Nos olhos sem cor do busto de Athos pai, a persistência do tema da
cegueira e as suas conotações edipianas (1). O herói e o traidor
como figuras especulares de um jogo entre realidade e aparência (2)
cegueira e as suas conotações edipianas (1). O herói e o traidor
como figuras especulares de um jogo entre realidade e aparência (2)
Presença Surreal
Athos Magnani Junior é filho de Athos Magnani, líder antifascista assassinado em 1936 durante o reinado do Fascismo na Itália do tempo de Mussolini. Junior chega à Tara, cidade desconhecida para ele, onde tudo aconteceu e onde seu pai é cultuado como herói. Trinta anos depois, o filho foi chamado por Draifa, amante de seu pai, mulher misteriosa que gostaria que descobrisse a identidade do assassino. O filho é a cara do pai, que ele busca reconstituir na memória. Uma espécie de presença na ausência – da mãe Athos nunca fala, apenas Draifa se refere a ela algumas vezes. Outra ausência é o próprio Athos filho, cuja identidade também procura reconstituir através de memórias. Draifa mostra a ele uma carta de aviso que o pai recebeu com a profecia de uma cigana, ao que o antifascista comentou: “como Julio César, como Macbeth”. Athos se aproxima de Rasori, Costa e Gaibazzi, amigos de seu pai e com quem descobre que estavam conspirando para matar Mussolini. Mas o plano foi descoberto através de um traidor, levando à morte de Athos pai por um líder fascista local. Contudo, por mais que o filho investigue, será tomado pela dúvida. Até descobrir que o traidor foi seu pai, que pediu para que seus amigos o matassem porque a cidade precisava de um mártir “oficialmente” morto pelos fascistas.
A partir de A Estratégia da Aranha e O Conformista Bertolucci
assimila novas fontes iconográficas e literárias, de Borges à Magritte,
de Edward Hopper à Giorgio De Chirico e naïfs da Emilia-Romagna,
como Antonio Ligabue, cuja obra preenche os créditos iniciais (3)
assimila novas fontes iconográficas e literárias, de Borges à Magritte,
de Edward Hopper à Giorgio De Chirico e naïfs da Emilia-Romagna,
como Antonio Ligabue, cuja obra preenche os créditos iniciais (3)
A Estratégia da Aranha (Strategia del Ragno, 1970) foi primeiro trabalho de qualidade cinematográfica produzido pela RAI para a televisão italiana, o que por si só denota o interesse do cineasta italiano Bernardo Bertolucci em se comunicar mais diretamente com o público. O tratamento psicanalítico freudiano pelo qual Bernardo Bertolucci estava passando naquele momento se faz sentir no interesse do próprio personagem: reviver criticamente seu passado. Autobiografia e a autoanálise tornam-se um interesse básico de Bertolucci justamente a partir deste filme, realizado durante os meses iniciais de sua busca de compreensão da própria existência e da relação com o pai. Entretanto, o cineasta explica que as figuras paternas em seus filmes podem ser intercambiadas com uma relação mais geral entre pais sociais e culturais – respectivamente, no caso de Bertolucci, seu pai Attilio e Pier Paolo Pasolini (4), sem esquecer-se da influência de Jean-Luc Godard. Bertolucci parece sentir-se realmente muito confortável nesta nova posição diante do público e de si mesmo:
“[A Estratégia da Aranha] é o primeiro filme em que eu superei certos conflitos internos. Pela primeira vez aceitei um diálogo com o público. Ele foi realizado num estado de total serenidade e acho que isso pode ser sentido. Existia, naquele verão, uma estranha conexão de luzes, cores, temperatura lambrusco [vinho da Emilia-Romagna], salsichas, tudo no labirinto geométrico das ruas de Sabbioneta” (5)
As muitas referências surrealistas em A Estratégia da Aranha
indicam que as várias vezes em que Athos é mostrado de costas,
o modelo pode ser A Reprodução Proibida, René Magritte, 1937
indicam que as várias vezes em que Athos é mostrado de costas,
o modelo pode ser A Reprodução Proibida, René Magritte, 1937
Neste contexto, o cineasta reelabora um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges, O Tema do Traidor e do Herói (publicado em Ficções, 1944), em torno da ambiguidade da identidade da figura do herói. O texto de Borges se passa na Irlanda, Bertolucci o transportou para o interior do norte da Itália, povoando sua versão com o que Claretta Micheletti Tonetti chamou de personagens fofinhos e tolos que mantém uma visão de mundo brincalhona em relação à realidade (6). Na segunda metade da década de 1970, Bertolucci foi um dos poucos cineastas italianos competitivos internacionalmente. No início dos anos 1980, apenas um punhado de seus colegas era capaz como ele de contar histórias compreensíveis para um público mais amplo do que aquele que conhecia a cultura Italiana e saberia interpretar dialetos e costumes do interior do país (7). Tudo isso será apresentado em meio a pitadas surrealistas:
“(...) Vemos o close-up na nuca de Athos (cópia de A Reprodução Proibida, de René Magritte, 1937), a arrumação da mesa de Draifa, a natureza morta no cenário pastoral das paredes pintadas, a cena do bar iluminada por lâmpadas amarelo-esverdeadas a la Van Gogh, a mesa com melancia no centro do pátio azul. Athos caminha por essas cenas como se através dos corredores das pinturas de Giorgio De Chirico, com suas arcadas vazias, sugestões de tempo indefinido, e sinais enigmáticos. Em Tara, segmentos de conversações, vindo de pessoas desconhecidas, substituindo as sombras misteriosas do pintor. O trem, silhueta frequente na obra de De Chirico, traz Athos para um lugar de direções indefinidas. ‘Direita depois esquerda, não, esquerda depois direita’, os idosos respondem [discutindo] quando Athos pergunta por um hotel [logo no início do filme]. Enquanto isso, uma voz de velho canta algo sobre uma garotinha levada para dançar por seu pai, uma interpretação vocal da garota brincando na rua vazia em Mistério e Melancolia de uma Rua, De Chirico, 1914 (...)” (8)
Heroísmo, Traição, Conformismo: Cinema
Como construir imagem cinematográfica afirmativa de seus heróis
sem reproduzir o cinema de propaganda dos antigos inimigos? Como escapar da ambiguidade do ser humano sem mergulhar no clichê?
sem reproduzir o cinema de propaganda dos antigos inimigos? Como escapar da ambiguidade do ser humano sem mergulhar no clichê?
Maurizio Fantoni Minnella se refere a uma invenção cinematográfica da história da resistência antifascista militante (guerrilha) durante a Segunda Guerra, a qual se convencionou chamar de “Resistência”, e que seguiu em dois percursos paralelos. O primeiro refletindo a necessidade de perpetuar a tradição do antifascismo e a memória histórica daqueles capazes de transmitir os conhecimentos às gerações futuras, constituindo também uma espécie de repertório fílmico da história da Itália. O segundo percurso se refere ao potencial narrativo da história da guerrilha e da “aventura fascista” que não termina com a derrota no final da guerra, apresentando consequências ambíguas nem sempre facilmente decifráveis e juízo moral, como se pode ver em O Corcunda de Roma (Il Gobbo, direção Carlo Lizzani, 1960) ou Gangsters (direção Massimo Guglielmi, 1992). Em 1900 (Novecento, 1976), à utopia comunista de um mundo sem patrões, Bertolucci contrapõe a sequência final, simbolizando o eterno conflito entre patrões e empregados como uma constante da sociedade capitalista. História como melodrama e melodrama como cinema, seria esta a resposta do cineasta às interrogações que atravessaram e atormentaram o século passado. Minnella destaca a sequência do funeral dos velhos queimados vivos pelos fascistas, com o camponês Olmo e a professora na frente do cortejo chamando o povo para tomar uma atitude, em sua opinião um dos grandes momentos do cinema político italiano (9).
“(...) Bernardo Bertolucci sempre foi fascinado pela interação entre história e ideologia. Já em A Estratégia da Aranha, retrata os fundamentos do movimento da Resistência italiana como uma ficção conscientemente orquestrada, empregada pela esquerda para dramatizar para as massas sua interpretação antifascista da história italiana (...)” (10)
Em A Estratégia da Aranha e O Conformista, Bertolucci
nos apresenta dois exemplos inesquecíveis de traidores
nos apresenta dois exemplos inesquecíveis de traidores
A figura do rebelde (no caso, o guerrilheiro antifascista) imposta pelo armistício (a rendição dos fascistas aos aliados), explica Minnella, é comparável aquela do traidor, embora respondam a duas morais distintas. Geralmente, os rebeldes sabem que são os vencedores, e, portanto, agem de acordo com a consciência de sua própria finalidade. Contudo, insiste Minnella, o fator ação-aventura, essencial no cinema, detona de um mal estar, um estado de inquietude e incompletude que deverá ser canalizado de outra maneira. Bertolucci propõe uma saída para o impasse em A Estratégia da Aranha e O Conformista (Il Conformista, 1970). No primeiro, um homem é aprisionado na teia da memória, no imaginário heroico e antifascista paterno que descobre traição. Ele mesmo será induzido a trair a verdade em nome da memória heroica do pai. Labirinto entre verdade e ilusão, o filme apresenta um herói que é também traidor. No segundo filme, a traição se confunde conformismo, com o desejo de ser como os outros, de ficar do lado dos mais fortes, dos vencedores (nesse caso, os fascistas no poder). Para o protagonista, denunciar seu professor como antifascista, assistir sua condenação à morte, significa restabelecer seu próprio papel na sociedade, escolhendo a parte do poder onde ocultar suas próprias fraquezas. Traição como redenção da necessidade de normalidade, concluiu Minnella.
Draifa e o Feminino em Bertolucci
No início dos anos 1970, enquanto os filmes de Fellini são cada
vez mais marcados pela percepção da mortalidade, da finitude,
Bertolucci surge como uma nova estrela da modernidade (11)
vez mais marcados pela percepção da mortalidade, da finitude,
Bertolucci surge como uma nova estrela da modernidade (11)
“Igual, igual, igual”, exclama espantado mais um dos tantos velhos da cidade que conheceu Athos pai ao se deparar com Athos Junior. Ele é a cara do pai que busca resgatar na memória, espécie de presença na ausência. À mãe Athos nunca se refere, é Draifa fala a ela algumas vezes. Outra ausência é o próprio Athos, cuja identidade também busca reconstituir através da memória do passado. Sua primeira visita à Draifa não ajuda muito para minorar a indefinição. Athos caminha pelo vasto jardim quando ela aparece subitamente, hesitante, de costas para ele Draifa caminha como se não o tivesse visto. Apenas quando ele a alcança no interior da casa a câmera de Bertolucci mostra seus rostos aparecem em close, embora continue focada em elementos do pano de fundo. Para Tonetti, essa oscilação da câmera entre múltiplos campos visuais representa bem as muitas camadas de verdades que confrontarão Athos. Neste primeiro diálogo, que parece mais a coexistência de dois monólogos, Draifa nunca responde as perguntas dele. Athos olha para o retrato de seu pai na parede e quer saber o motivo porque foi chamado e observa que partirá em uma hora. Finalmente ela diz que o pai dele foi morto por alguém da cidade e pergunta se ele vai encontrar o culpado. Para convencê-lo a ficar, Draifa dá mais detalhes a respeito das circunstâncias da morte. Como uma carta de aviso (de que seria morto no teatro de ópera) que Athos pai recebeu e a profecia de uma cigana que leu sua mão e previu sua morte: “como Julio César, antes de entrar no Senado”... “Macbeth. A bruxa da profecia”, Athos filho comentou (12).
Filmado na cidade de Sabbioneta, Bertolucci mudou o nome dela
para Tara, uma referência à fazenda de ...E o Vento Levou (1939) (13)
para Tara, uma referência à fazenda de ...E o Vento Levou (1939) (13)
“Amante oficial” de Athos pai, como chama a si mesma, Draifa tem um papel central no filme. Durante entrevista na década de 1970, Bertolucci falou da estratégia da aranha na natureza e de como o macho deve ter cuidado na hora de acasalar com a fêmea, que geralmente devorado a seguir. Por outro lado, é fato que a influência de Draifa na vida do pai de Athos parece mínimo. Não apenas ele não abandona a esposa, mas também não responde a pergunta de Draifa – “eu sou melhor do que sua esposa?”. Para Tonetti, Draifa possui poderes mágicos. Quando Athos está com ela, a sequência do tempo se perde e o sono repentino captura pessoas em episódios de sonho; numa manhã abafada ela impede a entrada dele em sua casa arejada; sem cerimônia Draifa o manda procurar uma cadeira no jardim para sentar-se, despedindo-se dele várias vezes – uma garotinha (que também se repete muito) vem oferecer uma bebida oferecida por Draifa; Athos cai no sono até à noite.
“[A] mágica está operando e não segue as regras da linguagem, que é lógica operando; a mágica não pode ser racionalizada. Draifa governa aqui, repetindo, se despedindo, dando poções para dormir e quebrando as regras da linguagem. De fato, existe algo primitivo em Draifa, um indefinível padrão de comportamento de classe que não pode ser inserido na estrutura social. Ela vive numa bela casa, veste-se elegantemente, e ainda assim anda descalça como uma camponesa e suas maneiras à mesa não possuem o refinamento sugerindo pelo entorno. Quando Athos reconhece as coincidências entre a morte de seu pai e as circunstâncias da morte de César e Macbeth, Draifa comenta: ‘você deve ter estudado muito’, [...]. Feiticeiros em fábulas não tem origem. Ao contrário de [...] reis, eles são aquilo que fazem, e fazem mágicas. Nós não sabemos de onde vêm, eles simplesmente são. E a assim é Draifa, que, novamente, não é muito eficaz. Sua façanha foi o jantar que organizou para Gaibazzi, Rasori, Costa, Athos e o fascista Beccaccia, que ninguém esperava que pudesse estar na casa dela, sendo insultado pelos outros três enquanto Athos observa. De fato, Beccaccia parece ter sido levado para lá. No final da refeição Draifa, que não participou, aparece duas vezes; uma vez de pé diante da mesa, a segunda sentada sozinha. Nas duas vezes a mesa aparece numa luz azul com copos de cristal brilhantes, ainda meio cheios, enquanto no meio bate uma lâmpada redonda. Draifa olha para suas poções e sua bola de cristal. Isso é tudo que ela foi capaz de fazer; a sequência de tempo volta ao normal, Beccaccia desapareceu, e Athos, ela sabe, logo sairá também” (14)
Chamado no Brasil de O Último pôr do Sol, The Last Summer (1961)
virou cult na Itália como L'occhio Caldo del Cielo. Talvez Bertolucci
o tenha citado pelos elementos freudianos e de tragédia grega (15)
virou cult na Itália como L'occhio Caldo del Cielo. Talvez Bertolucci
o tenha citado pelos elementos freudianos e de tragédia grega (15)
A opinião feminista de Marga Cottino-Jones segue noutra direção. Bertolucci seria um dos mais inovadores cineastas italianos especialmente naquilo que se refere à construção dos papeis femininos em seus filmes. Característica que ela particularmente bem sucedida em filmes como A Estratégia da Aranha, O Conformista e 1900, onde o período fascista (ventennio fascista) constitui o pano de fundo do enredo. Como sabemos Athos pai não abandona sua esposa para viver com Draifa. Ocorre que justamente nesse momento a esposa estava grávida de Athos Junior. Draifa não queria compartilhar seu amante com mãe do filho dele e decide partir. Na noite em que ele foi morto, ela estava longe de Tara. Contudo, sua ausência parece ter sido ditada por outra razão além da atitude hipócrita de Athos pai. Cottino-Jones observa que Draifa pode ser vista durante um flashback parcial onde ela acusa Athos de covardia e traição. Como esse aparece antes do flashback em que Athos confessa sua traição aos três amigos, e a seguir expõe sua tese da criação de um mártir antifascista, Cottino-Jones acredita que o deixou por outro motivo: desapontamento por descobrir a duplicidade ideológica dele. Para a pesquisadora, foi a honestidade e coerência ideológica de Draifa que a levou sem hesitar a abandonar Athos Sênior, apesar do amor que sentia por ele. Ainda segundo Cottino-Jones seja, por exemplo, Giulietta em Julieta dos Espíritos (Giulietta degli Spirit, direção Federico Fellini, 1963), Giuliana em O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, direção Michelangelo Antonioni, 1964) ou Sophie em Os Deuses Malditos (La Caduta degli Dei, direção Luchino Visconti, 1969), das várias mulheres “resistentes” que surgiram no cinema italiano de arte dos anos 1960, nenhuma alcançou o nível de Draifa (16).
“Como outras heroínas de Bertolucci, Draifa define a si mesma em termos de comprometimento político ao invés de dependência emocional. Ela nos fornece um dos melhores exemplos de feminilidade autossuficiente nos filmes italianos até os anos 1960. Seu comprometimento político parece incluir os melhores valores que podem formar a consciência de homens e mulheres, tais como honestidade, altruísmo, coragem, fortaleza, autoconfiança e indiferença ao ganho financeiro. Em especial nos anos 1960, quando prevalecia materialismo, arrogância, hedonismo e exibicionismo, o retrato de Draifa propõe visão revigorante e esperançosa da humanidade formulada em termos femininos” (17)
Passado Pressente Passado Presente
Em A Estratégia da Aranha, Bertolucci soma elementos
do melodrama operístico de Giuseppe Verdi com um enredo
freudiano – combinação que repetirá em La Luna (1979) (18)
do melodrama operístico de Giuseppe Verdi com um enredo
freudiano – combinação que repetirá em La Luna (1979) (18)
Bertolucci começa sua carreira no cinema como assistente de Pasolini, mas rapidamente seu trabalho se distancia do mestre para incorporar uma compreensão mais ortodoxa da psicanálise e da teoria marxista do que ele, assim como uma leitura bastante excêntrica de Freud, Jung, Marx e Gramsci. Contudo, sua trajetória se iguala à de Pasolini no sentido de que ambos se distanciaram dos filmes dirigidos apenas a uma plateia pequena e de elite, como o godardiano Partner (1968), em direção a trabalhos mais acessíveis (comerciais) realizados para televisão. Relações tempestuosas entre pais e filhos, tema nitidamente psicanalítico, estão diretamente relacionados ao enredo de alguns de seus filmes mais famosos, de A Estratégia da Aranha a O Conformista, Último Tango em Paris (Último tango a Parigi, 1972), 1900 e O Último Imperador (The Last Emperor, 1987) - a mudança de foco do protagonista masculino para o feminino será abandonado a partir de Beleza Roubada (Stealing Beauty, 1996). Para Peter Bondanella, o conflito fica evidente logo no início, quando Athos Junior cruza com o busto em homenagem ao pai: primeiro é o filho que encobre a estátua, então se cruzam lado a lado e a seguir é o pai que encobre o filho, prefigurando o aprisionamento do segundo na teia armada do primeiro. Aqui, concluiu Bondanella, Freud supera Marx. Nos olhos sem cor do busto de Athos pai, a persistência do tema da cegueira e suas conotações edipianas, que retornarão em O Conformista (19).
“A mudança de percepção no filho em relação ao pai possui, nas próprias palavras de Bertolucci, uma reverberação política: na Estratégia da Aranha a relação entre Athos Junior e Athos Sênior é similar ao que eu imagino entre [Enrico] Berlinguer e [Palmiro] Togliatti [líderes do Partido Comunista Italiano]: o filho que descobre a traição do pai heroico é Berlinguer descobrindo o stalinismo de Togliatti. Mas ambos, traição e stalinismo, eram historicamente necessários (mas isso é verdade?). Mas isso é verdade as palavras de Bertolucci se tornam as de Athos, e sua raiva o levam a profanar a sepultura do pai. [...] Ele suspeita da traição do pai, mas procura não enxergar (nesse caso, os olhos vazios no busto de Athos Sênior pode ser a imagem refletida dos olhos do filho, que não quer reconhecer fatos vindo à tona). [...] Athos também sabe – talvez soubesse inconscientemente todo o tempo – que a alma de seu pai era a alma de uma traidor, o que poderia explicar porque ele nunca visitou Tara antes” (20)
A interação entre história e ideologia fascina Bernardo Bertolucci
Bondanella mostra como uma serie de repetições dramatizam a repetição do passado no presente: vários flashbacks de 1936 empregam os mesmos atores e locações no presente sem mudança de roupas, e são tão repentinos que obscurecem a cronologia. Quando Athos Junior acompanha os amigos do pai até o barraco onde planejaram o assassinato de Mussolini, ele se assusta e foge. Bertolucci vai e volta com imagens do passado e do presente, como já havia feito em Antes da Revolução (Prima della Rivoluzione, 1964): a figura que corre (sua identidade confundida por flashbacks constantes) é filmada por uma câmera veloz, configurando o que Bondanella considerou uma brilhante evocação visual da incapacidade do protagonista em escapar não apenas da influência de seu pai, mas também da câmera obsessiva de Bertolucci. Ainda de acordo com Bondanella, a noção de espetáculo político em Partner encontra sua expressão estética perfeita em A Estratégia da Aranha. O filho descobre que o traidor é seu próprio pai, que então colaborou com seus companheiros para produzir um mito antifascista como numa ópera, já que os fascistas levam a culpa por seu assassinato. Então Athos pai morre num drama onde a cidade de Sabbioneta (chamada Tara no filme, uma referência a ...E o Vento Levou) se torna um teatro influenciado por referências ao melodrama de Verdi e a tragédia de Shakespeare. A cidade se transforma num local mítico na mente, e o filho descobre a verdade a respeito de seu pai no exato local do teatro de ópera onde foi assassinado – durante Maledizione, uma ária de Rigoletto, a ópera de Verdi – assistindo ao mesmo espetáculo. Como disse Gaibazzi para Athos citando seu pai, a verdade não interessa em nada, apenas suas consequências.
“(...) Mas a verdade não o liberta. Pelo contrário, o aprisiona numa teia mítica que, como uma aranha, seu pai criou. Quando Athos Junior deixa Tara de trem (que nunca chega), ele repara que os trilhos estão cheios de mato. O pai e o passado triunfaram sobre o filho e o presente. Athos pai continua um enigma para seu filho aprisionado: nunca estará totalmente claro se traiu seus companheiros por covardia, ou abraçou seu martírio conscientemente, elaborando o espetáculo melodramático resultando em sua morte para criar um mito antifascista duradouro. A Estratégia da Aranha é um exemplo quase perfeito da sublimação das neuroses de um artista através de uma obra de arte brilhante” (21)
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Notas:
1. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008. P. 299.
2. MINNELLA, Maurizio Fantoni. Non Riconciliati: política e società nel cinema italiano dal neorealismo a oggi. Torino: UTET Libreria, 2004. P. 225.
3. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A Guide to Italian Film from its Origins to the Twenty-First Century. Princeton, EUA: Princeton University Press, 2009. P. 240.
4. PRONO, Franco. Bernardo Bertolucci. Il Conformista. Torino: Lindau, 1998. Pp. 10, 66.
5. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The Cinema of Ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 78.
6. Idem, p. 78.
7. BRUNETTA, G. P. Op. Cit., p. 259.
8. TONETTI, C. M. Op. Cit., p. 80.
9. MINNELLA, M. F. Op. Cit., pp. 15-6.
10. BONDANELLA, P. Op. Cit., p. 404.
11. BRUNETTA, G. P. Op. Cit., p. 259.
12. TONETTI, C. M. Op. Cit., pp. 82-5.
13. BONDANELLA, P. Op. Cit., p. 300.
14. TONETTI, C. M. Op. Cit., pp. 85-6.
15. FRAYLING, Christopher. Spaghetti Westerns. Cowboys and Europeans from Karl May to Sergio Leone. London/New York: I. B. Tauris, 2ª ed., 2006. P. 153.
16. COTTINO-JONES, Marga. Women, Desire, and Power in Italian Cinema. New York: Palgrave MacMillan, 2010. Pp. 125-6, 130.
17. Idem, p. 126.
18. BONDANELLA, P. Op. Cit., p. 315.
19. Idem, pp. 296, 298-300, 433.
20. TONETTI, C. M. Op. Cit., p. 90.
21. BONDANELLA, P. Op. Cit., p. 300-1.