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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

26 de ago. de 2008

Novo Neo-Realismo: Duas Hipóteses




“Infelizmente
,
sabemos que é considerado
um investimento insatisfatório gastar dinheiro aprimorando a
qualidade do homem
(...)

Roberto Rossellini (1)




Reinventando a Roda

No começo dos anos 60 do século passado, Pier Paolo Pasolini, Ermanno Olmi, Francesco Rosi e Vittorio De Seta, pretendiam reinventar o Neo-Realismo cinematográfico italiano. O Neo-Realismo do pós-guerra esteve intimamente conectado ao processo de reconstrução nacional após a derrota do Fascismo. Sem esquecer dos atores não-profissionais, o novo Neo-Realismo deveria concentrar-se nas novas questões que confrontavam a nação, o que sugeria que a Itália do Milagre Econômico seria, ainda, um país “em construção”. Esse movimento de retomada implicava também que os paradoxos que levaram a primeira onda do Neo-Realismo à contradição deveriam ser revisitados. (na imagem, da esquerda para a direita, Vittorio De Sica, Roberto Rossellini e Federico Fellini)

Angelo Restivo mostrou as diferentes maneiras como, por exemplo, cineastas como Rosi e De Seta se debruçaram sobre a questão do banditismo numa Itália em pleno processo de modernização (2) - De Seta com Bandidos em Orgosolo (Banditi a Orgosolo, 1961), Rosi com O Bandido Giuliano (Salvatore Giuliano, 1962). Citando o historiador Eric Hobsbawm, Restivo lembra que uma série de mudanças nos países desenvolvidos removem as condições para a existência do banditismo: desenvolvimento econômico, modernizações das comunicações, invasão das burocracias nacionais no campo. No caso italiano podemos verificar como a figura do bandido vai aparecer para uma sociedade em pleno espasmo das dores das migrações sul-norte.

Em O Bandido Giuliano, o diretor Francesco Rosi estaria mais próximo de Pasolini do que Vittorio De Seta. Rosi seguia a forma do “filme inquérito”, introduzida por Cesare Zavattini no início dos anos 50 do século 20 com filmes como O Amor na Cidade (Amore in Città, 1953). Um filme formado por seis médias-metragens em torno de enredos que abordam temas amorosos acontecendo em Roma. Contribuíram, além do próprio Zavattini, Francesco Maselli, Carlo Lizzani, Michelangelo Antonioni, Federico Fellini, Alberto Lattuada e Dino Risi.

Lobisomem Realista


“Eu me senti mais
confortável [do que no
estúdio] fazendo filmes ao
ar livre. Nisso Rossellini
foi o pioneiro
(...)

Federico Fellini (3)



A proposta de Zavattini era que o Neo-Realismo deveria mover-se para uma direção mais explicitamente política, fazendo p erguntas a respeito das origens e natureza da “realidade” que estava filmando – sem esquecer de levar consigo os atores não-profissionais. A contribuição de Lattuada, Os Italianos se Viram (Gli Italiani si Voltano) (imagem ao lado), que encerra o filme, mostra como os homens italianos se comportam na rua em relação a mulheres belas. Praticamente sem diálogos, o média-metragem necessita apenas de uma trilha musical para passar sua mensagem.

Na cena do bonde, antes que um homem comece a encarar uma mulher, ainda podemos ver como todos os homens se aproveitam da quantidade de gente para tocar as mulheres. Então o bonde se esvazia e, com muitos bancos para escolher, um homem senta-se de frente para uma mulher e não para de olhar diretamente para ela. Ela está constrangida e, quando salta do bonde, ele a segue até que ela entre num préd io. Pelo menos no caso do “esfrega-esfrega” dentro do bonde, a semelhança com o Brasil é evidente. Não é sem motivo que as mulheres conseguiram que a companhia que serve os trens no Rio de Janeiro separa-se um vagão só para elas.

De todas as seis contribuições, esta talvez seja a que possui um caráter jornalístico mais convincente, pois dificilmente o machismo italiano-latino precisaria de um pedido do cineasta ou mesmo de pagamento para surpreender os homens olhando para os corpos das mulheres, como se elas fossem mercadoria. Pelo menos em dois momentos, podemos acompanhar homens importunando ostensivamente as mulheres. Em Os Italianos se Viram, podemos nitidamente ver o Brasil, o que demonstra a eficácia da proposta de Zavattini.

Em História de Caterina (Storia di Caterina), dirigido pelo próprio Zavattini, em companhia de Francesco Maselli, uma mulher vem da Sicília, no sul do país (imagem ao lado, lavando seu filho na praça, uma cena comum em certos países). Procura trabalho em Roma, é seduzida e abandonada grávida. A polícia a manda de volta para o sul, mas seus pais agora a rejeitam. Volta e não consegue trabalho. Sem opção, abandona o filho num terreno baldio. Ele é encontrado e vira notícia de jornal. Ela descobre e vai a seu encontro. É detida pela polícia e também vira notícia de jornal – que irá acompanhar seu caso até que ela seja julgada inocente e libertada.

No caso do abandono de crianças, a semelhança com casos que vem ocorrendo cada vez mais no Brasil é evidente. Além disso, a quest ão “seduzida e abandonada”, seguida do desprezo dos pais por Caterina mostra como as distâncias entre o norte e o sul da Itália talvez fossem maiores do que se imagina. Entretanto, não pelo motivo que se imagina, mas porque havia (ainda há?) na Itália essa tendência de referir-se a seu atraso cultural e moral utilizando como exemplo sempre o sul atrasado do país, a ponto de seu referir a ele como “um outro país”. Ou seja, se pudéssemos colocar palavras na boca dos italianos, a frase seria mais ou menos essa: “isso acontece aqui, mas nós não somos assim”. (imagem abaixo, Cesare Zavattini)




"Eu nunca serei contra um filme que,

mesmo se servindo de personagens 'falsas', seja
o produto de interesses sociais, morais, vivos e atuais.
Mas acredito que na trajetória do raciocínio neo-realista,
assim como tinha começado de forma unânime tão logo
acabou a guerra, deveria forçosamente chegar o momento
da personagem real, a qual tem uma responsabilidade,
em relação ao público, infinitamente mais decisiva
do que qualquer outro tipo de personagem"

Cesare Zavattini (4)



Em 1954, portanto um ano após o lançamento do filme, Antonioni demonstrou certo ceticismo em relação aos homens e mulheres que entrevistou para realizar seu média-metragem. Poderíamos mesmo dizer que seus atores não-profissionais-suicidas estariam influenciados pelo “paradoxo etnológico” que Angelo Restivo invocará em relação ao filme de Vittorio De Seta. De qualquer forma, Antonioni parece convencido de seu ponto de vista, aparentemente não levando em consideração a situação comercial que perpassa sua relação com os entrevistados. Contudo, pelas conclusões de Antonioni a respeito do ato suicida, também poderíamos dizer que seu filme cumpre em alguma medida o objetivo original de Zavattini com relação origem e natureza da realidade que se está a filmar.

Tentativa de Suicídio (Tentato Suicidio), um tema difícil onde Antonioni tentou provocar no público espectador uma aversão ao ato a partir do abandono espiritual dos personagens (imagem ao lado). “Eu fui direto à substância do tema”, afirmou o cineasta respondendo a críticas de elitismo em sua abordagem (5). Levados ao ato em função de desilusões amorosas, os entrevistados desejavam fazê-lo acreditar que realmente queriam morrer. Que tentaram várias vezes e que não conseguiram por falta de sorte – e que tentarão novamente caso as circunstâncias os coloquem na mesma posição.


Antonioni chegou a afirmar que, a parte dois casos realmente tocantes, a maioria dos entrevistados estava mais interessado em ganhar um pagamento pela participação e até flertavam entre si. Certos tipos de tentativas de suicídios, afirmou, não o fazem sofrer, acredita que são mais articulados a um complexo de exibicionismo. Antonioni acredita que eles estavam mentindo quanto à disposição de tentar novamente. Que falavam essas coisas por vaidade, orgulho ou masoquismo. Em tom mais otimista do que nos comentários de 1954, agora numa entrevista ao Cahiers du Cinema em 1960, Antonioni afirmou que pessoas que tentam cometer suicídio são grandes personagens. Além disso, ainda segundo o cineasta, sua parte em O Amor na Cidade está completa e perfeitamente inserida na corrente neo-realista (6).

Agência Matrimonial (Agenzia Matrimoniale) é o média-metragem de Fellini. Segundo o cineasta, Zavattini desejava algo no estilo jornalístico de certos filmes norte-americanos da época. Parecendo documentários, mas na realidade sendo pura ficção, em alguns momentos se utilizou a voz de um narrador - o que dava uma sensação de reportagem jornalística bastante semelhantes aos cine-jornais da época. Fellini cria uma estória que não poderia ser real de forma alguma, mas que deveria ser contada da maneira mais neo-realista possível. Agência Matrimonial nasce quando o cineasta se pergunta como seriam Drácula e Frankenstein se fossem filmados no estilo neo-realista.

Foi assim que surgiu a idéia bizarra de buscar numa agência matrimonial uma mulher que estivesse disposta a casar-se com um homem que sofresse de licantropia – um lobisomem. Não só o repórter consegue inscrever esse seu suposto amigo, como consegue também encontrar uma pretendente. Apenas o repórter era um ator profissional, e o desafio, afirmou Fellini, era fazer o inacreditável de uma maneira direta e sincera, como se fosse a coisa mais normal. Como disse Fellini, sem querer ele fez um pequeno filme de horror.

Suas intenções neo-realistas, conta, são estabelecidas na seqüência inicial. O repórter é levado por uma criança pelos corredores do edifício na direção da agência matrimonial, pelo caminho podemos ver as intimidades das vidas das famílias que lá vivem já que as portas dos apartamentos estão abertas. Escondendo sua identidade de repórter, o protagonista diz o que deseja (arrumar uma esposa para seu amigo que vira lobisomem). Quando o filme foi lançado, disse Fellini, os críticos o aceitaram como um exemplo de Neo-Realismo (7).

Sobre Ovelhas e Homens


(...) Para além de todas
as palavras nacionalistas que
florescem quando
a Itália ganha uma
C
opa do Mundo, se tivermos de ser sinceros
em relação
a lugarejos pobres da Sardenha,
a verdade é
que o Estado italiano
não
enviou a Orgosolo nada
além dos policiais
(...)

Vittorio De Seta (8)



Bandidos em Orgosolo mostra a problemática do banditismo na isolada ilha de Sardenha (imagem ao lado). Em 1962, a Sardenha era uma das mais pobres regiões da Itália. Com uma economia agrário-feudal baseada no pastoreio, a ilha continuou intocada pelo Milagre Econômico que transformava o país a norte de Roma. De repente, seguindo o modelo espanhol de desenvolvimento baseado na no turismo, durante a década de 60 do século 20 houve um surto imobiliário nas áreas costeiras. Portanto, explica Restivo, a Sardenha era vista pelo norte ao mesmo tempo como um “problema” e como um local onde poderia jogar suas próprias ansiedades em relação à modernização (9).

O personagem principal do filme é um pastor de ovelhas. Certo dia ele percebe que ladrões roubaram os porcos de uma cabana. Quando a polícia chega, todos são emboscados pelos ladrões e o pastor é considerado como parte do bando. Ele tenta fugir, levando as ovelhas, as quais haviam comprado ao contrair um empréstimo que ainda não estava quitado. Entretanto, as ovelhas são levadas à exaustão e morrem, levando o pastor a pegar uma arma e tornar-se um ladrão para poder pagar sua dívida bancária. Na cena final, vemos o pastor roubando um rebanho de ovelhas enquanto o dono delas grita chamando-o de ladrão.

“Mais neo-realista do que o Neo-Realismo”, assim Restivo descreve o filme. Estruturado como Ladrões de Bicicleta (Ladri di Bicicleta, direção Vittorio De Sica, 1948) (imagem ao lado), o filme ilustra a saga alguém que não é ladrão mas acaba vítima das circunstâncias. Restivo acredita que o filme naturaliza o processo de tornar-se ladrão (como se qualquer um, colocado sob a pressão de certas circunstâncias, pudesse tornar-se um ladrão). Pode até fazer sentido, ele afirma, mas o que lhe interessa é a forma como os problemas sociais italianos são empurrados para longe – geograficamente falando.


Esta tendência a arrastar os problemas para terras distantes do próprio país, aponta Restivo, é a mesma que em sua opinião acompanha filmes como Seduzida e Abandonada (Sedotta e Abbandonata, direção Pietro Germi, 1964). Agora estamos em outra ilha, a Sicília. Lá sistemas de troca sexual feudais ainda eram (são?) operantes. Desta forma, as novas sexualidades vindas com a modernidade poderiam ser confrontadas com as velhas práticas (contanto que essas práticas fossem atribuídas a uma parte ignorante da população italiana, como se elas não ocorressem também nos grandes centros).

A estória gira em torno do fato de que um noivo sexualmente excitado engravida sua futura esposa. Em seguida, ele se recusa a casar com ela porque, na lógica machista da região, um homem só deverá desposar uma virgem (10). (imagem acima)

Outro filme que se passa na Sardenha e que enfatiza esse caráter atrasado da região é Pai Patrão (Padre Padrone, direção de Paolo e Vittorio Taviani, 1977). Baseado numa história real, Gavino Ledda é um menino obrigado pelo pai a abandonar seus estudos e assumir um rebanho de ovelhas. Imagine-se então a vida de uma criança analfabeta, vivendo isolada nas montanhas e tentando impedir que os ladrões roubem seu rebanho. Contra todas as expectativas, Gavino consegue estudar.


No inicio e no final do filme, marcando o elemento documental realista, é o próprio Gavino em pessoa que aparece. Uma locução em off explica no princípio do filme: “este é Gavino Ledda, 35 anos. Até os 18, pastor e analfabeto”. Enquanto ouvimos, vemos Gavino arrancando os galhos de uma pequena arvore, até que ela se transforme numa vara – típica dos pastores. A locução segue e ele olha na direção de uma porta, onde se situa a sala de aula que freqüentava quando menino. Vemos um homem diante dela, é o ator que representará seu pai. (ao lado e acima à direita, imagens de Pai Patrão)

Gavino caminha até ele e lhe dá a vara dizendo: “meu pai tinha isto também”. “Sim, obrigado”, responde o ator, ainda não vestido com a truculência do personagem do pai de Gavino (imagem acima, à esquerda). Então ele entra na sala de aula e se transforma no pai patrão.

Voltando à Sardenha de Bandidos em Orgosolo (imagem ao lado), Restivo se refere também a um fenômeno conhecido como “paradoxo etnográfico”. O problema acontece quando um projeto etnográfico acaba contaminando seu próprio objeto de estudo (no caso, a sociedade agrário-feudal Sarda), fazendo com que as pessoas estudadas não ajam mais de forma natural e autêntica, pelo simples fato de que existe entre eles um elemento estranho (o pesquisador e seus equipamentos). É assim que se pode duvidar da objetividade de quase todo documentário ou entrevista. No que diz respeito à relação do banditismo com a modernidade, é o próprio equipamento cinematográfico que está, no projeto do filme, representando o lado do “progresso”: o equipamento é parte do processo que destruirá o bandido. “De certa maneira, portanto, o filme não é suficientemente sofisticado para ‘lamentar’ o que será perdido depois de todos os ganhos do milagre econômico”. (11)



Polícia+Máfia



(...) Neo-Realismo é também uma resposta
à genuína necessidade de ver seres humanos
pelo que eles são, com humildade e sem recurso
a fabricação
do excepcional; isso significa uma
consciência de que ao excepcional se chega
através da investigação da realidade
(...)

Roberto Rossellini (12)





Na opinião de Angelo Restivo, o filme de Francesco Rosi seria um brilhante exemplo do “filme inquérito” de Cesare Zavattini, em sua tentativa de desmascarar forças sociais que se cruzam na figura do “bandido siciliano”. Como resultado, O Bandido Giuliano inverte todos os termos das tradicionais estórias de bandidos. Restivo acredita que neste filme a questão do paradoxo etnográfico é neutralizada pela forma como Rosi posiciona as câmeras, geralmente à distância e num plano superior aos personagens, permitindo que eles se movam sem a interferência do equipamento.

O filme é baseado na história real de Salvatore Giuliano, morto em 1950. Na época com 27 anos, era o criminoso mais procurado da Itália, assim como um herói cultuado. Quando o filme começa, já o vemos morto, com um policial descrevendo a cena do crime. Então o filme volta a 1943, na emergência do movimento de independência siciliano. Contra ele estavam os norte-americanos (que já haviam repartido o mundo com a então União Soviética), os outros Estados que formavam o país, e a máfia. O filme mostra também a incapacidade do exército em subjugar Giuliano, além do massacre de comunistas num comício em 1947.


Durante esses acontecimentos a figura de Salvatore Giuliano não aparece - apenas no começo, como cadáver. Desta forma Rosi retira da figura central da trama a lenda e a nostalgia inerentes ao bandido. Giuliano deixa então de ser o emblema de valores tradicionalistas e mais um tipo de campo de força invisível em torno do qual giram os antagonismos sociais do país.

Gradualmente percebemos que a máfia e a polícia estão juntas na tentativa de eliminar o movimento de independência e os comunistas - ao mesmo tempo em que usam os bandidos como peões nesse jogo. No final das contas, será uma aliança das forças de direita que vão arquitetar o assassinato de Salvatore Giuliano. Agora vemos os conspiradores colocando o corpo de Giuliano no local onde o encontramos na cena inicial. Na parte final, uma multidão irrompe na praça de uma cidade siciliana, ouvimos tiros e percebemos um corpo caindo – é o mafioso que serviu de elemento de ligação no assassinato de Giuliano.

Restivo afirma que o “filme inquérito” permitiu a Francesco Rosi levar o espectador a perceber que sobre ele recai um imperativo político: porque penetrar as misteriosas conspirações que o filme pode apenas parcialmente descobrir poderia por si mesmo tornar-se num ato político transformador. Restivo afirma também que esta foi a qualidade do filme que levou Umberto Eco a saldar O Bandido Giuliano como um exemplo de “obra aberta” (13): um trabalho que não nos empurra para uma única interpretação, como a maioria das obras criadas para puro entretenimento e retorno financeiro fácil, deixando abertas portas que só poderão ser exploradas pelo espectador a partir de suas vivências particulares.

“O filme de Rosi não apenas desconstrói a figura do bandido, mas também antecipa algo do trabalho mais recente sobre a nação enquanto uma construção discursiva. Porque o filme mostra claramente como a emergência triunfante da ‘Itália’ no período pós-guerra foi baseada em silenciar vozes. Dessa forma, o filme de Rosi é de longe o mais radical dos dois que apresentamos, ele claramente liga o milagre econômico à construção de certo tipo de Itália, projetada em parte pelo capital estrangeiro, a máfia, e o governo Democrata-Cristão em Roma”. (14)

Notas:

Leia Também:

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Neorrealismo Bem Temperado de A Terra Treme?
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

1. Comentário em carta de Rossellini a Peter H. Wood, datada de 1972 In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (orgs.). Roberto Rossellini, Magician of the Real. London: British Film Institute, 2000. P. 165.
2. RESTIVO, Angelo. The Cinema of Economic Miracles. Visuality and Modernization in the Italian Art Film. Durham & London: Duke University Press, 2002. P. 48.
3. Comentário de Fellini a respeito de Rossellini em 1980 In Roberto Rossellini, Magician of the Real. Op. Cit., 169.
4. FABRIS, Mariarosaria. O Neo-Realismo Cinematográfico Italiano. São Paulo: Edusp, 1996. P. 83. Modifiquei algumas palavras, com o objetivo de tornar o texto mais claro, por concluir que a tradução da autora não havia sido a mais correta.
5. ANTONIONI, Michelangelo. Architecture of Vision. Writings and Interviews on Cinema. USA: University of Chicago Press. Pp.71-3. Comentários em carta a Guido Aristarco, famoso crítico de cinema italiano da época.
6. Idem, p. 137.
7. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. Random House: New York, 1995. Pp. 101-3.
8. PRUDENZI, Angela; RESEGOTTI, Elisa. Cinema Político Italiano. Anos 60 e 70. São Paulo: Cosac Naify, 2006. P. 97.
9. RESTIVO, Angelo. Op. Cit., p. 49.
10. Idem, p. 47.
11. Ibidem, p. 50.
12. Comentário de Rossellini em entrevista a Mario Verdone datada de 1952 In Roberto Rossellini, Magician of the Real. Op. Cit., p. 150.
13. RESTIVO, Angelo. Op. Cit., pp. 51-2.
14. Idem, p. 52.

16 de ago. de 2008

A Doce Vida, o Espaço e o Tempo



A Cidade e o Cinema

Em 1960, o “milagre econômico italiano” estava em seu ponto máximo. Na opinião de Angelo Restivo, essa situação levanta algumas questões relacionadas ao uso e a percepção do espaço (1). Como o espaço urbano remodelado pelo neocapitalismo? Como esse espaço remodelado tornou-se um espaço cinemático? Quais são os novos parâmetros da nação italiana e o tema nacional no interior desse novo espaço? Segundo Restivo, A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960), filme dirigido por Federico Fellini pode nos dar algumas respostas. (imagem acima, Sylvia admira Roma a partir do topo da torre do Vaticano, em segundo plano, a Praça São Marcos e logo atrás a Praça Pio XII, que recebe uma avenida construída por Mussolini e muito convenientemente denominada Via della Conciliazione)

Restivo chama atenção para três cenas em particular. A primeira é a pouco comentada cena inicial, quando avistamos uma estátua de Cristo pendurada num helicóptero saindo detrás de um ponto de mata no que parece a periferia de Roma e atravessando a cidade até sobrevoar o Vaticano. A segunda cena é a mais famosa, trata-se daquele momento em que Sylvia (Anita Ekberg) descobre a Fontana de Trevi. A terceira está no final do filme, quando todos vão dar uma olhada no monstro marinho que encalhou na praia e Marcello percebe ao longe uma menina que já havia encontrado antes.

Estátuas Voadoras

Na primeira cena, em primeiro plano vemos o aqueduto Felice (2). Ao longe, dois helicópteros se aproximam, um deles carrega algo suspenso logo abaixo. Voando em paralelo ao aqueduto, agora podemos ver uma estátua brilhante de braços abertos.

Ela vai voando sobre prédios em construção e recebe acenos de pedreiros. É como se estivesse mostrando a prosperidade italiana no boom imobiliário. Agora sobrevoam uma cobertura luxuosa, onde várias mulheres de biquíni percebem que é uma estátua de Cristo e acenam para ela - temos aqui um interessante contraponto entre o sagrado e o profano.

Mais uma panorâmica da cidade e agora podemos ver a estátua em close. Eles já estão chegando ao destino, o Vaticano. O helicóptero vem por trás, de forma que podemos ver a Praça São Marcos cheia de peregrinos, logo à frente do imponente prédio sede da Igreja Católica. Com esta imagem, fica a sugestão de um povo extremamente religioso. Informação irá contrastar profundamente tanto com os personagens da burguesia que iremos encontrar nas próximas cenas, como também com a espetacularização da própria religião na seqüência da visão da Nossa Senhora por duas crianças “do povo”.

Nesta primeira cena, Restivo chama atenção para o curto-circuito temporal. O desvelamento de um espaço arqueológico comumente percebido a partir de caminhadas por Roma sendo substituído pelo choque de um cruzamento inesperado (3). É por esta razão que os cortes abruptos de imagens tornaram-se uma estratégia básica pela qual o filme constrói o espaço cinemático: por exemplo, o corte abrupto dessa para a próxima cena, partindo direto para o close de um dançarino mascarado e uma sonoridade oriental na boate.


Ruas Estreit
as

Na segunda cena, Sylvia perambula pelo labirinto de ruas até que encontra a Fontana di Trevi. Ainda que a siga, às vezes a câmera de Fellini oscila num movimento independe, como se estivesse mais disposta a seguir a lógica do espaço do que da ação do casal que se desenrola a sua frente (4). Como na cena em que Sylvia chega à interseção de três ruas, mas a câmera chega antes dela e, ao invés de enquadrá-la parada enquanto a atriz se movimenta, numa velocidade levemente maior segue o mesmo caminho enquanto ela passa. (ao lado)

Num filme de suspense, o ponto de vista desta câmera indicaria que alguém a está olhando ou acompanhando. Mas neste caso, a câmera é este outro.


Angelo Restivo chama atenção nesse passeio de Sylvia como um movimento que leva a revelação. No caso, revela-se a Fontana di Trevi e ao falso batismo que Sylvia dá a Marcello quando, já caminhando dentro da fonte, ele pergunta a ela, “quem é você?”

Restivo aponta como a remodelação de uma cidade pode levar à destruição de espaços que traduziriam mais adequadamente certa dimensão humana. Ele lembra da remodelação que Mussolini promoveu em torno do Vaticano. Nas reformas urbanas do ditador, a idéia era criar certas associações históricas enquanto outras seriam reprimidas (5). Pretendia-se reorganizar algumas partes da Roma antiga, particularmente a área próxima ao Capitólio e ao Borgo, na direção da Praça de São Pedro.


Prédios antigos foram derrubados para dar lugar a duas largas avenidas, uma ligando Piazza Venezia ao Coliseu, a outra criando uma vista triunfal na direção da Praça de São Pedro. Em ambos os casos, do ponto de vista do olhar fascista, a função primária seria criar novas relações ideológicas entre os elementos da paisagem urbana. Conectou-se visualmente o monumento a Vittorio Emmanuele à unificação da Itália de um lado, ao Coliseu do outro, enquanto as ruínas do Capitólio ficaram entre eles.

Além disso, uma série de placas colocadas nas calçadas da Via dei Fori mostram mapas onde vemos a gradual expansão do Império Romano. Claramente, afirma Restivo, essa remodelação coloca a nação moderna como a culminação de uma história imperial que seria herdada pelo fascismo.

O ponto que Restivo chama atenção e que o levou a lembrar da cena de A Doce Vida em que Sylvia chega à Fontana di Trevi fica mais claro agora. Antes das mudanças urbanas feitas por Mussolini, o acesso ao Vaticano se fazia através de um labirinto de prédios e ruas estreitas. O Vaticano não era visível à distância, chegava-se a ele de repente, da mesma forma que Sylvia se vira e dá de cara com a Fontana depois de rodas por ruas estreitas. Nesse caso anterior a Mussolini, na base dessa lógica espacial encontrava-se um olhar essencialmente religioso de perambulação e redenção.

A nova avenida espetaculariza São Pedro, transformando em pública uma experiência privada (aquela do peregrino). Uma experiência agora orquestrada por aqueles que estão no poder ao invés de uma que fosse resultado pelo menos em parte de uma justaposição histórica aleatória. Angelo Restivo chama atenção para o fato de que o movimento através do espaço nunca é inocente, está sempre articulado a um discurso ideológico. E o cinema, Restivo nos lembra, é uma prática que se movimenta no espaço.

Espetacularização do Sagrado e Monstros Marinhos

Na terceira cena, no final do filme, estamos perdidos entre a aparição do monstro marinho e o rosto de Beatrice. As duas aparições se dão na praia, na borda do mundo, no fim do mundo humano. Uma fronteira entre aquilo que significa alguma coisa e aquilo que não significa mais nada. Espaço limítrofe entre as coisas que são e as coisas que parecem que são. Mas não conseguidos decidir qual das duas coisas nos servem na vida.

Antes do monstro e de Beatrice, Restivo lembra da cena do milagre da aparição da Nossa Senhora para duas crianças. Um padre questiona aquela “bagunça”, e podemos encontrar nesta seqüência alguns dos elementos que talvez sejam os responsáveis por tantas das críticas e perseguições que o filme de Fellini sofre por parte da Igreja. Uma parenta das crianças afirma que a Itália é um país rico em forças naturais e sobrenaturais, onde todos sofrem influências, “quem quer sempre encontra Deus, quer uma graça?”

Enquanto isso os paparazzi tratam de abordar os pais e fazê-los simular posições naturais para que possam ser fotografados. Noutro ponto da “bagunça”, o tio vai ser entrevistado por um locutor de rádio, que logo coloca nas mãos do parente um papel com aquilo devem ser suas respostas. Nitidamente, o tio é analfabeto e tem de ser guiado pelo repórter em sua resposta – o que apenas facilidade o trabalho da imprensa.

Restivo afirma que A Doce Vida é cheio de falsos signos. Se um signo é aquilo que está no lugar de outra coisa, então este filme frequentemente desarticula as coisas de qualquer referente - a seqüência em que vemos Cristo voando de helicóptero sobre a cidade seria um exemplo. Na cena da visão da Nossa Senhora, tudo ocorre como uma espécie de frenesi midiático, já não importa mais se alguém viu alguma coisa. Quando não temos essa relação entre signo e referente, tudo ocorre na superfície, sem profundidade.

Num sentido pós-moderno, os signos tornam-se auto-geradores, explicam ou remetem a si mesmos. É o triunfo dos simulacros. A aparição de Beatrice no final do filme funcionaria, defende Restivo, como uma tentativa (que não consegue alcançar o objetivo) de neutralizar esse “frenesi” representacional – procurando dar alguma profundidade às coisas e aos eventos ao tentar conectá-los a outras coisas e eventos (6).

Seguindo as afirmações de Frederic Jameson, David Harvey e Edward Soja, Angelo Restivo lembra que a transformação no espaço trazida pelo neocapitalismo é tal que as relações de exploração são tornadas invisíveis, a não ser para as “tecnologias da visão” – como o cinema.

Via Veneto brilha, tudo que aparece depois que Marcello ultrapassa as portas da cidade é chão de terra poeirenta, ou lamacenta, ou cheia de buracos.

Em A Doce Vida, a nova estrutura de classe que emerge do milagre econômico seria visível na dicotomia entre o centro e a periferia da cidade, embora a maneira como o filme seja construído não nos permita estabelecer uma relação entre os dois pontos – exatamente em função da forma pós-moderna de montagem utilizada por Fellini, onde as seqüências do filme são amarradas entre si sem que nenhuma conexão espacial ou temporal “necessária” exista entre elas. Um dos casos em que um sistema espacial “mais velho” é evocado está na cena em que Sylvia descobre a Fontana di Trevi.

Este colapso da profundidade (a vida na superfície das coisas) trazido pelo triunfo do simulacro (e a equivalência de todos os signos), se desdobra na aparição do monstro marinho. Numa das únicas falas de Jacques Lacan sobre o cinema, refere-se às seqüências finais de A Doce Vida, e aponta o monstro marinho como a Coisa (7). O filme incorpora uma “coisa” que expressa a perda radical da forma e a absoluta indiferença da vida em relação a nossas questões – no campo psicanalítico essa “coisa” é “a pulsão de morte”.

O Mundo Não é Inesgotável?

No discurso pós-moderno, continua Restivo, é exatamente a aparição da Coisa que obstrui a possibilidade de que o mundo seja “inesgotável” – inesgotabilidade do mundo que era crucial para o Neo-Realismo (8). Fellini contrapõe Beatrice à aparição do monstro como um “mecanismo de defesa”. Entretanto, nesta cena, temos também uma falha da voz. Neste ponto, a materialidade das leis físicas como que se rendem aos gritos da Coisa. Beatrice e Marcello se vêem, mas não conseguem ouvir um ao outro - não esqueçamos que nos instantes finais é para nós que ela olha.

Sugere Restivo que, embora seja crucial para o desfecho pensado por Fellini, essa falha é também explicável pelo fato físico de uma deformação do som produzida no espaço das praias. É como se o ar se transformasse numa esponja, misturando o som das ondas com o da voz e borrando as fronteiras entre o interno (a respiração, a voz) e o externo (a “respiração” do mar). Essa desarticulação entre a voz e o corpo irá alcançar seu ponto máximo no trabalho de outro cineasta italiano, Michelangelo Antonioni.


Talvez não seja por acaso que, no instante em que Beatrice olha para nós, Fellini a tenha posicionado um pouco para fora do centro da tela, pois do lado direito vemos um mundo turvo, fora de foco, que teria permanecido invisível caso ela fosse enquandrada no centro (imagem acima). Um mundo que Antonioni soube enxergar como ninguém.

Notas:

Leia Também:

Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

1. RESTIVO, Angelo. The Cinema of Economic Miracles. Visuality and Modernization in the Italian Art Film. Durham & London: Duke University Press, 2002. P. 40.
2. Nem tudo é obra do Império Romano nesse mundo de Roma. Acqua Felice: um novo aqueduto seria construído pelo papa Sisto V em 1586 por Domenico Fontana, reutilizando as nascentes de Aqua Alexandrina. Chegava a Roma pela porta Tiburtina (actual "porta San Lorenzo") e terminava com a Fonte de Moisés, hoje visível na piazza San Bernardo (fonte: Wikipédia). A referência do local por onde vemos cristo voando de helicóptero consta do roteiro de A Doce Vida In CALIL, Carlos Augusto (org.). Fellini Visionário: A Doce Vida, 8 ½, Amarcord. Tradução dos roteiros Hildegard Feist, tradução das entrevistas André Carone, José Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
3. RESTIVO, Angelo. Op. Cit., p. 39.
4. Idem, p. 41.
5. Ibidem, pp. 19-20.
6. Ibidem, pp. 40-1.
7. Ibidem, p. 180n30.
8. Ibidem, p. 42.

12 de ago. de 2008

O Carteiro, o Poeta e a História




Baseado no livro Il Postino di Neruda, de Antonio Skarmeta, O Carteiro e o Poeta (Il Postino, 1993; direção Michael Radford) se passa nos anos 50 do século 20. Por razões políticas, o poeta Pablo Neruda se exila numa ilha na região sul da Itália. Lá, Mario, desempregado quase analfabeto é contratado como carteiro extra, encarregado de cuidar da correspondência do poeta. Quando Mario descobre, na sessão de cinema, a respeito da chegada do poeta a Roma, o que parece impressioná-lo não é o fato do exílio de Neruda por “crime de opinião” (idéias comunistas), mas como o poeta é amado pelas mulheres. Gradativamente se forma uma amizade entre os dois. O carteiro, aos poucos, aprende a transformar em metáforas poéticas seus sentimentos por Beatrice.

Com alta e eficiente carga poética, o filme consegue cativar pela magia das palavras que traduzem sentimentos profundos de amor e sedução. Quanto a isso, o filme é irretocável. Entretanto, para alguns, ficam perguntas. Porque um comunista foi parar na Itália em seu exílio durante a década de 50 do século 20? Porque Neruda parece esquecer completamente seu amigo “do povo” assim que deixa aquele lugar paradisíaco no sul da Itália? Que estratégia utilizar para fazer um filme sem falar de comunismo quando a narrativa trata de um poeta comunista vivendo num país (naquela época em que se passa o filme) em grande parte também comunista?


Angelo Restivo mostrou como a tradição do filme nacional italiano e as teorias da imagem que a fundamentaram interagiram e foram dobradas pela História daquele país. Em suas palavras, O Carteiro e o Poeta seria um rico, porém doloroso exemplo do que pode acontecer se algo sair errado. Tanto no texto quanto na produção, o filme mostra como um produto pós-moderno pode apagar as fronteiras de uma nação. O que não quer dizer que o filme tenha sido um fracasso de bilheteria, muito pelo contrário.


Este fato é que incomoda Restivo, porque a fórmula será repetida já que dá lucro – os filmes são feitos para um “mercado” apátrida, e não para pessoas perceberem seus laços com a história. Em nome disto, escorre por entre os dedos uma sólida tradição cinematográfica como a Italiana. Não se discute que o filme tenha como centro o poeta chileno, mas o fato de como a parte italiana da produção se permitiu mostrar os eventos históricos que faziam parte daquele lugar de uma forma bastante diferente se comparada às proposições do cinema italiano nas décadas anteriores.

Cinema Italo-Pós-Moderno



Apesar da mentalidade “arrasa quarteirão” (blockbuster) do sistema de produção de Hollywood nos anos 90 do século 20, desejaram incorporar o cinema de “arte” (ainda que à distância: no âmbito das produções independentes). “Itália” é o nome perfeito para ligar à “arte”, ainda mais que nas décadas de 50 e 60 os estúdios da Cinecittà foram um Outro em relação à Hollywood. Isso também explica porque Hollywood premiou Fellini e Antonioni pelo conjunto da obra na mesma época (1).

Uma nostalgia em relação à Itália é o mesmo espectro que assombra O Carteiro e o Poeta. Segundo Restivo, foi Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso, 1988; direção de Giuseppe Tornatore) que pavimentou o caminho para essa nostalgia. Neste filme, o protagonista está em conflito com um sentimento de perda: um siciliano que se muda para a agitação e falta de sentido de Roma.

O retorno à Sicília e, portanto, às raízes, alcançaria seu clímax numa montagem-homenagem ao cinema clássico de Hollywood. A montagem inclui todas as cenas de beijos que eram censuradas pelo padre da cidade, mas que foram guardadas pelo operador da projeção como um presente para aquele que tentara apagar seu passado siciliano. Segundo Restivo, as imagens são arrancadas de seu contexto narrativo original (os filmes dos quais faziam parte) e agrupadas, formando um borrão pós-moderno do presente e do passado.

O Carteiro e o Poeta é um híbrido pós-moderno em vários sentidos. Antes de mais nada, e para fazer frente ao poder econômico de Hollywood, o filme é uma co-produção Franco-Italiana, dirigido por um inglês. Um dos protagonistas é o francês Phillippe Noiret, que faz o papel do poeta chileno e de fala espanhola Pablo Neruda. Até aí, nenhum problema, essa “união européia” é bem vinda. Entretanto, ressalta Restivo, o filme combina uma narrativa que coisifica a experiência pessoal e ao mesmo tempo torna tanto a história quando a política totalmente ininteligíveis – características do produto europeu americanizado especificamente criado para brigar pelo mercado do filme americano (2).

O Carteiro e o Poeta, mais ligado ao estilo e ao cenário do à dimensão narrativa, também aborda a História a partir do viés do então emergente pós-modernismo. “Em outras palavras, uma desarticulação de voz e corpo, predominância do som sobre a imagem, interrupção da temporalidade narrativa. Estes sintomas ocorrem bem no final do filme, e culminam na seqüência que lembra o Neo-Realismo, adotando uma estética de documentário” (3).

Politicamente Correto? 



Após a volta de Neruda para seu país, aquela sólida amizade parece terminar. Durante anos Mario fala sobre Neruda como tivesse acabado de encontrá-lo na rua. Somente sua esposa e sogra parecem perceber que, quando aparece nos jornais, o poeta nunca se refere a Mario. O tratamento de Neruda em relação a Mario não seria surpresa, levando-se em consideração a hipótese de Restivo a respeito do tratamento que o roteiro dá aos elementos históricos - que apenas margeiam o filme. Porque uma amizade deveria resistir?

No que diz respeito à dimensão política, uma “memória política” é esboçada de forma primaria e incompleta. A política está presente no filme, entretanto ela não leva a uma compreensão coerente dos acontecimentos. Talvez, argumenta Restivo, abordagens cinematográficas como esta, em relação ao elemento político, sejam os frutos da incapacidade da Esquerda italiana em implementar sua transformação social no pós-guerra. Restivo lembra o exemplo de A Terra Treme (La Terra Trema – Episodio del Mare, 1948), com direção de Luchino Visconti. Neste filme, a dimensão política é revelada de forma mais clara.

“No filme de Visconti, as forças políticas e econômicas são claramente articuladas; de fato, o filme não poderia ser compreensível sem uma compreensão clara das relações entre os pescadores e a máfia de intermediários pequeno-burgueses que compram sua carga, ou da vasta distância psicológica entre a vila isolada e a cidade onde o banco (e, portanto, o capital) está localizado. No filme de Visconti, as relações entre o poder e a exploração estão claramente delineadas; e será este delineamento – ao invés da presença de algum representante textual da ‘política’ na forma de, digamos, um comunista – que constitui o filme como político. Desta forma, o filme exemplifica a convicção neo-realista de que é pelo rigoroso exame do quotidiano que uma convicção política pode ser forjada”. (4)


Em O Carteiro e o Poeta, a política é personificada na cidade por um homem mentiroso identificado como representante do Partido Democrata-Cristão. O partido Comunista aparece de forma marginal. O carteiro é comunista aparentemente apenas por causa de sua relação com Neruda (e a relação deste com as mulheres) e não porque tenha uma identificação forte com o Partido (como a convicção que possui seu chefe, que corrige Mario quando este chama Neruda de poeta do amor; “poeta do povo!”, afirma levantando a voz).

Restivo mostra como podemos ver em O Carteiro e o Poeta a função ideológica da estrutura em três atos do roteiro cinematográfico americano, cada vez mais adotado pelos filmes europeus em busca de maior audiência. A estrutura trabalha para conter o político ao estabelecer sua manifestação apenas enquanto elemento secundário (subplot) - um detalhe menos importante. Por outro lado, enfatiza como “real” narrativa a estória de poesia e amor.


Deixa pouco claro inclusive o próprio motivo que levou Neruda a se mudar para aquela cidade afastada e fora de seu país – durante o casamento de Mario, Neruda recebe uma carta onde se diz que ele poderá voltar ao seu país. No início do filme, durante o cine-jornal na sessão de cinema, fala-se da confusão nas ruas de Roma em tono da chegada de Neruda a Itália. Explicando o porquê da chegada do poeta chileno, exilado por suas idéias comunistas, podemos dizer que é a primeira referência aos comunistas quando o locutor afirma que aquela confusão de gente, “não são os radicais costumeiros que protestam por diversão”.

A parte final, onde Mario aparece num comício comunista, é mostrada em preto e branco, como se fosse um filme ou um cine-jornal da época. Essa estética sugere um neo-realismo documental. Mas é só isso! É neste sentido, argumenta Restivo, que o filme mantém a História como arquivo desconectado da narrativa, ao mesmo tempo mantendo a política incompreensível. Apresenta-se o comunismo enquanto uma alteridade isolada, quando na verdade a história é bem diferente.


“(...)O filme regularmente apresenta o comunismo como uma alteridade isolada, um boato – isso num período na história italiana quando quase um quarto da população do eleitorado italiano votava comunista, e quando provavelmente uma percentagem ainda maior era simpática ao papel dos comunistas no movimento antifascista. Entretanto, no filme, pode-se apenas imaginar de onde todas essas centenas de participantes no comício vieram, dada sua absoluta invisibilidade durante todo o filme. Tão surpreendente quanto isso é a repentina e violenta intervenção da polícia. É claro, certamente é verdade que, especialmente no sul [da Itália], houveram casos onde os comícios comunistas foram violentamente interrompidos – o massacre em Portella della Ginestra descrito em Salvatore Giuliano [1962, dirigido por Francesco] Rosi é um desses casos -, mas o filme não nos dá meios para compreender o alvo e a extensão da repressão política da Esquerda durante o princípio da década de 50, que foi de fato uma realidade”. (5)

A Metáfora, o Som e a Imagem



Mario, o carteiro, decide pedi ajuda ao poeta Neruda. Ele deseja conquistar uma mulher e gostaria de fazê-lo através da poesia. Neruda chama atenção de Mario para o papel das metáforas. Compreendendo a explicação do mestre, Mario acaba visualizando um pequeno paradoxo entre a vida do poeta Neruda e do político poeta. Mario pergunta se tudo no mundo é uma metáfora?

De fato, esta pergunta de Mario é a própria questão filosófica da representação. Se tudo é metáfora, o mundo material está no lugar de outra coisa. Sendo uma sugestão de Neruda, parece contraditório, pois soa como uma negação do mundo (raciocínio anticomunista demais para o comunista Neruda). Apesar disso, este raciocínio é também antiplatônico, já que dá ao poeta e à poesia um papel que Platão negava a eles na República perfeita: não se privilegia os sentidos em detrimento da razão.

O gesto poético de Mario, ao gravar os sons da ilha (as ondas, o vento, as estrelas) e até mesmo o som do útero de sua esposa, desloca a metáfora da linguagem e da narrativa para o som – do corpo humano e do corpo do mundo. Na opinião de Restivo, somos levados a uma questão heideggeriana: uma exposição da impossível fissura entre o som e o significante, ou entre corpo e cosmos, que a metáfora age precisamente para ocultar (6).

O Carteiro e o Poeta (e Talvez a Itália)



O Porteiro e o Poeta é uma produção de 1993, portanto produto de uma fase pós-milagre econômico italiano. A julgar pelo tratamento que a História recebe neste filme, ficamos tentados a concluir com Angelo Restivo que a hipótese de que “a história acabou” estaria articulada a esse momento pós-moderno da cultura-mercadoria, neutralizando questões como o conceito de Nação e domínio da cultura visual. O que Restivo não discute é a hipótese de que, se fosse o triunfo do comunismo, quem sabe o desfecho seria o mesmo. Chegaríamos então à conclusão de que a síndrome da leveza (7) é uma peste que se espalha a partir do ponto de vista dos poderes econômicos e políticos dominantes – com raríssimas exceções.

Ainda assim, poderíamos argumentar que Angelo Restivo chamou atenção apenas para o que lhe interessava. Poder-se-ia dizer que o filme abordou mais a poesia e o amor porque este era o assunto que interessava aos produtores.

Considerando a trilha musical, repleta de tango e bandonéon, poderíamos também concluir que a Itália e os italianos são neste filme mero pano de fundo sem História, pois Neruda é o tema.


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Notas:

aviso: Texto revisado em janeiro de 2019, pequenas diferenças com o original de 2009 podem se verificar na construção de algumas frases ou parágrafos, mas não houve alteração de seu sentido ou da proposta do texto.


1. RESTIVO, Angelo. The Cinema of Economic Miracles. Visuality and Modernization in the Italian Art Film. Durham & London: Duke University Press, 2002. P. 169.
2. Idem, pp. 168-9.
3. Ibidem, p. 170.
4. Ibidem.
5. Ibidem, p. 172.
6. Ibidem, p. 172.
7. Pier Paolo Pasolini lutava na década de 60 do século 20 contra um pragmatismo burguês que procurava (ainda procura? Ou ainda precisa procurar?) apagar as memórias, as lembranças e as contradições, tornando-as inócuas, prontas para as massas (e seu consumismo bovino). Todos ficam calmos e entretidos enquanto estão consumindo; até ao minuto seguinte, quando o vazio de sentido pede mais uma dose, um comprimido, um cigarro, comida, etc. O importante é esquecer (e esquecer-se de si; e de preferência esquecer-se que esqueceu), procedimento chave do infantilismo contemporâneo. “O que, aliás, não é muito diferente do raciocínio de muitos – pós-modernos ou não – que recusam o passado, já que não tê-lo torna mais leve o presente – a síndrome da leveza -, uma dádiva reservada só às crianças” (AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac & Naify, P. 116). 


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