“O sexo é hoje a satisfação de uma obrigação social, não um prazer contra as obrigações sociais”
Pier Paolo Pasolini, 1975
Pier Paolo Pasolini, 1975
Saló, os 120 Dias de Sodoma
Norte da Itália, quatro senhores libertinos (o Duque, o Monsenhor, o Presidente do Tribunal, o Presidente do Banco Central) sodomizam, estupram, torturam e encarceram dezesseis adolescentes dos dois sexos, capturados com a ajuda de tropas alemãs. Quatro senhoras libertinas completam o quadro, elas fornecem um estímulo para seu trabalho através de narrativas de sua própria vitimização quando eram ainda crianças ou jovens submetidas à autoridade masculina. O episódio fictício é ambientado na República de Saló, último refúgio do ditador Italiano Benito Mussolini entre 1943 e 1945.
Pasolini articulou o texto do Marquês De Sade, Os 120 Dias de Sodoma (Les 120 journées de Sodome, ou l'École du libertinage, 1785), como pano de fundo de Saló, e o texto do século dezoito que referia-se a aristocracia francesa incorporou os quatro senhores fascistas italianos. Uma série de elementos repugnantes marca as imagens do último filme de Pasolini: coprofilia, necrofilia, olhos arrancados com colheres, escalpelamentos, surras.
Entretanto, um detalhe talvez mais revelador seja o fato de que a maioria das vítimas acaba colaborando com o Poder ao denunciar aqueles que não respeitam as regras.
Norte da Itália, quatro senhores libertinos (o Duque, o Monsenhor, o Presidente do Tribunal, o Presidente do Banco Central) sodomizam, estupram, torturam e encarceram dezesseis adolescentes dos dois sexos, capturados com a ajuda de tropas alemãs. Quatro senhoras libertinas completam o quadro, elas fornecem um estímulo para seu trabalho através de narrativas de sua própria vitimização quando eram ainda crianças ou jovens submetidas à autoridade masculina. O episódio fictício é ambientado na República de Saló, último refúgio do ditador Italiano Benito Mussolini entre 1943 e 1945.
Pasolini articulou o texto do Marquês De Sade, Os 120 Dias de Sodoma (Les 120 journées de Sodome, ou l'École du libertinage, 1785), como pano de fundo de Saló, e o texto do século dezoito que referia-se a aristocracia francesa incorporou os quatro senhores fascistas italianos. Uma série de elementos repugnantes marca as imagens do último filme de Pasolini: coprofilia, necrofilia, olhos arrancados com colheres, escalpelamentos, surras.
Entretanto, um detalhe talvez mais revelador seja o fato de que a maioria das vítimas acaba colaborando com o Poder ao denunciar aqueles que não respeitam as regras.
Ao ser lançado, em 1975, o filme sofreu uma avalanche de censuras. O Tribunal de Milão considerou-o um atentado ao pudor, acusando Pasolini de “obscenidade alucinante”. Os negativos do filme foram seqüestrados, e foi censurado em toda a Itália. Ele só pode estrear no ano seguinte, em Milão. Os produtores foram acusados de obscenidade e corrupção de menores, em processos que correram até 1978 (portanto, três anos após a morte de Pasolini). Na França, a proposta de proibição total foi substituída pela projeção num único cinema, em Paris. Cartazes foram proibidos e os ingressos só seriam vendidos por telefone. No resto do mundo, a censura foi igualmente sistemática (1).
O Prazer do Escravo
Numa entrevista durante 1975, quando ainda não havia terminado as filmagens, Pasolini esclareceu o que de fato ele quis dizer com esse filme. Ao contrário do que normalmente se imagina, o sexo e a violência presentes no filme não têm como objetivo servir de pano de fundo para um simples desfile de hábitos devassos e pornográficos. De fato, segundo Pasolini, essa é apenas a conclusão que o poder deseja que as pessoas cheguem.
Mas quem deseja que as coisas sejam compreendidas neste sentido? Por que este filme foi censurado assim que foi lançado? Por que, até hoje, é difícil encontrar uma cópia? Por que, em alguns países ele só pode ser encontrado na prateleira de filmes pornográficos?
O Prazer do Escravo
Numa entrevista durante 1975, quando ainda não havia terminado as filmagens, Pasolini esclareceu o que de fato ele quis dizer com esse filme. Ao contrário do que normalmente se imagina, o sexo e a violência presentes no filme não têm como objetivo servir de pano de fundo para um simples desfile de hábitos devassos e pornográficos. De fato, segundo Pasolini, essa é apenas a conclusão que o poder deseja que as pessoas cheguem.
Mas quem deseja que as coisas sejam compreendidas neste sentido? Por que este filme foi censurado assim que foi lançado? Por que, até hoje, é difícil encontrar uma cópia? Por que, em alguns países ele só pode ser encontrado na prateleira de filmes pornográficos?
Voltando um pouco no tempo, nos filmes da chamada Trilogia da Vida (1970-1974) (2), Pasolini queria mostrar uma sexualidade cujo desfrute fosse uma compensação à repressão exercida pelo Poder. De acordo com o cineasta, isso estava para acabar na cultura Ocidental. Como um presságio disso, esses filmes foram deglutidos pelo sistema neocapitalista e seu significado libertário original foi substituído pelo rótulo neutralizador de "pornográfico".
Como a indústria pornografia estava começando a se espalhar, para em seguida explodir no mercado com o surgimento do videocassete, era muito conveniente que seu conteúdo fosse neutralizado pela sociedade que fazia da repressão seu modo de vida.
Por este motivo, Pasolini abjurou os filmes da Trilogia da Vida. Se os três filmes que exaltavam o corpo fossem considerados apenas pura pornografia, ele não queria ser visto como aquele que os produziu. Pasolini começou a pensar em uma Trilogia da Morte, da qual Saló seria o primeiro tomo. De acordo com ele, a sociedade Ocidental é falsamente tolerante em relação ao sexo. Na verdade, ela o utilizaria para manter as pessoas presas a uma sexualidade que passaria a ser triste e obsessiva. É uma permissividade sexual contraditória porque é imposta.
“Vivemos, portanto, isto que acontece hoje. A repressão do
poder tolerante, que, de todas as repressões, é a mais atroz. Nada mais de alegre existe no sexo.
Os jovens são ou brutos ou desesperados, maus ou derrotados...”(3)
O sexo em Saló, ou os 120 Dias de Sodoma nada mais é do que uma representação desta situação: somos escravos de um sexo bruto e obrigatório. Além disso, a suposta tolerância sexual na sociedade de consumo também faz do sexo a metáfora do poder para aqueles que são subordinados a ele. É a comercialização (ou alienação) do homem, a redução do corpo a coisa através da exploração. Pasolini conclui: “o sexo é chamado a desempenhar em meu filme um papel metafórico horrível. Totalmente oposto ao da Triologia [da Vida] (se, nas sociedades repressivas, o sexo também era uma zombaria inocente em relação ao poder)” (4).
Pasolini tomou a República de Saló como símbolo desse poder que transforma homens em objetos. De acordo com Pasolini, o poder arcaico, tornado símbolo de todo poder, pode ser captado pela imaginação em todas as suas formas possíveis: como o poder anárquico. Como lembra Pasolini, “nunca o poder foi tão anárquico quanto durante a República de Saló” (5). Pasolini lembra também que o Marquês De Sade foi o grande poeta da anarquia do poder!
“No poder – em qualquer poder, legislativo e executivo – existe alguma coisa de animalesco. Em seus códigos e seus prazos, de fato, outra coisa não se faz que sancionar e atualizar a mais primordial e cega violência dos fortes contra os fracos: isto é, digamos ainda uma vez, dos desfrutadores contra os desfrutados. A anarquia dos desfrutados é desesperada, idílica, e sobretudo dobrada no vento, eternamente não realizada. Enquanto a anarquia do poder se concretiza com a máxima facilidade em artigos de códigos e nos prazos. Os poderosos de De Sade não fazem nada além de escrever Regulamentos e regularmente aplicá-los” (6)
Se a questão de Saló, ou os 120 Dias de Sodoma é esta, dá o que pensar o esforço de décadas para deixá-lo fora do alcance. Primeiro, o consumismo distorce sua mensagem em pornografia. Em seguida, mantém-se as proibições de sua circulação, o que ao mesmo tempo pode aumentar o interesse distorcido (objetivo do neocapitalismo) e manter o filme longe dos debates e análises que poderiam dar publicidade ao real objetivo de Pasolini.
Notas:
Leia também:
As Deusas de François Truffaut
Pasolini tomou a República de Saló como símbolo desse poder que transforma homens em objetos. De acordo com Pasolini, o poder arcaico, tornado símbolo de todo poder, pode ser captado pela imaginação em todas as suas formas possíveis: como o poder anárquico. Como lembra Pasolini, “nunca o poder foi tão anárquico quanto durante a República de Saló” (5). Pasolini lembra também que o Marquês De Sade foi o grande poeta da anarquia do poder!
“No poder – em qualquer poder, legislativo e executivo – existe alguma coisa de animalesco. Em seus códigos e seus prazos, de fato, outra coisa não se faz que sancionar e atualizar a mais primordial e cega violência dos fortes contra os fracos: isto é, digamos ainda uma vez, dos desfrutadores contra os desfrutados. A anarquia dos desfrutados é desesperada, idílica, e sobretudo dobrada no vento, eternamente não realizada. Enquanto a anarquia do poder se concretiza com a máxima facilidade em artigos de códigos e nos prazos. Os poderosos de De Sade não fazem nada além de escrever Regulamentos e regularmente aplicá-los” (6)
Se a questão de Saló, ou os 120 Dias de Sodoma é esta, dá o que pensar o esforço de décadas para deixá-lo fora do alcance. Primeiro, o consumismo distorce sua mensagem em pornografia. Em seguida, mantém-se as proibições de sua circulação, o que ao mesmo tempo pode aumentar o interesse distorcido (objetivo do neocapitalismo) e manter o filme longe dos debates e análises que poderiam dar publicidade ao real objetivo de Pasolini.
Notas:
Leia também:
As Deusas de François Truffaut
1. NAZÁRIO, Luiz. Todos os Corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007. P. 115.
2. Decameron (Il Decameron, 1970), Os Contos de Canterbury (I Racconti di Canterbury, 1971), As Mil e Uma Noites (Il Fiore delle Mille e Una Notte, 1974).
3. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) Pier Paolo Pasolini per il Cinema. Milan: Mondadori, 2 vols. 2001. Vol. 2, p. 2064.
4. Idem, p. 2065.
5. Ibidem, p. 2066.
6. Ibidem.