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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

19 de dez. de 2009

A Trilogia de Valerio Zurlini


 
Quando o cinema
nos leva há um tempo
e  espaço  longe  deste
em  que vivemos
  (sem
nos descolarmos dele)
, então nós descobrimos finalmente que existiu
um cineasta chamado
Valerio Zurlini



Verão Violento (Estate Violenta, 1959), A Moça com a Valise (La Ragazza com La Valiglia, 1961) (imagem acima) e A Primeira Noite de Tranqüilidade (La Prima Notte di Quiete, 1972) são os filmes que compõem o que Antonio Costa chama de Trilogia da Riviera Romagnola, do cineasta Valerio Zurlini. Com este nome Costa se refere a uma região da Itália muito conhecida como cenário para filmes que se passam nas férias e que, por sua vez, tem relação com a fase do Milagre Econômico italiano – uma época em que as pessoas passam a dispor de mais dinheiro e tempo livre.


Rimini, a cidade natal de Federico Fellini está localizada no litoral da Emilia Romagna. Uma cidade a qual o cineasta se refere, direta ou indiretamente, em seus filmes. Na mitologia do cinema italiano, Rimini é a cidade das férias a beira mar, ponto de referência de um “cinema balneário” – ou de comédia de balneário. Toda uma nova iconografia, distante do Neo-Realismo italiano, aflora: a praia a barraca de praia, o carro popular, a auto-estrada, as canções da época, dão forma a uma mitologia do consumismo motorizado e de feriado. (imagem ao lado, Verão Violento)




Como Fellini, embora com diferente sensibilidade, Zurlini é um exemplo da fidelidade de um autor a uma paisagem, a um “clima figurativo”. Antonio Costa chama atenção para a abordagem de Zurlini em relação à pintura de Morandi, para exemplificar a maneira como o cineasta mostra aquela região italiana. A propósito de Morandi, Zurlini escreveu: “tendendo a afastar-se sempre mais da própria geografia real, da própria essência física para ganhar a duras penas e incrível certeza o tempo do espírito, o secreto e despido ritmo da contemplação e da fantasia” (1). No cinema de Zurlini, não estamos mais no tempo e no espaço onde aparentemente nos encontramos...


Em Verão Violento, o tema da transgressão e do desejo daquele casal é reservado a um lugar autônomo, absoluto: apenas em parte ele se deixa contextualizar, apenas em parte se deixa “situar” pelo filtro da memória histórica. Mesmo nas várias cenas realistas, Zurlini dá maior ênfase à dimensão psicológica e individual – como nas cenas em que assistimos a reação da multidão ao fim de Mussolini ou ao ataque aéreo no final do filme. A estória é ambientada em Riccione, e os locais de férias vêm “datados” através da dança da época, com uma música que produz um estranhamento em relação às imagens e sons do Fascismo.


“Já neste primeiro capítulo da trilogia, Zurlini se coloca naquela ‘tradição dos cineastas da paisagem’, segundo a definição de Jean Gili, tornando essencial a escolha da ambientação, que se torna ‘parte integrante da obra’, e não elemento puramente decorativo” (2)


Em A Moça com a Valise (imagem acima), a ambientação costeira é evidente, em elementos de uma iconografia do ambiente de férias: o bar, a máquina de música (jukebox), os cartazes publicitários, a praia, a estação ferroviária (uma estação em Rimini, ao mesmo tempo reconhecível e abstrata). O desenvolvimento da trama, a vida da mulher vítima de um mundo cínico e vulgar e o amor impossível de um adolescente, encontra seu clímax nas mais óbvias e banais situações das cidades balneário. Mas é justamente neste cenário que o drama do adolescente encontra um sotaque de intensidade e verdade singular.



Em A Primeira Noite de Tranqüilidade (imagem acima), Zurlini retorna a Rimini durante o inverno. Apesar de algumas cenas externas detalhadas, como a da Praça Cavour onde Gerardo estaciona seu Miura, Zurlini privilegia interiores sujos ou de decoração desalinhada, paisagens nebulosas, vistas marinhas ou detalhes da praia: privilegia um espaço agora sem perspectiva (nos sentidos técnico e metafórico). Espaço desestruturado que remete a um sentimento de perda.


Espaço que Zurlini contrapõe ao cenário da Igreja em ruínas, onde Daniele e Marina visitam a imagem da Madonna del Parto (1467), de Piero Della Francesca. Nesta imagem, lembra Costa, o princípio organizador do espaço é o corpo humano, que, neste sentido, contrapõe-se idealmente a espacialidade “esvaziada” que prevalece no filme. A morte de Daniele num acidente automobilístico, Costa sugere ainda, lembra a mítica de James Dean. Mais que introduzir na estória um efeito de volta ao passado, esta escolha da direção parece querer confirmar aquela idéia de inevitabilidade de um destino de distanciamento e de perda que percorre todo o filme.


Leia também:

O Cinema Político de Valerio Zurlini

Notas:

1. COSTA, Antonio. Paesaggi Visivi e Sonori Nella “Trilogia della Riviera” IN ACHILLI, Aberto; CASADIO, Giamfranco. Elogio Della Malinconia. Il Cinema di Valerio Zurlini. Ravenna: Edizioni Girasole, 2000. P. 25.
2. Idem, p. 26.


17 de dez. de 2009

A Realidade do Neo-Realismo



“Cineastas  que
rotulamos hoje como neo-

realistas foram parte crucial de
uma revolução mais geral no pós-
guerra  que  se  caracterizava   por
algumas perspectivas  filosóficas  e
estéticas,   todas   unidas  por  uma
aspiração comum de olhar a Itália
sem preconceitos e desenvolver
uma linguagem de cinema
mais honesta, ética, mas
não menos poética”

 


Peter Bondanella (1)


Tratamento realista dos temas, cenário popular, conteúdo social, atualidade histórica, compromisso político, utilização original de atores não profissionais, efeito documental na fotografia. Embora exista um consenso quanto a considerar o Neo-Realismo italiano no cinema do imediato pós-guerra como um momento crucial na evolução da sétima arte, há certa controvérsia quanto ao que ele representou. No que diz respeito à técnica de montagem, afirmou Andre Bazin, ele procura seguir o ritmo da realidade, distanciando-se da montagem como Sergei Eisenstein a concebia (2). (imagem acima, Glauber Rocha e Roberto Rossellini)

Nem mesmo os próprios cineastas identificados como neo-realistas concordavam em relação às características principais do Movimento. Cesare Zavattini, importante roteirista, defendia enredos elementares e até banais, além de enfatizar a necessidade de focalizar a duração “real” do tempo real. Por outro lado, embora cineastas como Roberto Rossellini, Vittorio De Sica e Federico Fellini simpatizassem com essa reverência em relação à vida diária (o que ele chamava de ”ilimitada verdade nas coisas, fatos e pessoas”), raramente, se tanto, eles identificaram suas intenções artísticas com o realismo tradicional.

Fellini declarou que o “Neo-Realismo é uma forma de olhar sem preconceitos a realidade, sem convenções entre ela e eu – encarando-a sem pré-concepções, olhando para ela honestamente – seja lá o que for a realidade, não apenas a realidade social, mas tudo que existe dentro de um homem”. Rossellini sugeriu que o realismo é “simplesmente a forma artística da verdade”. Como Fellini, ligava o Neo-Realismo mais à uma posição moral do que a técnicas ou posições ideológicas. De Sica afirmou que seu trabalho refletia “a realidade transposta para o reino da poesia” (3).

É um fato que existe uma tendência a identificar o Neo-Realismo em relação aos problemas sociais italianos, minimizando esse outro lado mais abstrato da vida. Que existe um comprometimento com os problemas sociais da Itália no pós-guerra é um fato. Entretanto, fazendo uma referência direta a dicotomia que já se anunciava desde o cinema mudo entre os documentários dos irmãos Lumières e as fantasias de Méliès, Rossellini insistiu que um filme deve respeitar duas tendências humanas diametralmente opostas:

“Aquela da concretude e aquela da imaginação. Hoje nós tendemos a brutalmente suprimir a segunda... Esquecendo a tendência imaginativa, como estava dizendo, tendemos a matar em nós cada sentimento de humanidade e criar um homem-robô que pensa de apenas uma forma e tende ao concreto” (4)

Considerando por este prima, compreende-se então a miopia dos críticos italianos de esquerda da época, que sistematicamente reprovavam alguns filmes e até diziam que outros não eram filmes Neo-Realistas, já que não abordavam os problemas sociais italianos à maneira do discurso do realismo socialista. Nunca houve um Manifesto que governasse o que foi mais uma tendência Neo-Realista do que um “Movimento”. Esses mesmos críticos diziam que o Neo-Realismo estava “em crise” na década de 50 do século passado, ou que os cineastas haviam “traído o movimento”. Tudo isso, sugere Bondanella, tinha mais a ver com desentendimentos ideológicos entre os próprios críticos.

O ponto básico entre “os neo-realistas” é que eles abordavam problemas reais, empregavam histórias atuais e focavam em personagens em que se podia acreditar, saídos freqüentemente do cotidiano da Itália. De fato, como lembra Bondanella, muitos desses filmes sublinhavam a relação entre ilusão e realidade, ficção e fato. Entretanto, além do fato de muitos que só atentavam para os detalhes de crítica social e rejeitavam ver seu país na tela, havia o fato de que os filmes neo-realistas eram considerados filmes “de arte” (5), restringindo ainda mais o público espectador italiano disposto a pagar para ver os filmes.

De acordo com Bondanella, dos 822 filmes produzidos na Itália entre 1945 e 1953, apenas 90 (em torno de 10%) poderiam ser chamados de neo-realistas. Portanto, afirma, é enganador identificar toda a produção italiana do imediato pós-guerra com o Neo-Realismo. Com a exceção de Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, 1945), Paisà (1946), de Rossellini, Em Nome da Lei (In Nome della Legge, 1949), de Pietro Germi, e Arroz Amargo (Riso Amaro, 1949), de Giuseppe De Santis, mesmo as obras-primas do gênero não estavam entre os filmes mais distribuídos para os cinemas italianos, a maioria deles foi fracasso de bilheteria.

Notas:

1. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 35.
2. Idem, p. 31.
3. Ibidem, p. 32. A ênfase na frase de Rossellini é minha.
4. Ibidem, p. 33.
5. Ibidem p, 36.


11 de dez. de 2009

O Exótico e o Cinema Italiano


Durante muito tempo, a Europa olhou para os outros continentes com o desprezo dos olhos do conquistador. Aliada a essa visão preconceituosa, havia também a tendência a ver os “outros” enquanto culturas exóticas ligadas ao passado da civilização humana – leia-se, ao passado da “humanidade européia”. O cinema italiano não ficou imune a esta tendência. Os povos de outros continentes, especialmente África e Ásia, surgiam na tela da década de 60 do século passado como curiosidades mostradas em shows de boate (na mesma década de 60 que fez os europeus engolirem os movimentos de independência de suas ex-colônias).


A Doce Vida (La Doce Vita, 1960), dirigido por Federico Fellini, já na segunda cena nos apresenta uma apresentação de dançarinos exóticos – talvez do sudeste asiático. Não estavam num teatro ou palco, mas numa boate. Um número de entretenimento, para uma dança que talvez seja até um ritual sagrado – quem quer saber? Importa apenas o colorido brilhante das vestimentas (provavelmente vistas como fantasias) e o caráter insólito daqueles trejeitos (daquela dança) acompanhados de sons e vocalizações “estranhas” (última imagem da parte seguinte, O Eclipse Africano...). Esta descontextualização de uma dança que talvez até seja um ritual sagrado, que transforma o diferente num ritual bizarro para entreter bêbados, dá bem a dimensão da relação do mundo ocidental com as outras culturas. (imagem acima, cena de Meus Caros Amigos, onde um deles aparece nu diante de sua amante e pede que ela leia o jornal que ele posicionou diante da genitália - vemos uma manchete que fala da visita do Papa Paulo VI à Uganda, na África; em função da genitália, uma conotação ambígua para ambos; Amici Miei, 1982, direção Mario Monicelli)

O Eclipse Africano: Quando o Outro é Menos

O cineasta Michelangelo Antonioni nos apresenta alguns exemplos dessa dificuldade do europeu em lidar com culturas diferentes da sua. Em A Noite (La Notte, 1961), o casal confuso Lídia e Giovanni está a caminho de mais um lançamento de livro dele quando resolvem dar uma parada na boate. Enquanto se desentendem temos um espetáculo de exotismo africano, acompanhamos os malabarismos de uma mulher negra de biquíni equilibrando uma taça (com champagne?) (imagem ao lado). Enquanto a mulher equilibra um copo cheio e se contorce, um homem, negro e cheio de músculos, parece uma estátua que se move.


Como parecem indicar os exemplos de Fellini e Antonioni, era comum naquela época encontrar “números circenses” protagonizados por elementos de outras culturas em boates pela Europa. Em O Eclipse (L’eclisse, 1962), o próximo filme de Antonioni, o passado é sempre colocado como um elemento irrelevante pelos personagens. Suas próprias velhas igrejas aparecem de relance aqui e ali. Na seqüência em que Vittoria se junta com Anita para visitar Marta, uma amiga que vive na África, acompanhamos o discurso de uma típica européia colonialista e racista. Marta “explica” que os negros africanos acabaram de “descer das árvores” e já querem comandar um país. Enquanto explica porque os europeus têm mais direito à terra africana do que os africanos, Marta folheia um livro de fotografias da natureza do país africano que ela acha que é dela.

África clichê,
fruto do passado
colonial europeu, e do
italiano em particular
,
esconde a referência
coberta de medo à
África atual

Reduzido à geografia, vemos o tal país africano ser reduzido ao clichê de uma espécie de jardim do éden, onde seus habitantes originais aparecem (quando aprecem) apenas como parte da paisagem e não são mais do que exóticos negros vestidos com roupas simples mais muito coloridas. Enquanto isso, a loura Vittoria, vestida num lençol (ou, se preferir, vestida como uma guerreira africana) e pintada de preto, começa a dançar brandindo uma lança. Antes disso, ela examinava com os dedos uma grotesca mesa sustentada com o pé de um elefante (ou, se preferir, um ex-elefante) no meio da sala. (imagens acima e ao lado)


Antonioni se estende bastante nesta seqüência, filmando as fotografias da África no livro de Marta, que o folheia como se mostrasse seu próprio jardim. Em sua África idealizada, Vittoria até acredita que os africanos são mais felizes do que os europeus – entenda-se do que a sociedade moderna-capitalista-burguesa. De acordo com ela, eles “estão bem” porque “não pensam na felicidade”, então as coisas “se arrumam”. Enquanto aqui (na Europa), afirma a loura referindo-se a seus próprios problemas afetivos, ao contrário, há um grande cansaço, também no amor (1).

Antonioni
parece indicar
o papel da imagem,
seja na introdução
do exótico, seja em
sua elaboração no
Ocidente (2)

Na década de 60, portanto contemporaneamente a O Eclipse, a África vivia uma fase de descolonização. Os países africanos, entretanto, se formavam em grande parte seguindo as fronteiras anteriormente demarcadas pelo colonizador europeu. Marta é parte deste contingente europeu que vivia lá, mas encarava os africanos como um problema. Nem os animais lhe interessavam, referia-se a eles apenas como caça (o elefante cujo pé virou uma mesa) ou praga (os hipopótamos mortos por comerem o pasto de seus bois). Ela parece não perceber que o problema eram os europeus. O comentário racista de Marta dá bem a dimensão do problema.

Antonioni voltará a mostrar a África em Profissão Repórter (Professione: Reporter, 1975), mas por outro ângulo – veremos o lado problemático das novas repúblicas que se formavam e a turbulenta relação com as questões de direitos humanos. Quanto a este assunto, Valério Zurlini também nos legou um exemplo deveras esclarecedor em relação à promíscua relação entre o ex-colonizador europeu e as ditaduras africanas. Em Sentado à Sua Direita (Sedutto Alla sua Destra, 1965), conta a história de Patrice Lumumba (1925-1961), político africano que lutou contra os colonizadores belgas, que insistiam em manter o Congo sob suas garras. Lumumba foi assassinado, não sem a ajuda de africanos ligados aos belgas. Embora estes dois filmes não estejam preocupados em mostrar a África como um jardim zoológico exótico gigante, o exótico aqui está nas entrelinhas.

Muitos vão dizer que a incompetência política e os banhos de sangue na África são fruto de uma incapacidade mental dos africanos em operar com instituições políticas importadas da Europa. Conta-se que na África do Sul, quando ainda estava sob os grilhões do regime racista do apartheid, os presos (negros) eram obrigados a usar bermudas. Consta que o objetivo era convencê-los de que eram crianças – o que Nelson Mandela diria dessa moda do bermudão no Brasil atual?! (ao lado, cena de A Doce Vida mostrando uma dança "asiática" como atração de boate)

Entre a Nostalgia e a Realidade 

Per Paolo Pasolini sempre chamou atenção para o caráter mais autêntico das culturas que não estavam ainda “contaminadas” pelo modo de vida e os interesses materialistas burgueses – Pasolini falava de um genocídio cultural. Além disso, ele procurou resgatar o que havia de autêntico na cultura ocidental voltando à Grécia Antiga em Édipo Rei (Edipo Re, 1967) (imagem abaixo) e Medéia (Medea, 1969). Ele queria filmar nos países do Terceiro Mundo porque acreditava encontrar rostos antigos, natureza quase intacta e os sinais do sentimento de religiosidade que estava sumindo no Primeiro Mundo.

Édipo Rei (filmado em grande parte nas paisagens do Marrocos) embora remetesse à Grécia, Pasolini pretendia se afastar dela e se perder no tempo. Pensou até em ambientá-lo entre os Astecas, mas a produção se tornaria muito cara. Medéia (filmado em grande parte na Turquia e na Síria), por outro lado, os mundos arcaico e moderno são excludentes – o filme representaria uma crítica ao mito africano ou terceiro-mundista como resistência ao mundo contemporâneo. (imagem acima, cena As Mil e Uma Noites, filme mais erótico da Trilogia da Vida, deix a evidente a ligação que Pasolini fazia entre corpo, sexualidade não reprimida e Terceiro Mundo)

Em Notas Para Uma Oréstia Africana (Appunti Per un’ Orestiade Africana, 1970) (filmado em grande parte em Uganda, Tanzânia e outras partes da África), Pasolini aposta na chance da formação de uma África futura, que seria capaz de fazer sobreviver a África arcaica, resultando daí nações livres e independentes (3). Nos filmes da famosa Trilogia da Vida Pasolini pretendia opor ao presente consumista (a irrealidade da civilização consumista) um passado recente em que o corpo e as relações humanas eram ainda “reais” – nas palavras de Pasolini: “arcaicas, pré-históricas, rústicas, mas reais”.

As locações se espalhavam por quase toda África e Ásia. O Decameron (Il Decameron, 1971) foi filmado na Itália, França e Yemen do Norte. Os Contos de Canterbury (I Racconti di Canterbury, 1972) filmado na Inglaterra e na Itália. As Mil e Uma Noites (Il Fiore Delle Mille e Una Notte, 1974), filmado no Irã, Nepal, Etiópia, Índia, nos antigos Yemen do Norte e do Sul. Pasolini rebatia as críticas e insistia que não era nostálgico (4). (ao lado, cena de La Luna, direção Bernardo Bertolucci, 1979; Roma incorpora o exótico, estamos na Porta Ostiense, ao lado da pirâmide de Gaios Cestius, sua tumba, séculos 12 a 18 A.C.)


Notas:

Leia Também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
Religião e Cinema na Itália

1. Ver Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (I). A cena acontece aos 37:02.
2. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 168n16.
3. AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac & Naify. 2002. P. 76.
4. Idem, p. 72.  


14 de nov. de 2009

A Classe Operária Vai ao Paraíso


“O  indivíduo
trabalha para comer
.
[...] A comida desce e aqui
tem  uma  máquina  que
amassa. [...] O indivíduo é
como uma fábrica! [...]
Fábrica de
merda!”
 

Lulu Massa

 

Um Homem da Massa

Em 1971, a Itália finalmente começava a atingir um padrão industrial almejado desde os primeiros dias do pós-guerra. Em Rocco e Seus Irmãos (Rocco e i Suoi Fratelli, 1960), Luchino Visconti mostrou uma família pobre do sul da Itália se mudando para o norte em busca de melhores oportunidades de trabalho. No final, quem parece se dar melhor é o filho que arruma emprego numa montadora de automóveis. As lutas políticas na Itália dessa época também eram intensas. A Guerra Fria estava em seu ápice e havia uma polarização entre capitalismo e comunismo que não deixava muita margem para a reflexão.

Mas estamos aqui para falar de outro trabalhador, Lulu Massa é um operário de alta produtividade, ele irrita seus companheiros porque seu desempenho é utilizado pela empresa como padrão que deve ser seguido por todos. Num dos primeiros diálogos do filme, com sua esposa, Massa diz que está em seu cérebro e o descreve como uma máquina de precisão. Compreende-se então seu olhar confuso quando visita seu amigo Militina, paciente do manicômio, que lhe fala dos perigos que rondam o cérebro na sociedade atual. (abaixo, um Lulu sem libido sexual se entrega a programação da tv)




Certo dia, Massa perde a concentração e um dedo. A partir daí, começa a perceber o grau de alienação de sua condição. De funcionário modelo, passa a ativista sindical. No final, com a vitória do sindicato numa greve, Massa volta ao trabalho na fábrica – o mesmo lugar responsável por sua alienação; talvez aqui vá uma crítica de Petri à forma como os sindicatos italianos estavam lidando com as condições de trabalho nas fábricas (1). Talvez a definitiva reviravolta no personagem de Lulu Massa seja seu discurso na fábrica.

Diante de uma reunião de operários para um indicativo de greve, ele desabafa que seria melhor que eles pudessem trazer suas esposas para a linha de montagem. Assim, elas poderiam cozinhar e despejar a comida na boca dos operários e assim a linha de montagem não sofreria atrasos. Retrato de uma época, hoje em dia o problema dos operários seria automatização da linha de montagem, que elimina completamente a necessidade de sua existência. (abaixo, Lulu procura resistir aos apelos do mundo externo, seu mundo interior começou a ser demolido com a perda do dedo)




Lulu Massa é o protagonista de A Classe Operária Vai ao Paraíso (La Classe Operaia va in Paradiso, 1971), onde o cineasta Elio Petri desce aos porões da psicologia das massas – muito convenientemente, Massa é o sobrenome do próprio protagonista. O que poderia fazer um operário exemplar (Lulu Massa), que só tem olhos para o trabalho, mudar completamente de opinião a respeito de sua condição? Petri mostra como esse operário só era eficaz na medida direta de seu grau de alienação em relação ao contexto no qual vivia.

Acompanhamos o padrão de trabalho de Massa, ele move as peças de metal como se fosse um impulso sexual estereotipado e frustrado – “e penso na bunda da Adalgisa. Uma peça, uma bunda, uma peça, uma bunda”. Quando Massa é examinado pelo psicólogo da fábrica, observa Peter Bondanella, o doutor procura reduzir as neuroses do operário a uma disfunção sexual, que a companhia vai tratar. A fábrica está interessada apenas em manter a produção. Evidentemente que as raízes verdadeiras da doença de Massa no próprio sistema da fábrica devem ser mantidas intactas. Petri mostra claramente, não é preciso muito para se concluir que a fonte da neurose daquele trabalhador são as condições brutais da sistematização do trabalho pela própria fábrica.

Cada Um No Seu Paraíso  


Cada povo tem o governo que merece

Ditado popular


A situação da Itália entre 1968 e 1970 era caótica, a agitação estudantil campeava. Violência policial e o terrorismo das Brigadas Vermelhas e outros grupos explodiam bombas aqui e ali. Seqüestro e morte do Primeiro Ministro Aldo Moro em 1978. O Milagre Econômico italiano da década de 60 do século 20 repentinamente freia no começo dos anos 70: inflação, baixa produtividade, competição externa e o embargo de petróleo pelos países árabes em 1973.

O enfraquecimento da confiança da população no governo, na burocracia em geral, nos militares, nos partidos políticos e nos sindicatos, em conseqüência de sucessivos escândalos que alcançavam os mais altos escalões da classe governante italiana – é curioso como poderíamos estar nos referindo a certos países latino-americanos. O cinema italiano também estava em crise, pois o padrão do entretenimento popular estava sendo invadido pela televisão – além disso, o número de cinema diminuía a cada dia (2). Elio Petri (1929-1982) foi um dos expoentes do chamado cinema político italiano. Um cinema que procurou capturar as contradições da sociedade italiana, especialmente após 1968. Esse foi o contexto italiano onde nasceu A Classe Operária Vai ao Paraíso.

Desde o começo do filme, percebemos como Massa olha fixamente os objetos de sua casa. Os muitos relógios despertadores que ele se pergunta para quê, eletrodomésticos, vasos e flores de plástico. Às vezes faz as contas para definir “quanto significam” aquelas coisas. Massa abre uma porta e encontra mais objetos. “Museu”, ele diz, e logo a seguir um cartaz na parede mostra Stalin, o ditador soviético - talvez uma referência autobiográfica de Elio Petri, comunista convicto que abandonou o Partido quando a União Soviética invadiu a Hungria em 1956 (3).

Digno de nota é o momento em que Massa se enfurece ao pisar num boneco inflável do Tio Patinhas carregando um saco escrito “dinheiro”. Pega o boneco pelo pescoço e tenta enforcá-lo, em seguida encosta o cigarro acesso no olho do Tio Patinhas e fura a coisa. Em seguida esmurra a cabeça do boneco até afundar – note que na cabeça o Tio Patinhas estava com sua cartola preta com um cifrão de dólar desenhado em fundo vermelho. O fundo vermelho pode ser casual, mas pode também ser uma alusão ao relacionamento espúrio dos sindicatos italianos com o poder. Enquanto esmurrava o Tio Patinhas, um Massa desnorteado perguntava ao boneco se o objetivo dele controlar sua vida.




Na cena final, envolvidos pelo ambiente ensurdecedor da linha de montagem, Massa está com os companheiros e conta uma estória. Fala de um sonho que teve, ele tinha morrido e era incentivado por Militina (seu amigo do manicômio) a botar abaixo os muros que separavam todos eles do Paraíso. Derrubado o muro, havia um nevoeiro e depois foram aparecendo os trabalhadores. De acordo com Peter Bondanella, Elio Petri só acreditava na possibilidade da classe operária alcançar o Paraíso caso conseguisse destruir o muro (o capitalismo industrial) que os separa do seu sonho de um trabalho não-alienado.


1. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. Pp. 336-7.
2. Idem, pp. 318-9.
3. PRUDENZI, Angela; RESEGOTTI, Elisa. Cinema Político Italiano. Anos 60 e 70. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. P. 100.


11 de nov. de 2009

Roberto Rossellini, Cidadão Italiano




(...) Ele parecia
ser ao mesmo tempo
um gênio inspirado
e um ingênuo
(...)”

Opinião de David Forgacs
a respeito de Rossellini (1)




Nenhum cineasta é uma unanimidade o tempo todo. Isto é particularmente verdade no caso de Roberto Rossellini, cuja obra sempre foi, na opinião de David Forgacs, mais reverenciada pelos cineastas do que pelos críticos de cinema. Digo, a obra completa. Os últimos 15 anos de sua carreira, ocupados com produções documentais históricas para a televisão italiana são geralmente vistas com desinteresse pela crítica – quando pelo menos conhecem esse trabalho. Obsedados pelas imagens de Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta, 1945) e Paisà (1946), alguns críticos parecem esquecer o elemento documentário que está por trás delas. (imagem acima, De Gasperi chamando para um governo de união nacional, onde os Partidos deveriam por de lado suas diferenças em nome da reconstrução física e institucional da Itália depois de Mussolini)

Em Anno Unno, o Nascimento da Democracia Italiana (Anno Unno, 1974), por exemplo, Rossellini reconstitui a vida do político Democrata-Cristão Alcide De Gasperi. Rossellini sempre esteve preocupado com o destino da Itália no novo contexto europeu do pós-guerra. De Gasperi, em sua opinião, foi de grande valia para a unidade do Partido e do país. Alan Milen ressalta a preocupação do cineasta com a unidade potencial da experiência humana e a busca por uma força harmônica nos assuntos humanos. Preocupação que seria aparente tanto em seu filme sobre São Francisco de Assis (2) e Anno Uno, realizados numa distância de quase 25 anos um do outro.

Quando, na cena final, São Francisco diz aos monges que o rodeiam que preguem a paz pelo mundo, trata-se de um sentimento devoto ou uma opinião de compromisso político e social? Rossellini questionava a Europa do pós-guerra. Fazia parte de um grupo de democrata-cristãos visionários que pensava numa Europa unida e fortalecida para fazer frente aos Estados Unidos de igual para igual. Alcide De Gasperi, Primeiro Ministro italiano entre 1945 e 1953, foi o elemento chave deste grupo.

De acordo com Geoffrey Nowell-Smith, Rossellini nunca foi alinhado com a Direita. Ele nunca foi um nacionalista de direita, nem em Viva l’Italia (1960), seu épico para o centenário da unificação da Itália, ou nem mesmo em seus filmes de guerra realizados sob o patrocínio de Mussolini. A partir de Paisà até O Medo (La Paura, 1954), a atenção de Rossellini estava voltada para a Europa do Plano Marshall (3). Essa preocupação, assim como sua “espiritualidade”, marcou instantaneamente um distanciamento de seu trabalho em relação ao cerne do movimento neo-realista. Este fora balizado por horizontes políticos da Esquerda neutra Comunista, cuja política cultural tomou a forma de uma aspiração para ser “nacional-popular” (nos termos de Gramsci), casada com certa timidez em relação aos modelos artísticos e políticos estrangeiros, particularmente o norte-americano (4).

O ponto de vista de Rossellini era o de De Gasperi, salvo por uma dimensão cultural e pessoal do cineasta. Um senso de comunicação e compreensão que deveria ser construído para que os componentes desse “novo mundo ocidental” (do pós-guerra) pudessem conviver com respeito mútuo. Rossellini sabia que algo deveria ser feito para evitar o pior, as conseqüências do crescente antagonismo entre os blocos Comunista e Capitalista, no contexto da Guerra Fria (levando também em consideração o alinhamento automático da Itália ao último em função de sua adesão à OTAN) (5), poderiam arrastar a Europa novamente ao caos.

Em 1974, justificando sua escolha por retratar a vida de um político italiano, Rossellini afirmou que a Itália vivia num marasmo. Conseqüência de uma confusão que se espalhava por todo o mundo desenvolvido. Conflitos de extrema intensidade estavam na ordem do dia. Psicólogos, sociólogos e historiadores poderiam, acreditava o cineasta, explicar esses fenômenos. Rossellini se perguntava quais são os remédios para essa confusão e seu cortejo de ansiedade? Lamenta que “uma mão de ferro” seja a solução que muitos acabam por desejar e apoiar. (imagem abaixo, nas primeiras eleições do pós-guerra, uma propaganda do Partido Democrata-Cristão fazia piada com o símbolo da Frente Popular, coalisão entre o Partido Socialista italiano e o Partido Comunista: invertida, a cabeça de Garibaldi, herói da unificação do país no século 19, se transformava na cabeça de Stalin, líder comunista da então União Soviética)

“Creia, realizei
Anno Uno
sem me
vender
, sem aceitar compromisso, sem
servir a ninguém
.
O tempo dirá se
me enganei”


Roberto Rossellini (6)


Notas:

1. FORGACS, David. Introduction: Rossellini and the Critics In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (orgs.). Roberto Rossellini, Magician of the Real. London: British Film Institute, 2000. P. 1. O grifo é meu.
2. Inédito no Brasil, Francesco giullare di Dio ainda não possui um título em português.
3. O Programa de Recuperação Européia estabeleceu as bases para o investimento norte-americano nos planos de reconstrução da Europa. Mais especificamente, da reconstrução dos países que haviam se colocado como aliados dos Estados Unidos durante a guerra – com a exceção da própria Alemanha, que receberia investimentos apenas em sua parte ocidental, incluído Berlim ocidental. Todos os demais países da Europa que haviam sido arrasados pela guerra, como Polônia, Hungria e a própria Alemanha (em sua parte oriental), são deixadas à esfera de influência Comunista.
4. NOWELL-SMITH, Geoffrey. North and South, East and West: Rossellini and Politics. In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (orgs.). Roberto Rossellini, Magician of the Real. London: British Film Institute, 2000. P. 15.
5. Organização do Tratado do Atlântico Norte. Aliança militar entre os países da Europa ocidental e os Estado Unidos, criada em 1949. Sua função estratégica durante a Guerra fria foi criar um cordão defensivo contra os países do bloco comunista, que criaram, em contrapartida, o Pacto de Varsóvia, em 1955. Além da ameaça soviética, um dos pontos chave era o comércio de armamentos que girava em torno da OTAN, abastecido principalmente para indústria norte-americana.
6. Rossellini e Anno Uno, resposta de Rossellini a Callisto Cosulich no jornal Paese Sera, 27/11/1974 In APRÀ, Adriano (org.). La Télévision Comme Utopie. Roberto Rossellini. Paris: Cahiers du Cinéma, 2001. Pp. 184-5. 


4 de nov. de 2009

Breve Incursão na Guerra dos Sexos


“O que me toca
[em Fellini] é seu
olhar infantil
, é um
homem completamente
imaturo
. Sobretudo
quando filma as
mulheres”


Claude Lelouch, cineasta francês (1)



Fellini e suas Fêmeas

Na filmografia de Federico Fellini, muitos são os exemplos dos descaminhos no contato afetivo heterossexual. Quem não se lembra de Gradisca, em Amarcord (1973), ela não resistia a uma farda fascista, deixando os “homens comuns” e adolescentes da cidade sem nenhuma esperança. Havia também as prostitutas, é claro, que atravessaram a praça numa charrete para mostrar a mercadoria. Aliás, o próprio Mussolini investia nesse fetiche feminino. Era comum que durante seus discursos públicos homens aproveitassem para conquistar mulheres, já que elas ficavam excitadas com a presença do ditador. Não podemos esquecer Volpina, a ninfomaníaca, que é mostrada quase como um animal devasso que fica vagando pelas ruas da cidade. (na imagem acima, Gelsomina em A Estrada da Vida; abaixo, Anita Ekberg e Marcello Mastroianni, em A Doce Vida)


Em Cidade das Mulheres (La Città Delle Donne, 1980), Fellini foi direto ao ponto. Um Marcello Mastroianni hesitante bem no meio de uma convenção feminista. Com palavras de ordem, algumas queriam se libertar das palavras de ordem do machismo masculino. Entretanto, uma mulher apresenta seus vários maridos dóceis. Uma adaptação do machismo ao contrário, sugerindo que talvez nada mude se as mulheres se libertarem. No final, Mastroianni vai a julgamento. Muito antes disso, em A Estrada da Vida (La Strada, 1954), Fellini nos apresenta Gelsomina. Uma espécie de Chaplin de saias, ela sofre nas mãos de um homem grosseiro, para quem foi vendida por sua mãe.



Em Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957), Fellini nos leva para conhecer a vida dessa prostituta. Uma espécie de “prostituta do bem”, ela sempre confia nos homens que ama, os quais invariavelmente roubam seu dinheiro e tentam matá-la. Mas o arquétipo da mulher felliniana é Anita Ekberg. Em A Doce Vida (La Doce Vita, 1960), sua beleza física e seios fartos são superados apenas por sua inconstância. Nunca chegamos a perceber muito bem o que ela está pensando enquanto oscila entre um marido bêbado e um Marcello Mastroianni abobado rastejando por ela.

Alguns Outros Objetos

Além de Fellini, outros cineastas italianos também se debruçaram sobre o tema dos relacionamentos afetivos, suas utopias e realidades. A cinematografia italiana, do imediato pós-guerra até a década de 80 do século passado, nos dá muitos exemplos antológicos de como os relacionamentos afetivos nascem-crescem-desabrocham e explodem-murcham-morrem. As incursões de Luchino Visconti ao tema do relacionamento/descobrimento homem-mulher são igualmente contundentes e esclarecedoras. (imagem ao lado, Noites Brancas; abaixo, O Trabalho)

Em Noites Brancas (Le Notti Bianche, 1957), adaptação do texto de Dostoyevski o personagem de Marcello Mastroianni não consegue (ou não quer) compreender porque a mulher de quem se enamorou não se cansa de esperar por um homem que parece que nunca voltará. O personagem de Mastroianni, já cansado do que considerava inconstâncias daquela mulher (mas sem nenhuma capacidade de simplesmente se desligar daquele impasse com ela), disparou no meio da rua: “quando não são vadias, são loucas, completamente loucas!”. Uma mulher que espera alguém por um ano inteiro, resistindo a todas as tentações, na crença inabalável da volta de seu amado – crença que uma pessoa comum consideraria no mínimo uma obsessão. Burrice? Bem, no final, o tal homem volta mesmo. Ficção?


Em O Trabalho (Il Lavoro, episódio de Boccaccio 70, 1962), Visconti nos mostra uma esposa se vingando do marido infiel: ela perdeu o acesso à fortuna da família em função do escândalo do marido com prostitutas, e agora terá que trabalhar. Como? Vai cobrar do marido na hora do sexo. Ao telefone com o advogado, ela diz: “Não creia que, casando, eu me iludiria de que pudesse demolir as barreiras da incomunicabilidade. Sabia que iria ficar terrivelmente só.”(...)”Uma certa atração física não basta para justificar o matrimônio. Vem e vai embora ”.



Em Rocco e Seus Irmãos (Rocco e i Suoi Fratelli, 1960), onde Visconti nos mostra a saga de uma família italiana imigrando do sul pobre da Itália para o norte desenvolvido em busca de emprego, tem um monte de homens e uma prostituta (imagem ao lado). Como Cabíria, Nádia tenta acreditar no amor. Entretanto, talvez porque Nádia é um personagem mais próximo da realidade (ela tenta manipular um dos irmãos), ela morre no final. Neste filme, como em Amarcord, existe também uma mãe italiana. Entre a mãe melodramática e a prostituta espertalhona, as mulheres sempre saem perdendo. A primeira vê a família se despedaçar. A segunda, objeto sexual que só conheceu o lado podre dos homens, sai da lama, com tanto que morra no final.


Citando as barreiras da incomunicabilidade, Visconti certamente faz referência a Michelangelo Antonioni, especificamente aos filmes que compõem aquela que passou a ser conhecida como a Trilogia da Incomunicabilidade: A Aventura (L’avventura, 1960), A Noite (La Notte, 1961), O Eclipse (L’eclisse, 1962).


Embora o próprio cineasta tenha afirmado que nunca pensou nem em trilogia e muito menos no termo “incomunicabilidade”, Antonioni reflete sobre o que considera uma característica do homem e da mulher modernos: a incapacidade de amar. Cada uma com seu estilo, as três mulheres protagonistas são confusas e hesitantes – assim como os homens, mesmo quando parecem saber o que querem. Um retrato da burguesia italiana na década de 60 do século passado, a qual pertencia o próprio Antonioni. (imagem ao lado, O Eclipse)



Conhecido como o “poeta da melancolia”, Valério Zurlini é mais um dos cineastas italianos que mergulha fundo no tema da tentativa, quase sempre frustrante, de lidar com as descobertas que fazemos sobre quem são os parceiros e parceiras que escolhemos. Sem esquecer que, na maioria das vezes, nossa frustração está em descobrir que só enxergamos aquilo que projetamos de nós mesmos nos outros. Em Verão Violento (Estate Violenta, 1959) (imagem ao lado), Um jovem se enamora de uma mulher mais velha num clássico choque de gerações.


Em A Moça com a Valise (La Ragazza con La Valigia, 1961), temos novamente o choque entre o amor de um jovem ainda mais jovem e uma mulher mais velha, embora aparentemente mais nova do que a mulher do filme anterior. Claudia Cardinale, a moça, havia sido abandonada por um de seus conquistadores. Ao procurá-lo, ela encontra o irmão mais novo dele, que cai de amores por ela. Se no primeiro tempo foi ela a usada, no segundo ela não se faz de rogada em usar o indefeso garoto. No final, entretanto, ela se rende ao sentimento dele e o trata como um ser humano. (imagem abaixo, Volpina "caçando" em Amarcord)

Em Mulheres no Front (Le Soldatesse, 1965), Zurlini acompanha um grupo de prostitutas que é levado para “servir” as tropas de Mussolini no campo de batalha. Patética lembrança de um tempo em que o próprio “Estado” italiano administrava os bordéis (como a desculpa de fazer controle de doenças). Em A Primeira Noite de Tranqüilidade (La Prima Notte di Quiete, 1972), esse choque agora se estabelece entre um homem mais velho e uma jovem. Ele um homem desiludido, ela uma bela jovem, que ele pensa que é uma santa, depois descobre que é uma prostituta.


Em A Rifa (La Riffa, episódio de Boccaccio 70, 1962), é a vez de Sophia Loren emprestar seus grandes seios à tela gigante do cinema. Para salvar suas finanças, ela se vende numa rifa, ganha pelo sacristão virgem da cidade. Ao mesmo tempo, ela se enamora de um tipo meio galã. No final, ela não transa com o sacristão, mas permite que ele minta para a cidade. Os homens, que não suportaram ter perdido a chance de possuir aquele corpo, homenageiam o sacristão com uma carreata.



Em Matrimônio à Italiana (Matrimonio all’italiana, 1964), De Sica mostra o que alguns desdenhosamente chamariam de estereótipo da “prostituta honesta” – como Cabíria, ao contrário de Nádia. Tal preconceito talvez mascare uma postura machista visando à diminuição da importância do personagem masculino do filme. Marcello Mastroianni faz o papel de um homem que por décadas usa o corpo dessa mulher, mora com ela, mas não assume publicamente sua relação. Vive uma vida dupla. E quando descobre que esta mesma mulher pode ter tido um filho seu, quer levá-lo embora. Estereotipada ou não a personagem feminina, o papel de Mastroianni não parece muito distante da realidade do “homem latino”.

Leia também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
A Guerra dos Seios no Cinema Italiano
As Deusas de François Truffaut

Nota:

1. TASSONE, Aldo. Que Reste-t-il de la Nouvelle Vague? Paris: Éditions Stock, 2003. P. 179. 

11 de out. de 2009

Antonioni na Babilônia (final)


“Existem duas almas
em Zabriskie Point
,
o retrato da América
e a história privada
,
elas não chegam a se fundir num filme
harmoniosamente

Wim Wenders (1)

A Classe Média Em Nós

Alberto Moravia questionou Michelangelo Antonioni em relação ao papel daqueles estudantes em Zabriskie Point (1970). Afinal de contas, até então seus filmes só haviam mostrado os burgueses da classe média lutando contra seus problemas. Aqueles estudantes, Moravia lembra, procuravam colocar a si mesmos fora do sistema. Antonioni disse que se interessou realmente por eles, a ponto de incorporá-los ao filme. Na concepção de Antonioni, eles eram elementos típicos da situação dos Estados Unidos de então (2).


(...)[Em Zabriskie Point],
eu não mudei as cores, tentei explorar as cores que tinha”

Antonioni comentando sobre sua
tendência de mudar as cores das
árvores e das ruas em seus filmes (3)



Antonioni chega a insinuar que esses estudantes são a parte dos Estados Unidos que ele gostou, sendo que a classe média foi justamente de quem não gostou. Em seguida o cineasta faz uma comparação, em sua opinião a classe média norte-americana é louca, alienada e cheia de boas intenções, enquanto a classe média européia é corrupta, embora não seja louca. Aqueles jovens estudantes, Antonioni enfatizou, ao contrário da burguesia, demonstram uma absoluta indiferença em relação ao dinheiro. É o caso de perguntar quantos anos durou essa indiferença!

Sexo Grupal com Areia

A sexualidade foi outro aspecto daquela juventude norte-americana que parece ter tido grande impacto em Antonioni. Na famosa cena da orgia no deserto, Mark e Daria transam na areia. Aos poucos, outros casais surgem, multiplicando aquele sexo num delírio que Aldo Tassone sugere teria sido fruto da imaginação de Daria – que ofereceu maconha para Mark, que recusou. Triunfo hippie do sexo livre e da quebra das convenções. Tudo isso em Zabriskie Point, numa parte isolada do deserto da Califórnia chamado Vale da Morte.

Citando Jean-Luis Bory, Tassone fala do deserto e do sexo: “Esse deserto da morte, onde reinam a esterilidade e a pureza – o grau zero da sociedade de consumo – torna-se um paraíso de poeira luminosa para Adão e Eva 1970 que, reinventando o casal, fazem renascer a vida. A poeira não é mais fim, mas começo” (4). Mas o Éden, como bem lembrou Tassone em seguida, não passa de uma miragem, um delírio onírico. Antonioni gostava dos desertos e disse que “freqüentou” alguns dos encontros de amor (Love-ins) dos hippies. Pensou em inserir um desses encontros no filme, mas desistiu. No Ano Novo de 1968-9 ele antecipou algumas considerações sobre a polêmica em torno do sexo em Zabriskie Point, que ainda não havia sido lançado:

“Foi só uma idéia, mas eu nunca vi essa idéia como algo real. Eu não tinha a imagem, eu não achava a chave para fazer isso. Eu vi muitos encontros de amor [Love-ins] na América – com grupos brincando e gente fumando ou dançando ou não fazendo nada, apenas no chão. Mas eu estava procurando por algo diferente – algo que fosse mais relacionado com o caráter especial de Zabriskie Point [o lugar no deserto], eu não encontrei essa relação. Vou colocar isso no filme de qualquer jeito, mas de uma forma diferente – apenas algumas pessoas e um fundo quase vazio” (5)

Peter Brunette, que não gostou de Zabriskie Point, não conseguiu esconder que considerou muito bem composta a cena da orgia dos hippies no deserto. Depois de elogiar, preferiu denegrir a imagem de Antonioni dizendo que a cena foi uma coisa embaraçosa vinda de um cineasta já com seus 57 anos liberando sua sexualidade. Curiosamente, Brunette não faz o mesmo tipo de comentário em relação às cenas ousadas em Blow Up. Depois Daquele Beijo (Blow Up, 1966), apenas alguns anos antes de Zabriskie Point – não podemos esquecer que Brunette é norte-americano, talvez não queira correr o risco de pensar... diferente... dos seus pares/patrões. A respeito da cena, Antonioni disse em 1969:

“A América me modificou. Agora eu sou uma pessoa muito menos isolada; mais aberto, preparado para dizer mais. Eu até mudei minha visão do amor sexual. Em meus outros filmes, eu olhava par o sexo como uma doença do amor. Eu aprendi aqui [nos Estados Unidos] que o sexo é apenas uma parte do amor; estar aberto e receptivo um ao outro, como os garotos e garotas de hoje estão, é a parte importante” (6)

Eu Quero que (Quase) Tudo se Exploda

(...) Uma das raras
vezes que estive feliz foi
durante a explosão final em
Z
abriskie Point. Estava muito tenso,
mas feliz. A audácia da cena era
tão interessante! Espero que
essa confissão não seja mal
interpretada”


Michelangelo Antonioni (7)

Como bem lembrou Tassone, o começo da seqüência final evoca a seqüência final de O Eclipse (L’eclisse, 1962). Logo depois que Daria deixa a casa e o mundo do patrão, Antonioni mostra partes vazias da mansão. O terraço deserto, uma revista tem suas páginas viradas pelo vento, um cigarro aceso no cinzeiro. Quando já estamos nos acostumando com aquele passeio do olhar, a ponto de esquecermos que momentos antes Daria teve um brevíssimo lampejo da explosão, somos assaltados por uma série de repetições da mesma explosão.

Há quem tenha visto uma provocação na repetição da destruição da mansão do representante da burguesia norte-americana. Antonioni utilizou 17 câmeras e filmou a cena de vários ângulos e distâncias. Dali a pouco, o quadro muda para uma visão alucinatória da explosão. Acompanhamos o vôo em câmera lenta de vários objetos típicos da sociedade de consumo, incluindo frangos crus e livros, passando por geladeiras, televisores e mesas, pacotes de pão e cereal. Quando já estamos nos acostumando com tudo aquilo, de repente voltamos a Daria, com um leve sorriso nos lábios olhando para a mansão intacta.


“Para alguns,
o cineasta só se
apaixonou de verdade
pelas seqüências
do deserto”


Aldo Tassone (8)


Daria entra no carro e vai embora, e o filme acaba num grande sol. Seria o entardecer do estilo de vida norte-americano? Seria o anúncio do crepúsculo da sociedade norte-americana sugerido por Alberto Moravia quando chamou os Estados Unidos de “soberba Babilônia dos tempos modernos”? (9) Bem, seja como for, ninguém pareceu se incomodar em colocar um carro entre os objetos da explosão alucinatória em câmera lenta. Será que o automóvel, um dos símbolos do estilo de vida norte-americano, não entra nessa conta? Seria hippie demais da conta não possuir um carro, mesmo para Moravia ou Antonioni?



Salvos pelo gongo!
A crítica à sociedade
de consumo não inclui
largar o carro!




“Uma conclusão tão abertamente alegórica encorajou interpretações apocalípticas de um filme que se queria sobre tudo uma história de amor. Adaptação moderna do mito de Ícaro, que escapou do labirinto da sociedade de consumo (Jean-Luis Bory), metáfora do amor impossível (Fernaldo Di Giammatteo), Zabriskie Point foi interpretado, sobretudo, como um apelo a revolução. Partir de novo do zero depois de um apocalipse de proporções bíblicas, uma condenação da sociedade de consumo. Moravia viu nesse filme ‘uma profecia do desastre atômico que punirá a sociedade de consumo pó haver permitido que Tanatos triunfasse sobre Eros. Que o fim, a saberá o homem, se torna-se o meio, e o meio, a saber, o lucro, se torna-se o fim’: ‘O filme apresentou a hipótese nova e perturbadora segundo a qual um fogo ‘moralista’ poderia destruir a orgulhosa Babilônia moderna, os Estados Unidos’. Todavia, Antonioni não é um moralista, e seu filme não é um panfleto sobre ou contra a América; mas a tela de fundo da estória – a sociedade Americana – é tão forte e tão determinante que termina por tomar o lugar do herói (...)” (10)

A primeira coisa que salta aos olhos de alguém que conhece os filmes de Antonioni é a presença constante de uma trilha sonora musical. Um excesso absoluto de melodias típicas daquela época e lugar, levando-se em consideração que Antonioni renegava completamente o uso de trilhas sonoras para fazer clima... Talvez isso tenha relação com as mudanças de humor que o cineasta disse que experimentou em sua visita aos Estados Unidos. Pelo menos a parte da trilha sonora fruto do grupo inglês Pink Floyd encaixa bem na alucinação da seqüência da explosão. (a banda comeu e bebeu em Roma as custas de Antonioni e no fim parte do trabalho não era mais que regravação de material já existente)

Ou talvez a música seja invenção dos produtores – que interferiram no projeto de Antonioni (11), o que deveria ser levado em consideração quando se questiona o trabalho do cineasta neste filme. Em toda a literatura crítica que pude consultar, com exceção do comentário de Peter Bondanella, nada se diz a respeito desta interferência ou sobre sua extensão. É de Bondanella também a sugestão de que os objetos que vemos explodindo e flutuando na alucinação final de Daria deveriam ser tomados apenas como objetos estéticos, não deveriam ser interpretados em função de sua ligação com o sistema econômico que ela despreza. Enfim, para acabar com todas as dúvidas, eis que o Antonioni disse a respeito da cena final:


“(...) Agora, vamos tomar como exemplo a cena final, que provocou muitas reações contrastantes. Bem, nesta cena eu visualizei o desejo de uma mulher cujo [namorado] acabou de ser morto de forma anônima, e por nenhuma razão aparente. É sua reação mental que estou mostrando, e penso que é perfeitamente compreensível que ela poderia querer que a casa explodisse, fosse pelos ares” (...) “Talvez os americanos simplesmente não tenham vontade de aceitar uma visão crítica de seu país por alguém que não é americano. Talvez Zabriskie Point tenha tido esse efeito, mesmo se, pessoalmente, eu lamente que o filme tenha sido pelo menos parcialmente mal interpretado. Mesmo assim, quando voltei aos Estados Unidos [em 1986], notei que o filme novamente estava sendo exibido em vários cinemas. Quero dizer, parece um sinal encorajador, talvez o público americano esteja mudando sua opinião em relação ao meu filme (12)

Notas:

1. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. P. 291.
2. MORAVIA, Alberto. The American Desert. Entrevista de Antonioni em agosto de 1968 in ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 299.
3. KINDER, Marsha. Zabriskie Point, Sight & Sound, 1968-9 in ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 308.
4. TASSONE, Aldo. Op. Cit. 2007, p. 287.
5. KINDER, Marsha. Op. Cit., p. 306.
6. BRUNETTE, Peter. The Films of Antonioni. New York: Cambridge University Press, 1998. P. 23.
7. TASSONE, Aldo. The History of Cinema is Made on Film. Entrevista publicada em 1979 in ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p.216.
8. TASSONE, Aldo. OP. Cit., 2007, 291.
9. Idem, p. 51.
10. Ibidem, p. 290.
11. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 228.
12. RUBEO, Ugo. A Constant Renewal. Entrevista de Antonioni em 1987 in ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 322.


10 de out. de 2009

Antonioni na Babilônia (II)

“Se  tivesse  que
resumir    as    minhas
impressões    sobre    a
América,  listaria essas: 
desperdício, inocência, 
vastidão, pobreza”
 

Michelangelo Antonioni (1)

Evidentemente, a Mediocridade Venceu

“Meu estilo de trabalho é o exato oposto dessa enorme máquina burocrática: Hollywood. É claro, eu não estou falando apenas sobre métodos opostos, mas de uma maneira oposta de lidar com a própria vida, uma recusa em aceitar idéias embalsamadas e clichês, ou afetação e imitação. Além disso, como poderia trabalhar com as mãos atadas por um roteiro rígido quando a América, a locação de meu filme, estava continuamente mudando e se transformando, até mesmo fisicamente, e, portanto, exigindo continua mudança?” (2)

A partir desta declaração, Antonioni deixa claro que está totalmente em casa quando se fala de um método de trabalho que não é avesso à improvisação. Compreende-se, portanto, as dificuldades operacionais que deve ter enfrentado, para além do fato de que a abordagem que seu filme em relação aos Estados Unidos poderia ser tudo, menos banal e coisa de puxa saco. Supondo que fosse possível, um filme que deseja falar sobre o desperdício, a inocência, a vastidão e a pobreza de um país, deveria ser capaz de “preparar” esse público para ouvir/ver tudo que características tão contraditórias possam suscitar.


“Eu estou disposto
 a  morrer  também. 
Mas não de  tédio”

Mark questiona o discurso
supostamente revolucionário
de um grupo de estudantes que
está defendendo um confronto
armado com a polícia


Evidentemente, Antonioni teria que esperar por um milagre para que a população de uma potência mundial, em plena Guerra Fria e cercada de todo um aparato midiático de autopromoção do próprio estilo de vida, esteja disposta a admitir não saber o que está fazendo! Antonioni insistiu em afirmar (talvez em vão) que o público norte-americano não pareceu perceber uma crucial justaposição e interseção entre o real e o imaginário em Zabriskie Point (1970).

Contraditório e Interessante

“Fazer  um filme  na América
traz  consigo  um único risco:
o risco de tornar-se objeto de

uma discussão de alcance tão
grande  que  a  qualidade   do
filme  em  si  é  esquecida  (...)
 

Antonioni (3)

Antonioni queria ver os Estados Unidos não como um viajante, mas como um autor. Ele dizia que aquele país é contraditório e justamente por isso muito interessante. Não se pode dizer, afirmou Antonioni, que Zabriskie Point seja um filme revolucionário. Ou melhor, ao mostrar debates entre os estudantes norte-americanos em 1968, os protestos e confrontos com a polícia, não havia por trás o interesse de desestabilizar o “sistema”. De resto, concluímos que não se pode induzir alguém a fazer algo que essa pessoa já está fazendo! Antonioni esclarece:

“Se eu tivesse desejado fazer um filme sobre discórdia estudantil, teria continuado a direção que tomei na abertura [de Zabriskie Point,] com a seqüência do encontro estudantil. Se chegar o dia quando os jovens radicais norte-americanos concretizarem suas esperanças de mudar as estruturas da sociedade, eles virão desse tipo de pano de fundo e terão rostos como aqueles. Porém eu os deixei lá e segui meu protagonista num itinerário completamente diferente. O itinerário vai por um pedaço da América do Norte, mas quase sem tocá-lo, não apenas porque o jovem voa sobre ele, mas porque, desde o momento que rouba o avião, a América para ele coincide com ‘a terra’, da qual, precisamente, ‘ele precisa sair [do chão]’”(4)

“Por que os
americanos viram Zabriskie Point como
um  filme  contra  seu
país é um mistério
para mim
(...)(5)

Antonioni se ressente de que chegaram a dizer que devolveriam o desprezo que o cineasta demonstrou por eles. Antonioni não vê absolutamente desprezo algum destilado naquele filme. Confessou grande simpatia em relação aos jovens combativos que viu agindo nas ruas do país do Tio Sam. Sentiu uma aliança natural com eles e acreditava que sabiam mais do que os adultos que os estavam espancando. A visão adulta do mundo, Antonioni admitiu, só produziu monstros. Essas experiências, disse ainda, fizeram emergir certos símbolos no filme. Por que depois de cada filme que dirige, Antonioni pergunta, sempre querem saber o que os símbolos significam e não como tomaram forma ou a inspiração que os germinou? (6)


(...) Estou procurando (talvez
em cada filme [meu]) por traços
de    sentimento    no    homem   e,
é    claro,     na    mulher    também.
Em      um    mundo     onde    esses
traços    foram    enterrados    para
dar    lugar    a    sentimentos   de
conveniência e aparência
(...) (7)



Notas:

1. ANTONIONI, Michelangelo. What This Land Says to Me in ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press, 1996. P. 92.
2. Idem.
3. Ibidem, p. 95.
4. ANTONIONI, Michelangelo. Let’s Talk About Zabriskie Point in ANTONIONI, Michelangelo. Op. Cit., p. 95.
5. Idem, p 96.
6. Ibidem, p. 97.
7. Ibidem, p. 99. 


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