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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

31 de out. de 2018

Palhaços Fellinianos


“É culpa da perda da inocência, não há mais o olhar infantil
 dos palhaços.  Mesmo  as  crianças  não  são  mais  infantis”

Federico Fellini lamentando a situação dos palhaços de circo (1)

Qual é a Mensagem?

Em seu tão famoso filme (Otto e Mezzo, 1963), Fellini criou um personagem, Guido. Cineasta confuso, não sabe o que fazer com sua falta de inspiração – posteriormente, em suas memórias, Fellini confessa: “eu realmente gostaria de encontrar produtores que me mandassem fazer um filme sem filmá-lo: sem falsas esperas e promessas a manter” (2). No final apoteótico do filme Guido, que passa o tempo oscilando entre o presente e o devaneio (sonhar acordado) mais do que para seu passado, alcança o momento da criação (sempre irracional e misterioso, de acordo com Fellini). A mensagem de : criação a partir do nada ou, mais precisamente, dos recantos mais profundos da imaginação liberada do artista. “Eu sou Guido”, repetia sempre Fellini (3).
Na opinião de Peter Bondanella, esta ênfase na imaginação liberada é também o tema de Os Palhaços (I Clowns, 1970), combinando elementos de sua biografia pessoal (bem entendido, suas memórias de infância em torno do circo ou sua fantasia em torno do que teria sido esse passado), uma paródia de documentário (onde o próprio Fellini atua como pesquisador) implícita na sugestão de que a imaginação é mais “real” do que a realidade, e uma conclusão onde a imaginação do cineasta ressuscita a instituição moribunda da palhaçada. Ao longo da pesquisa de Fellini a respeito da história dos palhaços, somos levados à conclusão de que os palhaços estão mortos. Em determinada sequência, durante o funeral de um palhaço, alguém pergunta ao cineasta qual é a mensagem. Antes que pudesse concluir a resposta, um balde (jogado por um palhaço) cobre sua cabeça.

“Mensagens, nas palavras de um grande produtor de Hollywood, vem da Western Union [empresa estadunidense de serviços financeiros e comunicações], não de obras de arte. O magnífico cortejo fúnebre revitaliza a instituição dos palhaços por um breve momento, enquanto a criatividade de Fellini triunfa até sobre a morte antes que um comovente dueto de trompete por dois palhaços no centro do centro circular mágico do circo conclua o filme. Como conclui uma perspicaz interpretação de Os Palhaços, a visão cômica de Fellini aqui, como em 8 ½, depende da aceitação, ao invés da análise racional. Fellini aceita o absurdo de sua obsessão com uma instituição morta e, no processo de rir de si mesmo, alcança o impossível, ressuscitando os palhaços mortos num ‘mundo além da realidade’ que é o mesmo reino no qual a apoteose de Guido acontece” (4)


“O filme tenta reproduzir  um  mundo,  um  ambiente, 
de   maneira   vital.   Tenta   se   deter   nesta    dimensão, 
procurando recriar a emoção, o encanto, a surpresa” (5)

Fellini está convencido de que os palhaços pertencem há outro tempo, mas continua sua busca pelas relíquias do que chamou de “religião do riso” – sem esquecer o sorriso de Victoria Chaplin a filha de Chaplin que Fellini convidou para fazer uma ponta no filme. Kezich observa que além da divisão do mundo entre o palhaço branco e o augusto, Os Palhaços demonstra total desconfiança de Fellini em relação ao inquérito factual e a documentação da realidade - é um reflorestamento da antiga resistência anti-Zavattini de Fellini em relação ao realismo. Certa vez, Fellini até tentou racionalizar...

“Sempre fui atraído pela comédia, mas não sei por que nós rimos. Costumava pensar sobre isso. Teorizei que o riso era a liberação de tensões acumuladas em nós por um sistema social repressivo e ilógico. Então, vi um chimpanzé rir no zoológico. Acho que estava rindo de minha teoria. Aparentemente, chimpanzés tem um ótimo senso de humor” (6)
A arte dos grandes palhaços na história não será encontrada nos arquivos de cinema, assim como Bomba, a prostituta mítica que o cineasta procurou nas ruas de Roma durante a produção de Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957), ou o filme sobre os irmãos Fratellini que se queima justo quando ia ser projetado – um filme sobre o famoso Rhum também não passa de arqueologia sem sentido. Testemunhos também são efêmeros... Para Fellini, simplesmente é melhor reinventar os grandes artistas. Apesar disso, foi na gravação de um Bario Meschi emocionado demais para falar de si que Fellini encontra a conclusão poética para a conclusão de Os Palhaços: um famoso esquete dos palhaços Bario e Dario Meschi, quando o augusto procura desesperadamente pelo palhaço branco que foi declarado morto, encontrando-o no final num dueto de trompetes (7). Voltando ao balde atirado na cabeça do cineasta, Luis Renato Martins o articula também noutro sentido:

“Na obra de Fellini, a representação do autor como déspota, conjugando traços de vigarice e histrionice, parece recorrente. Um recenseamento incluiria, desde representações iniciais, em Mulheres e Luzes (Luci del Varietà, 1950), passando pelas figuras de Oscar e do mago de Noites de Cabíria, pela de Guido, com dotes de sultão, e, assim por diante. Um momento marcante dessa série estaria em Os Palhaços, em que, além de o clown branco, prepotente e vaidoso, encarnar o autor, destacar-se ainda uma cena, de folia de circo, em que Fellini – representando a si próprio, prestes a responder, no set de filmagens, a um jornalista que o interroga acerca da mensagem do seu filme – tem a sua cabeça colhida por um balde, arremessado de modo irreverente por um anônimo, fora da cena” (8)

Quem é Quem no Picadeiro Itália


“Se me imagino como palhaço, acho mesmo que devo ser um
augusto. Mas também um clown branco. Ou, talvez, seja o diretor
do  circo.  O  médico  dos  loucos  que,  por  sua  vez,  é  louco”

Federico Fellini (9) 

Fellini adaptou a frase de Shakespeare (“todo o mundo é um palco e os homens e mulheres meros artistas”) e afirmou que o mundo é um circo e os homens são todos palhaços, seja brancos ou augustos (que se chama Tony no circo italiano) – respectivamente, senhores e escravos, ricos e pobres, senhor e escravo. Tomando o circo como uma metáfora global, Fellini acredita que toda a humanidade pode ser dividida nestas duas categorias e oferece alguns exemplos históricos: Hitler é um branco, Mussolini um augusto; Pacelli (Papa Pio XII) é um branco, Roncalli (Papa João XXIII) um augusto; Freud é um branco, Jung um augusto. Fellini seria os dois! (10); Pier Paolo Pasolini seria um branco, do tipo agraciado e presunçoso, Michelangelo Antonioni também é um branco, mas do tipo silencioso, mudo, triste; Outro palhaço branco seria Luchino Visconti, um com grande autoridade. O escritor italiano Alberto Moravia é um palhaço augusto que queria ser um branco. Pablo Picasso é um augusto triunfal, audacioso, sem complexos, que sabe fazer de tudo e no final vence o palhaço branco.
Na opinião de Fellini, esse jogo é tão real que quando estamos na presença de um palhaço branco tendemos a ser o augusto e vice-versa. Em Os Palhaços, o encarregado da ferrovia é um palhaço branco, então todos (no caso, os meninos no trem fazendo piada dele) somos augustos. Na próxima passagem do trem, ele está acompanhado de um oficial fascista, que é um branco mais sinistro. Ao perceberem o militar, todos os meninos fazem a saudação fascista de maneira disciplinada. Para Fellini, aquela presença transformou todos em palhaços brancos. Giovannone, o abobado que mostra o membro como lebre morta para as camponesas é um augusto que nos transforma a todos em brancos quando dizemos, “mas o que está fazendo, Giovannone?” (11).

“[Greta] Garbo tinha uma máscara de juiz, glacial como a de um fantasma, uma espécie de versão feminina do papa. O de Chaplin era um rosto de palhaço branco, não totalmente inocente, porque jogava com seus afetos. Ele é como um sonâmbulo, ao mesmo tempo assombrado e assombrado. Gosto muito de Garbo, mas minha lealdade é dos grandes comediantes e tem sido assim desde a infância. Comediantes como o nosso Totó, cujo sorriso lembrou o Mensageiro da Morte, ou Buster Keaton, o bailarino - são meus favoritos porque os considero como os benfeitores da humanidade. Os palhaços nos fazem um mundo do bem, e fazer as pessoas rirem é minha verdadeira vocação” (12)

Informação x Expressão


(...) Para alguém que, como eu, acredita na expressão e não
na  informação   (ou  na  informação  que  nasce  da  expressão), 
a  televisão  parece  ter  limites   confinantes  demais.  Por  isso, 
considero falimentar a experiência com Os Palhaços (...)(13)

Entre 1969 e 1972, Federico Fellini realizou três filmes protagonizados por ele mesmo, onde o tema dominante é o metacinema, devotado à própria natureza do cinema: Block-notes di un Regista (1969), Os Palhaços e Roma de Fellini (Roma, 1972). De repente, Fellini passou do desprezo e desinteresse pela televisão (que já estava atrapalhando o funcionamento da indústria do cinema na Itália) ao desejo de realizar algum projeto para a telinha, que agora o cineasta afirma estabelecer uma relação mais íntima com o público. Isso aconteceu depois que ele foi abordado pelos produtores da NBC televisão, dos Estados Unidos, ainda que insistisse que no fundo a televisão o fascinasse. Das várias propostas que fez, chegou a realizar Block-notes sobre as filmagens de Satyricon de Fellini (Fellini – Satyricon, 1969), até que esse projeto de escrever para a televisão passou para as mãos da televisão italiana (RAI), então nasce Os Palhaços, espécie de documentário (14). 
Apesar de privilegiar mais a palavra do que a imagem, Fellini insistiu em afirmar que a televisão é apenas outra expressão do cinema. Entretanto, disse que o formato de entrevista o desagradou. Não só confessou que não sabia fazer perguntas como disse que não apenas uma entrevista é uma forma de invasão como a única informação que se consegue é a respeito do próprio entrevistador. Afinal, se Fellini não gostava das perguntas repetitivas de seus entrevistadores ao longo da carreira, como ele próprio se transformaria num deles agora, e que realidade ele seria capaz de capturar. Fellini desabafou:

“Sou novamente lembrado deste momento em Os Palhaços, quando um entrevistador me pergunta, ‘qual é a mensagem, senhor Fellini?’ Enquanto começo a responder à pergunta pesada no estilo pedante na qual acredito que ele estivesse esperando, um balde cai sobre minha cabeça cobrindo meu rosto, me impedindo de falar. Então, outro balde cai na cabeça do entrevistador. Esta cena curta é minha real resposta a este tipo de pergunta. Como eu era o diretor, podia fazer aquilo. Quantas vezes na vida fiz isso em minha mente para entrevistadores fazendo perguntas tolas” (15)

Além do mais, insistiu o cineasta, sua adesão às coisas é sempre subjetiva e emocional. Este último detalhe fica evidente na declaração de Fellini:

“Agora devo fazer uma confissão embaraçosa: não sei nada sobre o circo. Sinto-me a última pessoa do mundo a poder falar dele com um conhecimento histórico, de fatos, de notícias. Também devo acrescentar que assisti a pouquíssimos espetáculos circenses. Sob pena de entristecer com esta admissão – como se os traísse – os muitíssimos amigos que tenho no mundo do circo e que me tratam como se fosse um deles: um velho cavaleiro ou um engolidor de espadas. E, por outro lado, por que não? Ainda que não saiba nada, sei tudo sobre o circo, sobre seus bastidores, as luzes, os odores e até os aspectos de sua vida mais secreta. Sei, sempre soube. Desde a primeira vez, logo se manifestou em mim uma traumatizante e total adesão àquele alvoroço, às músicas ensurdecedoras, às aparições inquietantes, àquelas ameaças de morte” (16)


Tendo sido financiado pela televisão, ela reivindicava o direito 
à estreia. Os proprietários de cinemas protestaram,  mas não teve
  jeito.  Ocorre  que  a  estreia  na  noite  de  natal  não  foi  positiva, 
já que era um feriado e a televisão ainda era em preto e branco 

A estreia seria na noite de natal pela televisão, seguiu-se o protesto dos proprietários de cinemas, mas não teve jeito. Ocorre que a estreia foi ruim, já que era um feriado e a televisão ainda era em preto e branco. No dia 27, aconteceu a estreia nos cinemas, em cores. Mas o resultado foi uma catástrofe na bilheteria, já que ainda se estava durante o feriado de fim de ano. Fellini assistiu na casa de sua mãe em Rimini e não gostou, já que o filme estava muito menor do que ele queria fazer (17).
Peter Bondanella é categórico, enquanto instituição social e mídia artística, a televisão representa a antítese daquilo que Fellini acreditava constituir a essência do cinema. Seja como for, o cineasta não apenas realizaria Block-notes e Os Palhaços para televisão, como também comerciais de do macarrão Barilla, aperitivo Campari e o Banco de Roma, trabalhos que apresentam características com traços típicos da televisão e afastados da poética cinematográfica que sempre identificou Fellini (18).

“Após as revoltas do final dos anos 1960, que Fellini irá criticar duramente em Ensaio de Orquestra (Prova d’Orchestra, 1978), o diretor se inspira para evitar a repetição e se expressar honestamente. Subitamente, acolhe a ideia de trabalhar para a televisão, atraído pela possibilidade de não se preocupar com longa pré-produção e os obstáculos organizacionais da indústria do cinema. A televisão quase inteiramente elimina as lacunas entre inspiração e realização, ao mesmo tempo em que aumenta significativamente a audiência no mesmo momento que em o cinema está começando a minguar. Otimistas, Leone Film e RAI fazem um contrato para três filmes de televisão a serem coproduzidos com França e Alemanha. Enquanto isso, Fellini e Zapponi [que escreveria o roteiro junto com o cineasta] discutem os projetos na casa de Zapponi em Zagarolo, decidindo que o primeiro filme poderia ser sobre palhaços, a quem Fellini descreve como ‘os embaixadores de minha vocação’” (19)

Impasse Biográfico Bem Felliniano


“Em Os Palhaços, você nunca vê o rosto da criança, porque ela está
dentro de mim. Fui totalmente inspirado por Little Nemo. (...)
Quando  estudei  latim  na  escola,  fiquei  surpreso  ao
  aprender que ‘Nemo’ significa ‘ninguém’” (20)

Federico Fellini

Little Nemo  é  um  personagem  de  quadrinho  dos  Estados Unidos
criado pelo cartunista Winsor McCay, reproduzido entre 1905 e 1926
Da primeira vez que entrou numa lona de circo, contou Fellini em Fazer um Filme (Fare un Film, 1980), senti uma embriaguez, uma comoção, a sensação imediata de estar em casa, e nem estava ainda na hora do espetáculo. Era de manhã cedo, continuou o cineasta, e não havia ninguém. No silêncio ouviam-se apenas o canto de uma mulher estendendo roupas no varal ao longe e o relincho de um cavalo. Fiquei extasiado como um astronauta abandonado na lua ao encontrar sua espaçonave. Naquela mesma noite, o pequeno Federico assistiu ao espetáculo no colo do pai e ficou encantado. Fellini compara toda aquela mistura de animais, vários idiomas, homens, belas mulheres e palhaços, ao próprio cinema. De fato, em sua opinião, toda forma de espetáculo tem origem no circo:

“(...) Os palhaços berrantes, grotescos, atrapalhados, maltrapilhos, em sua total irracionalidade, violência, nos caprichos anormais, me pareceram os embaixadores embriagados e delirantes de uma vocação sem saída, uma antecipação, uma profecia: a anunciação feita a Federico. E de fato o cinema, quero dizer, fazer cinema, não é como a vida do circo? (...)” (21)

Correndo o risco de destruir a mística em torno da biografia do cineasta italiano, Tullio Kezich realizou a inglória tarefa de checar e comparar as famosas e muitas vezes mirabolantes histórias de Fellini a respeito de si mesmo (22). Em relação ao contato dele com o circo durante a infância, o que existe de fato é que o menino Fellini ficou impressionado quando foi assistir ao palhaço Pierino. Embora sua família sempre tenha negado o fato, o cineasta insistiu por toda a sua vida existir pelo menos um pingo de verdade na história de que fugiu para o circo assim que a cortina desceu. Talvez esse pingo de verdade tenha sido o simples desejo de uma criança pertencer ao circo depois da experiência de assistir pela primeira vez. Assim conclui Kezich, que sugere então que essa fuga realmente aconteceu, mas que apesar de ter sido apenas alguns dias, durou a vida toda de Fellini.

Reconciliação dos Contrários


“Os dois tipos de palhaço, o branco e o augusto, os quais
 representam  diferentes  aspectos  da  natureza  humana, 
se  reconciliam  no  final durante o solo de trompete” (23)

Embora em seu filme Fellini apresente os dois tipos de palhaço (branco e augusto), o próprio cineasta admite que quando diz “palhaço” ele pensa no augusto. De qualquer forma, encara os dois como as duas faces de uma moeda, onde o palhaço branco é a elegância em paetês, a seriedade e a inteligência, usa chapéu de cone e pinta o rosto de branco. O augusto usa roupas velhas e nariz vermelho, ele é como o menino que se rebela contra esse palhaço branco vaidoso e faz coco nas calças. Originalmente formavam duplas, onde o primeiro era mau e triste e o segundo bobo e alegre, até que o branco foi desaparecendo (24).

“Aquela mágoa, explicou Fellini, que existe na contínua guerra entre o clown branco e o augusto não se deve às músicas ou a algo parecido, mas às circunstâncias nas quais se apresenta aos nossos olhos um fato que diz respeito à nossa incapacidade de conciliar duas figuras. De fato, Quanto mais se quiser obrigar o augusto a tocar o violino, mais ele soltará puns com a corneta. Além disso, o clown branco pretenderá que o augusto seja elegante. Mas, quanto mais autoritário for esse pedido, mais o outro será maltrapilho, tosco, empoeirado” (25)
Fellini compara o palhaço branco com o professor, a mãe e o anjo com a espada flamejante, enquanto o augusto é, respectivamente, o menino, o filho mimado e o pecador. Representam duas atitudes psicológicas do homem divididas, explica o cineasta: o impulso para o alto (palhaço branco) e para baixo (augusto). Até que na sequência final de Os Palhaços, quando os dois se encontram e tocam trompete juntos significa justamente a reconciliação dos contrários, a unicidade do ser.

“Em Os Palhaços, Fellini afirma que os palhaços que vivem nas tendas de circos pertencem também à grande família dos seres estranhos e monstruosos que exibem sua loucura nas cidades italianas do interior. Onde encontrar as figuras do palhaço branco e do augusto? A pergunta é particularmente importante porque focaliza a concepção caricatural do trabalho do cineasta. Os rostos exteriorizam as neuroses da alma, os físicos grotescos do palhaço e do louco revelam uma loucura que, como no circo, está muito próxima do imaginário em estado puro. Os augustos nos lembram de que o espetáculo do circo é uma metáfora do mundo. Também neste sentido, o palhaço branco é uma figura apolínea e o augusto um ser dionisíaco (...)” (26)


Palhaços não têm sexo, diz Fellini. Gelsomina, Cabíria são augustos
assexuados,  assim  como  O Gordo e o Magro,  que  dormem
juntos inocentemente e por esse motivo fazem rir (27)

Fellini conta que os Fratellini introduziram um terceiro personagem, le contrepire, uma espécie de augusto aliado do patrão. Embora François Fratellini atuasse como um palhaço gentil, todos os brancos eram duros, zombavam do augusto e desfrutava dele. Em Os Palhaços, o desfile de palhaços brancos na passarela evidencia como sempre competiram entre si pela roupa mais pomposa. O augusto, por outro lado, é o eterno maltrapilho. Fellini chega a comparar a família burguesa ao branco, onde a criança é jogada na condição de augusto. O cineasta disse que só conheceu um palhaço mulher, miss Lulí. Contudo isso não parece fazer diferença, pois Fellini acha que os palhaços não tem sexo. 
Os papéis de sua esposa Giulietta Masina, Gelsomina e Cabíria, respectivamente em A Estrada da Vida (La Strada, 1954) e Noites de Cabíria, são dois augustos – embora Masina não se vise como uma palhaça (28). Contudo, insistiu o cineasta, são assexuados, são Fortunellos. Entre as décadas de 1920 e 1930 na Itália, que coincide com a primeira década de vida de Fellini, no jornal para crianças Corriere dei Piccoli muitas histórias com personagens importados eram reproduzidas ali com outros nomes. Desta forma, Happy Holligan (quadrinhos norte-americano do início do século XX, desenhado pelo cartunista Frederick Burr Opper) virou Fortunello (29). Em 1958, Fellini foi um dos roteiristas de Fortunella (direção Eduardo De Filippo), onde Masina é uma garota pobre que acredita ser filha de um príncipe. O comediante napolitano Totó era considerado pelo cineasta uma dos grandes palhaços:

“(...) O tipo de ator que sempre me encantou e fascinou, e pelo qual tenho, a cada vez, um sentimento de obscura e excitante predileção, é o ator-palhaço. O talento de palhaço que os atores em geral, sabe-se lá por que obscuro complexo, continuam a ver com antipática desconfiança é, para mim, sua qualidade mais preciosa, talvez já o tenha dito, mas estou com vontade de repetir, considero-o a expressão mais aristocrática e autêntica de um temperamento” (30)

Certa vez Fellini afirmou durante entrevista para Charlotte Chandler que quando era criança achava que ser um palhaço era uma da existência ideal a que alguém poderia aspirar, mas sabia que nunca poderia querer isso para si porque era muito tímido (31). Tullio Kezich vai dizer que Os Palhaços talvez o melhor autorretrato do cineasta italiano. Neste caso, é significativo o fato de que no relançamento do filme em 1977, o cineasta tenha pedido ao ator Gigi Proieti para dublá-lo. Kezich concluiu que essa atitude, tomada por alguém que nunca se esquivou de falar a respeito de si mesmo, soa como um receio de que ele tenha se exposto excessivamente (32). 

Leia também:


Notas:

1. ZAPPONI, Bernardino. Mon Fellini. Paris: Éditions Fallois, 2003. P. 55.
2. FELLINI, Federico. Fazer um Filme. Tradução Mônica Braga. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. P. 152.
3. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008.  Pp. 244-5.
4. Idem, p. 245.
5. FELLINI, F. OP. Cit., p. 154.
6. CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995. P. 174.
7. KEZICH, Tullio. Federico Fellini. His Life and Work. New York/London: I.B. Taurus, 2006. Pp. 299-300.
8. MARTINS, Luiz Renato. Conflito e Interpretação em Fellini: Construção da Perspectiva do Público. SP: Edusp, 1993. P. 21n23.
9. FELLINI, F. OP. Cit., p. 173.
10. KEZICH, T. OP. Cit., p. 299; FELLINI, F. OP. Cit., pp. 173-4.
11. FELLINI, F. OP. Cit., p. 173-4.
12. PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003. P. 42.
13. FELLINI, F. OP. Cit., p. 183.
14. Idem, pp. 149-54.
15. CHANDLER, C. OP. Cit., p. 265.
16. FELLINI, F. OP. Cit., p. 154.
17. KEZICH, T. OP. Cit., p. 301.
18. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002. P. 155.
19. KEZICH, T. OP. Cit., p. 298.
20. CHANDLER, C. OP. Cit., p. 175.
21. FELLINI, F. OP. Cit., p. 155.
22. KEZICH, T. OP. Cit., p. 8-9.
23. BONDANELLA, P. 2008. P. 246.
24. FELLINI, F. OP. Cit., p. 158-67.
25. Idem, p. 160.
26. QUINTANA, Àngel. Federico Fellini. Paris: Cahiers du Cinéma, 2007. P. 59.
27. FELLINI, F. OP. Cit., p. 166.
28. ZAPPONI, B. OP. Cit., p. 52.
29. KEZICH, T. OP. Cit., p. 9.
30. FELLINI, F. OP. Cit., p. 167.
31. CHANDLER, C. OP. Cit., p. 175.
32. KEZICH, T. OP. Cit., p. 302.

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