“Vivemos duas vidas
– uma com os olhos abertos
e uma com eles fechados. Olhos
abertos são para perceber o universo
exterior. Olhos fechados são para explorar
o cosmos interior. Passo o dia todo de
olhos fechados esbarrando em pessoas
e coisas. É por isso que
não dirijo mais”
Federico Fellini
I’m A Born Liar, A Fellini Lexicon, p.153
A Mulher-Árvore e a Mulher-Luz
Certa vez Fellini fez uma caricatura de si mesmo, dormia aos pés de uma grande árvore com grandes e carnudos seios. Uma Mulher-Árvore que propiciava abrigo da tempestade, da ansiedade e da culpa. Ele adaptou a idéia a partir do Homem-Árvore de Hieronymous Bosch que ele havia visto em livros de arte na infância (imagem abaixo). O tronco aberto do Homem-Árvore continha uma mesa redonda onde um casal bebia e celebrava. Este Homem-Árvore é, na opinião de Fellini, a fonte da casa da árvore de Susy, em Julieta Dos Espíritos (Giulietta Degli Spirit, 1965) (imagem ao lado). Infelizmente, Fellini não tinha dinheiro no orçamento do filme para fazer uma cabeça gigante. Todavia, completa o cineasta, a criação de Bosch é uma esplendida metáfora cinemática: “Ela incorpora minha idéia de um diretor levando atores e cenário para dentro de seu próprio corpo, o qual é por sua vez contido no interior do corpo de seu filme” (1).
“(...) Eu dirigi A Voz da Lua (La Voce della Luna, 1990) escrevendo a seqüência de cada dia na noite anterior[...].Certa vez, [...]Roberto Benigni não conseguia captar o sentimento exato de uma cena, não importa quantas vezes eu explicasse a ele. Após a décima tomada, peguei algumas canetas e salpiquei minha mão esquerda numa mancha de cor. ‘Este é o tom que procuro’, disse eu. Roberto olhou para essa mão e compreendeu instantaneamente. Você entende, eu não penso em termos de diálogo e tramas de enredo. Eu penso quase exclusivamente em imagens, o que explica porque o corpo e o rosto de um ator são mais importantes para mim que a estrutura do enredo [...]” (2)
No caso de Fellini, até poderíamos dizer que a maioria de seus filmes não apresenta problemas para o tipo de público mais acostumado a ouvir o texto do filme do que somar imagens e diálogo. Entretanto, e infelizmente para alguns espectadores (e alguns críticos), o cineasta italiano tem um interesse especial em falar do mundo dos sonhos. Na verdade, mais mostrar (em imagens) do que falar. É Fellini quem afirma que o interesse em sonhos tem relação com sua tendência a se concentrar mais em imagens do que palavras. Em sua opinião, as palavras “infectam a realidade”. Em suas palavras...
“Eu penso que constantemente vivemos uma contradição onde palavras mascaram a realidade mais do que a revelam, como um farol envolto em neblina. Palavras infectam a realidade. Imagens são feitas com luz e, ainda que atravessem espaços sujos, elas continuam puras”.(...)”A imagem é o componente especial do filme. O que mais ela poderia ser? Se eu lhe perguntasse qual é o elemento essencial da pintura, o que você responderia? Luz, tonalidade...”(...)”Uma imagem que expressa uma idéia, um sentimento, uma atmosfera, uma lembrança, e que sugere algo ao espectador que não diz respeito apenas ao ator, mas também a ele. Parece-me que é uma imagem densa em sentido e que representa a alma do filme. Sem a luz você não tem a imagem, e sem a imagem você não tem cinema. Luz é tudo. Ela expressa ideologia, emoção, cor, profundidade, estilo. Pode ocultar, narrar, descrever. Com iluminação apropriada, o rosto mais feio, a expressão mais idiota, pode irradiar beleza ou inteligência. Em meu trabalho, o diálogo é de pouca importância quando comparado à luz e imagem” (3)
Certa vez Fellini fez uma caricatura de si mesmo, dormia aos pés de uma grande árvore com grandes e carnudos seios. Uma Mulher-Árvore que propiciava abrigo da tempestade, da ansiedade e da culpa. Ele adaptou a idéia a partir do Homem-Árvore de Hieronymous Bosch que ele havia visto em livros de arte na infância (imagem abaixo). O tronco aberto do Homem-Árvore continha uma mesa redonda onde um casal bebia e celebrava. Este Homem-Árvore é, na opinião de Fellini, a fonte da casa da árvore de Susy, em Julieta Dos Espíritos (Giulietta Degli Spirit, 1965) (imagem ao lado). Infelizmente, Fellini não tinha dinheiro no orçamento do filme para fazer uma cabeça gigante. Todavia, completa o cineasta, a criação de Bosch é uma esplendida metáfora cinemática: “Ela incorpora minha idéia de um diretor levando atores e cenário para dentro de seu próprio corpo, o qual é por sua vez contido no interior do corpo de seu filme” (1).
“(...) Eu dirigi A Voz da Lua (La Voce della Luna, 1990) escrevendo a seqüência de cada dia na noite anterior[...].Certa vez, [...]Roberto Benigni não conseguia captar o sentimento exato de uma cena, não importa quantas vezes eu explicasse a ele. Após a décima tomada, peguei algumas canetas e salpiquei minha mão esquerda numa mancha de cor. ‘Este é o tom que procuro’, disse eu. Roberto olhou para essa mão e compreendeu instantaneamente. Você entende, eu não penso em termos de diálogo e tramas de enredo. Eu penso quase exclusivamente em imagens, o que explica porque o corpo e o rosto de um ator são mais importantes para mim que a estrutura do enredo [...]” (2)
No caso de Fellini, até poderíamos dizer que a maioria de seus filmes não apresenta problemas para o tipo de público mais acostumado a ouvir o texto do filme do que somar imagens e diálogo. Entretanto, e infelizmente para alguns espectadores (e alguns críticos), o cineasta italiano tem um interesse especial em falar do mundo dos sonhos. Na verdade, mais mostrar (em imagens) do que falar. É Fellini quem afirma que o interesse em sonhos tem relação com sua tendência a se concentrar mais em imagens do que palavras. Em sua opinião, as palavras “infectam a realidade”. Em suas palavras...
“Eu penso que constantemente vivemos uma contradição onde palavras mascaram a realidade mais do que a revelam, como um farol envolto em neblina. Palavras infectam a realidade. Imagens são feitas com luz e, ainda que atravessem espaços sujos, elas continuam puras”.(...)”A imagem é o componente especial do filme. O que mais ela poderia ser? Se eu lhe perguntasse qual é o elemento essencial da pintura, o que você responderia? Luz, tonalidade...”(...)”Uma imagem que expressa uma idéia, um sentimento, uma atmosfera, uma lembrança, e que sugere algo ao espectador que não diz respeito apenas ao ator, mas também a ele. Parece-me que é uma imagem densa em sentido e que representa a alma do filme. Sem a luz você não tem a imagem, e sem a imagem você não tem cinema. Luz é tudo. Ela expressa ideologia, emoção, cor, profundidade, estilo. Pode ocultar, narrar, descrever. Com iluminação apropriada, o rosto mais feio, a expressão mais idiota, pode irradiar beleza ou inteligência. Em meu trabalho, o diálogo é de pouca importância quando comparado à luz e imagem” (3)
No início de A Cidade das Mulheres (Città Delle Donne, 1980) o trem que carrega o personagem masculino (chamado Snaporáz) que vai ser julgado pelas mulheres entra em um túnel escuro. No final do filme, e antes que o trem entre em outro túnel, o homem acorda de um pesadelo, e só há tempo suficiente para reconhecer as mesmas mulheres que povoaram seu sonho e que agora estão sentadas ao seu lado na cabine – então o filme termina. Túnel escuro, luz fora do túnel, túnel escuro. Luz e sombra, mundo exterior e mundo dos sonhos. Qual é a natureza do cinema segundo Fellini? “O cinema, enquanto sedução irresistível é algo feminino, na sua essência…” (4) Fellini materializou muitas mulheres a partir da matéria prima do cinema – a imaterialidade da luz. Na lição que o cineasta italiano tirou de sua vida, o cinema é mulher, e ambos são feitos de luz.
Notas:
Notas:
1. PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003. P. 161.
2. Idem, pp. 14-15.
3. Ibidem, pp. 76 e 89.
4. MARTINS, Luiz Renato. Conflito e Interpretação em Fellini: Construção da Perspectiva do Público. SP: Edusp, 1993. P. 119, n.5.