Bernado Bertolucci
cineasta italiano
Federico Fellini inovou ao abordar em seus filmes o movimento liderado por Benito Mussolini, destacando-o daquele capitaneado por Adolf Hitler. Ao contrário de Roberto Rossellini e do neo-realismo em geral, Fellini não tratou da guerra em si, da catástrofe. Em vários de seus filmes, insere elementos que mostram a profunda imbricação entre as noções fascistas e a visão de mundo italiana. Para Fellini, a relação entre fascismo e cinema também está ligada ao caráter de espetáculo das aparições do primeiro. Mais uma das lições do regime italiano; embora o nazismo também tenha se destacado nesse particular, não podemos esquecer que o fascismo precedeu seu correlato alemão em 10 anos.
“Em Os Palhaços (1970), o chefe da estação apela para um oficial fascista, a fim de calar a bagunça dos colegiais. Evidenciam-se, então, na análise de Fellini, tanto a raiz doméstica, quanto o objetivo pedagógico do fascismo, como instrumento de dominação, adequado a uma população infantilizada” (1). Em Roma de Fellini (Roma, 1971), o diretor insere uma locução num jornal cinematográfico, onde o fascismo é apresentado como algo autenticamente italiano. Em Amarcord (1973), há um entrelaçamento inovador de temas tradicionais do cinema italiano como o Fascismo, o amor e a família (2). Na opinião de Fellini, viver durante a vigência de um Estado repressor fez com que as pessoas não desenvolvessem sua individualidade, apenas defeitos patológicos. O Fascismo seria uma degenerescência a nível histórico de uma fase (a adolescência) do desenvolvimento individual. Ainda segundo o diretor, não podemos lutar contra essa infantilização fascista se não a identificamos com nosso eu ignorante, miúdo e impulsivo. Os personagens de Amarcord são psicológico e emocionalmente fascistas: ignorantes, violentos, exibicionistas. Examinados individualmente, exibem apenas...
“Manias, tiques inócuos: ainda assim, é o suficiente para os personagens se reunirem para uma ocasião como essa [a visita do federale], e lá, de excentricidades aparentemente inofensivas, suas manias adquirem um significado completamente diferente. A reunião de 21 de abril, assim como a passagem do Rex [o navio de Mussolini], a queima da grande fogueira no início [do filme], e assim por diante, são sempre ocasiões de total estupidez. O pretexto de estar junto é sempre um processo de nivelamento... É apenas o ritual que os mantêm juntos. Uma vez que nenhum personagem possui um senso real de responsabilidade individual, ou têm apenas belos sonhos, ninguém tem força para não tomar parte no ritual, permanecer em casa fora dele.”(...)”A província de Amarcord é aonde somos todos reconhecíveis, o diretor antes de tudo, na ignorância que nos confunde. Uma grande ignorância e uma grande confusão. Não que eu queira minimizar as causas econômicas e sociais do Fascismo. Eu apenas quero dizer que hoje o que ainda é mais interessante é a forma psicológica, emocional de ser um Fascista... É uma espécie de bloqueio, um desenvolvimento suspenso durante a fase da adolescência... A Itália, mentalmente, ainda é a mesma. Para dizer de outro modo, eu tenho a impressão de que Fascismo e adolescência continuam a ser, em certa medida, fases permanentes de nossas vidas: adolescência de nossas vidas individuais, Fascismo de nossa vida nacional” (3)
Diferentemente de outros diretores italianos que trataram do Fascismo, Fellini adotou o ponto de vista cômico. Já foi observado que inicia seus filmes como testemunha de acusação e termina como testemunha de defesa, tratando o passado de forma nostálgica. O sucesso alcançado por Amarcord na Itália sugere uma identificação com essa forma de tratamento do tema. Os italianos identificaram a si próprios no único passado que eles e Fellini tiveram – a Itália de Mussolini era um país muito fechado para o mundo. “Por esse motivo, eram condenados a recordar esse passado com uma mistura de remorso e nostalgia, mas não conseguiam mudá-lo”. (4)
Fellini definiu a visita do fascista (federale) como a sequência crucial em Amarcord. Ao contrário do que possa parecer aos que não conhecem os detalhes, a sátira não é apenas um exagero do estilo fascista personificado em Mussolini. Na verdade, Fellini se concentrou na figura do fascista de carteirinha Achille Starace (1889-1945), o verdadeiro autor das coreografias de massa e comportamentos estapafúrdios que caracterizavam as aparições públicas dos líderes fascistas. A cena em que o federale corre pela cidade (e todos o seguem) era típica do comportamento oficial – acreditavam que isso evidenciava sua juventude, vitalidade e disciplina. Starace insistia em utilizar a saudação típica do antigo Império Romano. O passo de ganso germânico também era uma preferência, que ele identificava como o “passo Romano”. Ele frequentemente pulava sobre baionetas e cavalos para demonstrar sua força física e nunca andava a cavalo, sempre trotava (5). Quem já viu cenas de documentários sobre a Segunda Guerra Mundial deve ter reparado uma ou duas cenas onde Mussolini aparece sem camisa, com uma pá na mão cavando buracos; às vezes uma picareta – enquanto Hitler está sempre debaixo de um uniforme.
Segundo Fellini, o Fascismo era capaz de pegar pessoas perfeitamente normais na juventude e fazê-las se comportar de forma imprevisível e perigosa. Ele sempre se refere a “um estado regressivo adolescente”, não apenas em relação ao comportamento das massas, mas também em relação à repressão sexual. O Fascismo só tolerava o sexo no casamento ou com prostitutas – os bordéis eram regulados pelo Estado. Masturbação e homossexualismo não eram tolerados. A culpa acompanha o sexo na vida de Amarcord. Gradisca (imagem no início do artigo), o objeto de desejo de todos os homens da cidade, deixa clara a conexão entre uma moral sexual reprimida e o Regime Fascista, quando vai ao êxtase com a simples visão do federale desfilando aos trotes através da multidão. A vadia Volpina (imagem abaixo), a ninfomaníaca da cidade, vive solta pelas ruas. Fácil demais para os homens, talvez por isso a desprezem. No fim, talvez ela seja a única personagem que é de todos e de ninguém.
Fellini mostra, em Roma de Fellini e Amarcord, como o fascismo, substituindo os pais na tarefa doméstica de criação dos filhos, impõe um adestramento das crianças. Decorrente dessa situação é a própria infantilização dos adultos. O Nazismo parece ter aprendido a lição, não esqueçamos da Juventude Hitlerista. No Nazismo, produziam-se filmes com o intuito específico de desqualificar a autoridade paterna e materna, indicando o Partido como o melhor educador e Hitler como único pai. Nas palavras de Fellini, “ainda hoje, o que mais me interessa é a maneira psicológica, emotiva de ser fascista: uma forma de bloqueio, algo como ficar preso à adolescência…” (6).
“Sobre os laços recíprocos do fascismo e da cultura italiana, diz Fellini: ‘O fascismo fez parte de minha paisagem, desde cedo. Com todas as demais imposições, o pai, a mãe e o padre, que era também o hierarca [autoridade eclesiástica]. Por outro lado, naquela província romanhola [a região onde Fellini nasceu], um pouco estúpida e obscura, quem poderia imaginar que se pudesse viver de outro modo? (…) Não havia como imaginar que Nenni estivesse no exílio, e Gramsci, na prisão. Em cima da cátedra [a cadeira do mestre] estava essa espécie de espantalho, com a caçarola na cabeça [Mussolini de capacete]; do outro lado, o Rei, com um penacho de plumas, no meio, o Papa, e abaixo, pequeno, pequeno, o crucifixo. Esta era toda a realidade. Política e metafísica”. (7)
Leia também:
Mussolini, o Cipião Africano
Federico Fellini e sua Biografia: Mitos e Verdades
Fellini e os Trapaceiros do Crucifixo
As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz
Notas:
1. MARTINS, Luiz Renato. Conflito e Interpretação em Fellini. São Paulo: Edusp, 1993. P. 71.
2. Idem, p. 68.
3. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. P. 128.
4. Idem, p. 130.
5. Ibidem.
6. MARTINS, Luiz Renato Op. Cit., p. 71, n.39.
7. Ibidem, p. 70, n.38.
“Sobre os laços recíprocos do fascismo e da cultura italiana, diz Fellini: ‘O fascismo fez parte de minha paisagem, desde cedo. Com todas as demais imposições, o pai, a mãe e o padre, que era também o hierarca [autoridade eclesiástica]. Por outro lado, naquela província romanhola [a região onde Fellini nasceu], um pouco estúpida e obscura, quem poderia imaginar que se pudesse viver de outro modo? (…) Não havia como imaginar que Nenni estivesse no exílio, e Gramsci, na prisão. Em cima da cátedra [a cadeira do mestre] estava essa espécie de espantalho, com a caçarola na cabeça [Mussolini de capacete]; do outro lado, o Rei, com um penacho de plumas, no meio, o Papa, e abaixo, pequeno, pequeno, o crucifixo. Esta era toda a realidade. Política e metafísica”. (7)
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Notas:
1. MARTINS, Luiz Renato. Conflito e Interpretação em Fellini. São Paulo: Edusp, 1993. P. 71.
2. Idem, p. 68.
3. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. P. 128.
4. Idem, p. 130.
5. Ibidem.
6. MARTINS, Luiz Renato Op. Cit., p. 71, n.39.
7. Ibidem, p. 70, n.38.