Pink Floyd encaixa bem na alucinação da seqüência da explosão. (a banda comeu e bebeu em Roma as custas de Antonioni e no fim parte do trabalho não era mais que regravação de material já existente)
Ou talvez a música seja invenção dos produtores – que interferiram no projeto de Antonioni (11), o que deveria ser levado em consideração quando se questiona o trabalho do cineasta neste filme. Em toda a literatura crítica que pude consultar, com exceção do comentário de Peter Bondanella, nada se diz a respeito desta interferência ou sobre sua extensão. É de Bondanella também a sugestão de que os objetos que vemos explodindo e flutuando na alucinação final de Daria deveriam ser tomados apenas como objetos estéticos, não deveriam ser interpretados em função de sua ligação com o sistema econômico que ela despreza. Enfim, para acabar com todas as dúvidas, eis que o Antonioni disse a respeito da cena final:
“(...) Agora, vamos tomar como exemplo a cena final, que provocou muitas reações contrastantes. Bem, nesta cena eu visualizei o desejo de uma mulher cujo [namorado] acabou de ser morto de forma anônima, e por nenhuma razão aparente. É sua reação mental que estou mostrando, e penso que é perfeitamente compreensível que ela poderia querer que a casa explodisse, fosse pelos ares” (...) “Talvez os americanos simplesmente não tenham vontade de aceitar uma visão crítica de seu país por alguém que não é americano. Talvez Zabriskie Point tenha tido esse efeito, mesmo se, pessoalmente, eu lamente que o filme tenha sido pelo menos parcialmente mal interpretado. Mesmo assim, quando voltei aos Estados Unidos [em 1986], notei que o filme novamente estava sendo exibido em vários cinemas. Quero dizer, parece um sinal encorajador, talvez o público americano esteja mudando sua opinião em relação ao meu filme (12)
Notas:
1. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. P. 291.
2. MORAVIA, Alberto. The American Desert. Entrevista de Antonioni em agosto de 1968 in ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 299.
3. KINDER, Marsha. Zabriskie Point, Sight & Sound, 1968-9 in ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 308.
4. TASSONE, Aldo. Op. Cit. 2007, p. 287.
5. KINDER, Marsha. Op. Cit., p. 306.
6. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 23.
7. TASSONE, Aldo. The History of Cinema is Made on Film. Entrevista publicada em 1979 in ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p.216.
8. TASSONE, Aldo. OP. Cit., 2007, 291.
9. Idem, p. 51.
10. Ibidem, p. 290.
11. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 228.
12. RUBEO, Ugo. A Constant Renewal. Entrevista de Antonioni em 1987 in ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 322.