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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

23 de fev. de 2009

Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I)


“O sexo é hoje a satisfação de uma obrigação social, não um prazer contra as obrigações sociais”

Pier Paolo Pasolini, 1975


Saló, os 120 Dias de Sodoma

Norte da Itália, quatro senhores libertinos (o Duque, o Monsenhor, o Presidente do Tribunal, o Presidente do Banco Central) sodomizam, estupram, torturam e encarceram dezesseis adolescentes dos dois sexos, capturados com a ajuda de tropas alemãs. Quatro senhoras libertinas completam o quadro, elas fornecem um estímulo para seu trabalho através de narrativas de sua própria vitimização quando eram ainda crianças ou jovens submetidas à autoridade masculina. O episódio fictício é ambientado na República de Saló, último refúgio do ditador Italiano Benito Mussolini entre 1943 e 1945.

Pasolini articulou o texto do Marquês De Sade, Os 120 Dias de Sodoma (Les 120 journées de Sodome, ou l'École du libertinage, 1785), como pano de fundo de Saló, e o texto do século dezoito que referia-se a aristocracia francesa incorporou os quatro senhores fascistas italianos. Uma série de elementos repugnantes marca as imagens do último filme de Pasolini: coprofilia, necrofilia, olhos arrancados com colheres, escalpelamentos, surras.

Entretanto, um detalhe talvez mais revelador seja o fato de que a maioria das vítimas acaba colaborando com o Poder ao denunciar aqueles que não respeitam as regras.

Ao ser lançado, em 1975, o filme sofreu uma avalanche de censuras. O Tribunal de Milão considerou-o um atentado ao pudor, acusando Pasolini de “obscenidade alucinante”. Os negativos do filme foram seqüestrados, e foi censurado em toda a Itália. Ele só pode estrear no ano seguinte, em Milão. Os produtores foram acusados de obscenidade e corrupção de menores, em processos que correram até 1978 (portanto, três anos após a morte de Pasolini). Na França, a proposta de proibição total foi substituída pela projeção num único cinema, em Paris. Cartazes foram proibidos e os ingressos só seriam vendidos por telefone. No resto do mundo, a censura foi igualmente sistemática (1).

O Prazer do Escravo

Numa entrevista durante 1975, quando ainda não havia terminado as filmagens, Pasolini esclareceu o que de fato ele quis dizer com esse filme. Ao contrário do que normalmente se imagina, o sexo e a violência presentes no filme não têm como objetivo servir de pano de fundo para um simples desfile de hábitos devassos e pornográficos. De fato, segundo Pasolini, essa é apenas a conclusão que o poder deseja que as pessoas cheguem.

Mas quem deseja que as coisas sejam compreendidas neste sentido? Por que este filme foi censurado assim que foi lançado? Por que, até hoje, é difícil encontrar uma cópia? Por que, em alguns países ele só pode ser encontrado na prateleira de filmes pornográficos?

Voltando um pouco no tempo, nos filmes da chamada Trilogia da Vida (1970-1974) (2), Pasolini queria mostrar uma sexualidade cujo desfrute fosse uma compensação à repressão exercida pelo Poder. De acordo com o cineasta, isso estava para acabar na cultura Ocidental. Como um presságio disso, esses filmes foram deglutidos pelo sistema neocapitalista e seu significado libertário original foi substituído pelo rótulo neutralizador de "pornográfico".

Como a indústria pornografia estava começando a se espalhar, para em seguida explodir no mercado com o surgimento do videocassete, era muito conveniente que seu conteúdo fosse neutralizado pela sociedade que fazia da repressão seu modo de vida.

Por este motivo, Pasolini abjurou os filmes da Trilogia da Vida. Se os três filmes que exaltavam o corpo fossem considerados apenas pura pornografia, ele não queria ser visto como aquele que os produziu. Pasolini começou a pensar em uma Trilogia da Morte, da qual Saló seria o primeiro tomo. De acordo com ele, a sociedade Ocidental é falsamente tolerante em relação ao sexo. Na verdade, ela o utilizaria para manter as pessoas presas a uma sexualidade que passaria a ser triste e obsessiva. É uma permissividade sexual contraditória porque é imposta.

“Vivemos, portanto, isto que acontece hoje. A repressão do
poder tolerante
, que, de todas as repressões, é a mais atroz. Nada mais de alegre existe no sexo.
Os jovens são ou brutos ou desesperados, maus ou derrotados
...(3)


O sexo em Saló, ou os 120 Dias de Sodoma nada mais é do que uma representação desta situação: somos escravos de um sexo bruto e obrigatório. Além disso, a suposta tolerância sexual na sociedade de consumo também faz do sexo a metáfora do poder para aqueles que são subordinados a ele. É a comercialização (ou alienação) do homem, a redução do corpo a coisa através da exploração. Pasolini conclui: “o sexo é chamado a desempenhar em meu filme um papel metafórico horrível. Totalmente oposto ao da Triologia [da Vida] (se, nas sociedades repressivas, o sexo também era uma zombaria inocente em relação ao poder)” (4).

Pasolini tomou a República de Saló como símbolo desse poder que transforma homens em objetos. De acordo com Pasolini, o poder arcaico, tornado símbolo de todo poder, pode ser captado pela imaginação em todas as suas formas possíveis: como o poder anárquico. Como lembra Pasolini, “nunca o poder foi tão anárquico quanto durante a República de Saló” (5). Pasolini lembra também que o Marquês De Sade foi o grande poeta da anarquia do poder!

“No poder – em qualquer poder, legislativo e executivo – existe alguma coisa de animalesco. Em seus códigos e seus prazos, de fato, outra coisa não se faz que sancionar e atualizar a mais primordial e cega violência dos fortes contra os fracos: isto é, digamos ainda uma vez, dos desfrutadores contra os desfrutados. A anarquia dos desfrutados é desesperada, idílica, e sobretudo dobrada no vento, eternamente não realizada. Enquanto a anarquia do poder se concretiza com a máxima facilidade em artigos de códigos e nos prazos. Os poderosos de De Sade não fazem nada além de escrever Regulamentos e regularmente aplicá-los” (6)

Se a questão de Saló, ou os 120 Dias de Sodoma é esta, dá o que pensar o esforço de décadas para deixá-lo fora do alcance. Primeiro, o consumismo distorce sua mensagem em pornografia. Em seguida, mantém-se as proibições de sua circulação, o que ao mesmo tempo pode aumentar o interesse distorcido (objetivo do neocapitalismo) e manter o filme longe dos debates e análises que poderiam dar publicidade ao real objetivo de Pasolini.

Notas:

Leia também:

As Deusas de François Truffaut

1. NAZÁRIO, Luiz. Todos os Corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007. P. 115.
2. Decameron (Il Decameron, 1970), Os Contos de Canterbury (I Racconti di Canterbury, 1971), As Mil e Uma Noites (Il Fiore delle Mille e Una Notte, 1974).
3. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) Pier Paolo Pasolini per il Cinema. Milan: Mondadori, 2 vols. 2001. Vol. 2, p. 2064.
4. Idem, p. 2065.
5. Ibidem, p. 2066.
6. Ibidem.

15 de fev. de 2009

Pasolini e o Cinema de Poesia




“Provavelmente
,
 meus  filmes  não
 pertencem a esta
corrente   (...)”

Pier Paolo Pasolini




Mitos e Verdades

Em certos meios intelectuais, muito se fala a respeito de um “cinema de poesia” que Pier Paolo Pasolini identificou em alguns filmes da década de 60 do século passado. Em seu artigo, intitulado justamente Cinema de Poesia, ele defendeu a hipótese de que certo tipo de abordagem cinematográfica poderia ser compreendido a partir do mesmo ponto de vista lingüístico utilizado na distinção entre a prosa e a poesia. (imagem acima, Pasolini nas locações de O Evangelho Segundo São Mateus. De túnica branca, Enrique Irazoqui, que fez o papel de Jesus Cristo)

De acordo com Pasolini, no cinema é mais difícil distinguir entre “língua da prosa” e “língua da poesia” porque não sabemos com clareza qual é a “língua do cinema”. Ele não sabia dizer se existe uma correspondência entre palavra e imagem (planos, seqüências, etc.). Pasolini admitiu que a distinção que fez entre a prosa e a poesia no cinema era muito empírica e mais uma espécie de piada: a língua da poesia é aquela onde se sente a câmera, como na poesia se podem sentir imediatamente os elementos gramaticais de função poética; na língua da prosa, não sentimos a câmera, a presença do autor e seu estilo não são aparentes (1). (imagem abaixo, nas filmagens de Accattone vemos, da direita para a esquerda, o então assistente, Bernardo Bertolucci, Pasolini em seguida, se abaixando)


Pasolini admite que o naturalismo da língua da prosa leve ao limite a própria vocação naturalística do cinema: com uma só imagem, o cinema pode mostrar um rosto em detalhe. Na superação do naturalismo, a língua da poesia, que não é natural, inundaria a imagem com metáforas: construção de um vocabulário de comunicação através de imagens; inventar as próprias imagens. Entretanto, conclui Pasolini, “(...) isto depende em primeiro lugar dos poderes e da qualidade da metáfora e das abstrações do cineasta. Mas não acredito que nenhum filme tenha nunca ultrapassado este limite – nem mesmo o mais poético dos filmes” (2).


O Filme Dentro do Filme

Existem filmes da Nouvelle Vague que trazem dentro de si um segundo filme. Este segundo é aquele que o autor não pode ou não teve coragem de fazer. Por conta disso, ele utilizou o que Pasolini chamou de subjetiva livre indireta, que vem a ser a utilização do personagem para passar as suas próprias questões. O que não quer dizer que não existam filmes onde o autor conta a história em primeira pessoa. O estilo não consiste apenas em fazer de si o objeto da obra, mas em ver o mundo através de si mesmo, interiorizar o mundo. “É a razão pela qual não existiu nunca monólogo interior, discurso livre, individual e total, no cinema até hoje”.

À tentação de sugerir que Fellini tenha conseguido Pasolini rebate, dizendo que ali a interiorização é apenas um pretexto para tornar o espetáculo mais onírico, menos realista (3). É inevitável, sugeriu Pasolini, que no cinema de poesia a narração (o espetáculo) tenda a desaparecer. É claro que, no cinema de poesia, o autor escreva poesia. Poesia cinematográfica e não mais contos cinematográficos. O cinema de poesia tem como objetivo último escrever histórias onde, mais do que as coisas ou os fatos, o protagonista é o estilo.

O Cinema de Pasolini Era de Poesia?


Embora a referência ao “cinema de poesia de Pasolini” seja uma constante, quando escreveu seu artigo, caracterizando alguns filmes de sua época como cinema de poesia, ele não se incluiu como exemplo. Citava alguns filmes de Bernardo Bertolucci, Michelangelo Antonioni, Jean-Luc Godard, Milos Forman e Glauber Rocha. Numa entrevista em 1965, portanto ainda teríamos muitos filmes seus produzidos depois dessa afirmação, ele explica que,


“provavelmente, meus filmes não pertencem a esta corrente. Ou então só em parte: isso valeria exclusivamente para meu último filme, O Evangelho Segundo São Mateus [Il Vangelo Secondo Matteo, 1964]. Mas Accattone, Mamma Roma, A Ricota [imagem acima, à esquerda] foram feitos segundo a sintaxe clássica; aquela do cinema de Chaplin a Bergman, de Mizoguchi a Dreyer” (4)


No Evangelho Segundo São Mateus, observa Pasolini, podemos sentir muito a câmera, muitos zoom, falsas uniões intencionais. Mas, sobretudo, foi pensando neste filme que veio ao cineasta a idéia do discurso livre indireto. Pasolini tinha a seguinte questão em mente, não podia contar essa história como uma narração clássica porque ele era ateu. Não poderia narrar uma história na qual não acreditava. Pasolini revirou toda a sua técnica cinematográfica,



“(...) e assim nasceu esse magma estilístico que é próprio do ‘cinema de poesia’. Porque, para poder contar o Evangelho, tive de emergir na alma de um crente. Nisto consiste o discurso livre indireto: por um lado, a história é vista através dos meus olhos; por outro, é vista pelos olhos de um crente. É o uso deste discurso indireto livre que causa a contaminação estilística, o magma em questão” (5)


A variação entre preto e branco e colorido em A Ricota (La Ricotta, 1963) não quer dizer que existam dois filmes (imagem ao lado, Mamma Roma). Segundo o próprio Pasolini, trata-se apenas da técnica da citação ou colagem. No caso, trata-se de citação de dois pintores, Rosso Fiorentino e Pontormo, segundo o estado de alma a partir do qual o cineasta que aparece no filme (personagem de Orson Welles) representaria a Paixão de Cristo.



Pasolini pretendia criar uma polêmica com o excesso de bom gosto daqueles que dirigiam filmes bíblicos naquela época. Tudo é muito formal em A Ricota, reconstruções muito exatas e muito refinadas, exatamente o contrário do que Pasolini afirma ter feito em O Evangelho.


Accattone é um poema cinematográfico, admitiu Pasolini. Mas no sentido dos cânones clássicos e não enquanto cinema de poesia. Ele submergiu no mundo de Accattone, a ponto de receber críticas por não haver feito um juízo sobre esse mundo, por não haver se colocado suficientemente de fora e mostrar a relação entre uma universalidade marxista ou burguesa e a particularidade desse subproletariado. (ao lado, O Evangelho Segundo São Mateus)



Em A Ricota, ao contrário, Pasolini não se perdeu no personagem de Stracci, que é um personagem menos poético que Accattone. A crise que Accattone mostra remete a problemas da sociedade italiana e não a problemas do próprio Pasolini. Até Accattone, Pasolini só percebia os problemas sociais italianos imergindo na especificidade italiana. Com A Ricota, isso se tornou impossível. A sociedade italiana mudou, e Pasolini só conseguia ver a questão do subproletariado romano enquanto um fenômeno do Terceiro Mundo. Stracci não é mais um herói do subproletariado romano, como um problema especificamente italiano, mas como um herói símbolo do Terceiro Mundo. A Ricota fecha uma fase épico-lírica, no sentido de poema popular (6).


Pasolini disse que a grande dificuldade de O Evangelho Segundo São Mateus era precisamente de não demolir a história de Mateus. Foi necessário um equilíbrio entre o ponto de vista pessoal de Pasolini e aquele do crente, um equilíbrio entre duas narrações. Na cena em que Cristo caminha sobre as águas, a presença do crente é maciça (imagem ao lado). A presença de Pasolini é maciça nas cenas onde existem referências (citações) às pinturas de Piero della Francesca, Masaccio, Pollaiolo.



Se tudo fosse contado em primeira pessoa, as referências seriam colocadas em outro nível. Pasolini afirma que conseguiu fazer com que todas as referências se mantivessem sob o mesmo plano estilístico (imagem abaixo, a mãe de Pasolini no papel de Maria em O Evangelho Segundo São Mateus). Em 1967, portanto dois anos depois de Cinema de Poesia, publicado em Empirismo Herético (7), Pasolini comentou que seria idiota buscar os limites precisos e codificáveis entre certo cinema de prosa e certo cinema de poesia. Tomada isoladamente, essa afirmação chega a ser desconcertante, pois conhecemos o esforço que ele fez no artigo citado para conceituar o termo. Entretanto, para Pasolini, mais importante do que isso tudo é a realidade, ou melhor, a forma de remontá-la cinematograficamente: em que medida o tempo no cinema se aproxima ou se afasta do tempo da realidade?


Segundo Pasolini, “(...) o cinema está baseado, ao contrário, na abolição do tempo como continuidade, e, portanto, na sua transformação em realidade significativa e moral, sempre (mesmo nos filmes comerciais, nos quais naturalmente significação e moral estão degenerados)” (8). Pasolini uniu essa descontinuidade do tempo no cinema à poesia: “falando, porém, de cinema de poesia eu sempre entendi poesia narrativa. A diferença era de técnica: em lugar da técnica narrativa do romance, de Flaubert ou de Joyce, a técnica narrativa da poesia” (9).


Leia também:

Roma de Pasolini
Quando Fellini Sonhou com Pasolini
A Oréstia Africana de Pasolini
Fellini, Pasolini e a Dublagem 
Pasolini na Periferia da Lua
Pasolini, o Corvo Falante


Notas:

1. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) Pier Paolo Pasolini per il Cinema. Milan: Mondadori, 2 vols. 2001. Entrevista concedida ao Cahiers du Cinéma, nº 169, agosto de 1965. Vol. II, p. 2891.
2. Idem, p. 2893.
3. Ibidem, p. 2898.
4. Ibidem, p. 2899.
5. Ibidem.
6. Ibidem, p. 2902.
7. PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Eretico. Milão: Garzanti, 2000 [1972]. O artigo Cinema de Poesia, constante desta coletânea está datado de 1965.
8. PASOLINI, Pier Paolo. Os Sintagmas Vivos e os Poetas Mortos In Diálogo Com Pasolini. Escritos 1957-1984. Tradução Nordana Benetazzo. São Paulo: Nova Stella/Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1986. P. 110. Datando de 1967, este artigo também pode ser encontrado em Empirismo Eretico, sob o título I Segni Viventi e I Poeti Morti.
9. Idem, p. 112. A ênfase é minha.


10 de fev. de 2009

Fellini, Pasolini e a Dublagem


O Tabu: Toda Unanimidade é Burra

Foi o cineasta francês Jean-Luc Godard quem certa vez afirmou que o cinema italiano só conheceu o filme falado no final do século 20. Ele se referia ao filme mudo num sentido mais amplo. De modo geral, no mundo todo há questionamentos em relação à capacidade da dublagem cumprir sua tarefa sem destruir a obra cinematográfica na qual foi inserida (imagem ao lado, Dr. Catzone, de Cidade das Mulheres). Mas será que esse preciosismo não esconde um pedantismo intelectual que só beneficia os países dominantes e a disseminação da cultura deles pelo mundo?


Curiosamente, a impressão que se tem é de que as dublagens para a televisão no Brasil tendem a ser mais eficazes do que para o cinema. Curioso também é o tom de desaprovação das pessoas em relação às dublagens no cinema, enquanto há um silêncio quase que absoluto em relação às dublagens para a televisão. É interessante notar também como algumas pessoas batem o pé a favor de não haver dublagem para filmes cujos idiomas eles e elas nem compreendem. Porque não incluir nos extras do dvd uma pista dublada? Afinal de contas, porque alguém é analfabeto ou tem problemas de vista, não se pode supor que essa pessoa vá se desinteressar por cinema!

Coisas Que Um Cinéfilo Deveria Saber Sobre Fellini 

Em A Noite Americana (La Nuit Americaine, 1973) (imagem ao lado), realizado pelo cineasta francês François Truffaut, há um momento em que podemos assistir ao ensaio de uma cena do filme que está sendo realizado dentro desse filme. Depois de errar várias vezes o diálogo e tentar ler as falas em papéis colados no cenário, a atriz faz um comentário para o diretor (interpretado próprio Truffaut) sobre a época em que foi dirigida por Federico Fellini:


“Tive uma idéia, suponha que eu use números ao invés de falas. Eu costumava trabalhar assim com Fellini. Eu te mostro. Em vez de ‘algo está preocupando Alexander’ eu digo, ‘24, 56, 42, 6, 3, 11, 51, 7, 2, 33, 32, 31, 11, 3, 15, 10, 10, 4, 19...’”

Enquanto a atriz recita os números, que seriam cobertos posteriormente pela dublagem (onde poderia ler o texto ao invés de decorá-lo), vai se deslocando pelo cenário, reproduzindo os movimentos de sua personagem. Truffaut responde que é impossível, porque “neste país” (a França) temos que ter as falas dentro de suas respectivas cenas. Ele termina sua própria fala disparando: “Tente aprender sua fala para cada cena” (1). Nesta anedota que Truffaut inseriu em seu filme, podemos imaginar até onde pode chegar o debate em torno da dublagem e de sua abrangência no cinema italiano, na época ainda referência mundial de dar inveja a seus vizinhos franceses.


Eventualmente, Fellini introduzia uma falta de sincronia entre a voz e a boca. Um bom exemplo é o personagem do Dr. Catzone em Cidade das Mulheres (Città Delle Donne, 1980) (imagem ao lado). Segundo Fellini, foi sua opção dar tanta importância ao som quanto à imagem. No início da carreira era diferente, ele dava mais importância aos elementos narrativos. Só depois  aproximou-se mais da imagem, até ao ponto de chegar a renunciar às palavras durante a filmagem. O que não quer dizer que negligenciou os diálogos, pois foi no curso das dublagens que ele passou a dar-lhes mais importância.


Fellini acrescentou ainda que essa seja sua diferença em relação a Antonioni, o qual, para tudo exprimir através da imagem, insiste de maneira obsessiva e monótona em mostrar os objetos de cena. É por esta razão, afirmou Fellini, que sentiu necessidade de dar ao som a mesma importância da imagem, criando uma polifonia:

“E é por isso que, muitas vezes, eu sou contra a utilização do rosto e da voz do mesmo ator. O que importa é que o personagem tenha uma voz que lhe deixe ainda mais expressivo. Para mim, a dublagem é indispensável, é uma operação musical pela qual eu reforço a significação do figurativo. O som direto não me serve para quase nada: mesmo os ruídos da gravação direta são inúteis. Deste modo, em meus filmes, jamais se ouve os passos. São ruídos que o espectador acrescenta com seu ouvido mental, não há necessidade de sublinhá-los: eles podem até chegar a incomodar se os escutamos. Eis porque a faixa sonora é um trabalho que é preciso realizar a parte, depois de todo o resto, com a música” (2)

De fato, o próprio Roberto Rossellini, pai do Neo-Realismo, não parecia incomodar-se com essa prática, que era padrão no cinema italiano pelos menos entre 1945 e 1970. Seria de se esperar que alguém que privilegiava o realismo se questionasse sobre por que não utilizar o som direto. Entretanto, com a exceção de seu La Prise de Pouvoir par Luiz XIV (1966) (sem título em português), filmado na França, todos os seus filmes foram dublados, e quase sempre por vozes de outros atores que não aqueles que apareciam na tela (3).

Pasolini e a Obra de Arte

Questionado por dublar a voz da diva da ópera Maria Callas em seu único filme para o cinema, Pasolini teceu considerações a respeito da possibilidade técnica de colar a voz de outra pessoa (ou da mesma pessoa, em condições técnicas melhores) ao corpo de um ator ou atriz. O filme em questão é Medeia (1969) (imagem ao lado). Pasolini explicou que a cópia que foi levada para a França tinha dublagem da própria Callas, mas a cópia italiana teve que receber uma dublagem com a voz de outra pessoa. A questão é que o filme rodou por um circuito comercial de cinemas e não por cinematecas e salas especiais.


Isso quer dizer que o público fazia questão de ouvir seu próprio idioma. Só para lembrar, porque isso não é comum no Brasil, desde o final da guerra até meados da década de 80 do século 20 o cinema italiano era muito pujante, além do que a dublagem de filmes estrangeiros era uma constante. Quem assistiu a Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso, direção Giuseppe Tornatore, 1988), teve oportunidade de ver muitos astros do cinema norte-americano dublados em italiano.

Pois bem, Pasolini achou esse público italiano estranharia o sotaque estrangeiro de Callas. Então, conclui Pasolini, “entre os dois males eu escolhi o menor” (4). De uma forma ou de outra, Pasolini não vê relação entre o som direto (evitando a dublagem) e maior naturalidade de uma obra cinematográfica! De acordo com Pasolini, se o som direto torna atual certa realidade, isso ocorre num sentido puramente fisiológico que nos leva ao naturalismo. Em sua opinião, um filme é uma reconstrução completa do mundo, portanto ele não é natural. Além do mais Pasolini acha que a natureza também não é natural. Os personagens, afirma o cineasta, também não são naturais, mas composições, sínteses de uma experiência humana - exatamente como o próprio cinema.

Durante entrevista sobre o tema em 1970, Pasolini lembrou que países como a França, é viável a realização de um filme com som direto por possuírem unidade linguística. Mas na Itália da época isso só seria possível no sentido naturalista (artificial), com os sotaques regionais sendo jogados para segundo plano. Contudo, isso apenas constituiria uma realidade fisiológica, esse nível naturalista não pode eclipsar o nível da obra de arte (5).


Pasolini sugere imaginarmos alguém com boa aparência, mas ridículo como ator. Por razões históricas, o idioma italiano ainda não era uma língua nacional consolidada na época de Pasolini.

Sendo assim, o italiano “nacional” que as pessoas falavam era aprendido na escola, fazendo com que a fala das pessoas (e dos atores e atrizes) fosse fruto de uma impostação artificial – sem falar no caso de um ator estrangeiro atuando no meio de italianos. Pasolini dubla seus filmes por razões práticas e, conclui, “eu prefiro colocar uma outra voz, verdadeira”.

Noutro de seus filmes, Pocilga (Porcile, 1969) (imagem acima), Pasolini preferiu que a cópia que ia para a França fosse dublada em francês porque o filme é falado em poesia. Em principio, poderíamos dizer que o diálogo seria o mesmo se escrito nas legendas, mas Pasolini pensa diferente. Segundo ele, seria necessário que um francês dublasse para que o sentido do diálogo, algo que ultrapassa o próprio texto, pudesse ser transmitido. Infelizmente, lamentou Pasolini, o personagem de Jean-Pierre Léaud ficou sem sua voz, pois primeiro ele viajou e sumiu, e depois voltou doente. Por outro lado, se Pasolini fizesse um filme de entrevistas, como Comícios de Amor (Comizi D’amore, 1965) (imagem abaixo), ele admite que não se possa dublar. Neste caso, explica, a realidade coincide com o estilo, ao contrário do exemplo anterior.Mas isso não quer dizer que para Pasolini todas as dublagens são ótimas.


Uma dublagem ruim é uma dublagem ruim. Mas a questão da legenda talvez seja um problema maior ainda na concepção de Pasolini. Essa questão da legenda, que parece incomodar pouco aos detratores da dublagem, talvez mostre o desinteresse que talvez eles tenham pela imagem (preocupados que estão em ler as legendas ao invés de ver o filme; ou ver o filme é ler as legendas?). Vejamos a conclusão de Pasolini ao final da entrevista:



Mas não te incomoda ver um japonês e ouvi-lo falar em italiano? Entre os dois incômodos, sou menos incomodado escutando uma boa dublagem. Entendamos, uma dublagem ruim me incomoda sim, mas, em suma... Uma boa dublagem me incomoda menos do que as legendas, porque as legendas deturpam a imagem. Ora, eu, quando concebo uma imagem, escolho um enquadramento, estou ali meia hora atormentando o operador de câmera, recomendo: ‘Segure a imagem naquele ponto ali, ponha ela no lugar, assim’. Depois vejo uma legenda que a cobre toda. É uma coisa horrível, insuportável. Eu não suporto as legendas. Entre os dois males eu prefiro dizer: está bem, esta dublagem não corresponde à realidade... dou-me conta disto, e supero. No entanto, a legenda deturpa a imagem, não se pode fazer nada, muda o sentido da imagem” (6)


Leia também:

A Dublagem e o Cinema na Itália
As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto

Notas:

aviso: Texto revisado em janeiro de 2019, pequenas diferenças com o original de 2009 podem se verificar na construção de algumas frases ou parágrafos, mas não houve alteração de seu sentido ou da proposta do texto.

1. Não utilizei o texto das legendas em português, fiz uma tradução direta dos diálogos. Um dos problemas das legendas é a tendência a condensar a mensagem falada pelos personagens. Muitas vezes, infelizmente, essa redução acaba criando distorções absurdas no texto, que acaba perdendo o que Pasolini chamou de “sentido do diálogo”.
2. GRAZZINI, Giovanni. Fellini par Fellini. Entretiens Avec Giovanni Grazzini. Paris: Flammarion, 1984. Pp. 86-7. A ênfase é minha.
3. APRÀ, Adriano. Rossellini's Historical Encyclopedia In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey. Roberto Rossellini. Magician of the Real. London: British Film Institute, 2000. Pp. 139-40.
4. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) Pier Paolo Pasolini per il Cinema. Milan: Mondatori, 2 vols. 2001. Vol. 2, entrevista concedida em 1970. P. 2785.
5. Idem, p. 2787.
6. Ibidem, p. 2789. 


Sugestão de Leitura

As Mulheres de Federico Fellini (I)

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