“É mais fácil ser fiel
a um restaurante do
que a uma mulher”
Comentário de Fellini
em I’m A Born Liar,
A Fellini Lexicon, p. 65
Eu Amo Minha Esposa
Em Julieta dos Espíritos (Giulietta Degli Spiriti, 1965), Giulietta Masina, esposa de Fellini na vida real, interpreta o papel de uma dona de casa dependente de seu marido (imagem acima). Durante todo o filme ela busca a saída (ou seja, busca a si mesma), atravessando vários níveis de realidade. Sua vizinha, a liberada Susy, ao mesmo tempo a fascina e amedronta. Enquanto a casa de Julieta (ou melhor, a casa de seu marido, onde ela vive) é uma imagem da típica casa burguesa, a decoração da casa de Susy é totalmente surrealista. Julieta ouve vozes, mas acha que está ficando maluca. Ao contrário do final de Cidade das Mulheres (Città Delle Donne, 1980), onde temos um túnel negro pela frente representando o mundo de sonho (pesadelo masculino?) para onde Snaporáz voltará, em Julieta dos Espíritos a dona de casa se abre para a luz do dia. Ao invés de um túnel escuro, ela abre o portão de sua casa (na verdade, do marido) e sai em direção ao dia banhado pelo sol.
A idéia de Fellini foi criar uma personagem feminina que iria confrontar sua natureza inocente e prática com uma realidade áspera e implacável, resultando em uma série de projeções mentais fantásticas que a desestabilizariam por um tempo, mas que ela dominaria ao final. O filme narra essa luta onde ela se transforma numa mulher madura e independente, com a esperança de uma segunda inocência agora baseada na experiência. Entretanto, tempos depois Fellini admitiu ter errado ao escalar sua esposa como uma dona de casa dependente do marido. Ele achou que deveria ter feito dela uma atriz celebrada (embora totalmente dependente do marido), apanhada na armadilha da múltipla função de esposa, patroa, amante e amiga. Fellini insistia em discutir com sua esposa...
“Não me recordo de ter brigado mais com Giulietta do que durante a produção deste filme. Ela continuava repetindo para mim que não se sentia confortável em seu papel, e eu continuava dizendo para ela ser ela mesma. Eu nunca compreendi que ‘ela mesma’ significava esposa e atriz – a chave para este filme. Como eu pude ser tão teimoso? Então, a moral da estória é: nunca tente desvalorizar a opinião de sua esposa [never try to second-guess your wife]... Contudo, é um bom filme você não acha?” (1)
Imagem de Mulher em Fundo Branco
“Hoje, os críticos reclamam que não compreendem os enredos de meus
filmes, e eu sempre respondo que
eles não sabem como ler rostos”
Comentário de Fellini em
I’m A Born Liar, A Fellini Lexicon, p. 14
filmes, e eu sempre respondo que
eles não sabem como ler rostos”
Comentário de Fellini em
I’m A Born Liar, A Fellini Lexicon, p. 14
Fellini tinha o hábito de rabiscar em superfícies brancas quando estava preparando um novo filme. A partir desses esboços visualizava tanto o cenário quanto os personagens e suas roupas. Para ele, a estória está encarnada nos rostos. Após fazer caricaturas dos personagens que imaginou, publicava notícia em jornal convidando qualquer um que quisesse conhecê-lo. Em seguida, juntava fotografias de centenas de pessoas que escolhera num grande quadro em seu escritório. Procurava por um rosto que coincidisse com o que estivesse procurando, embora se mantivesse aberto a novas possibilidades (2).
Das caricaturas que Fellini esboçava surgiram personagens femininas memoráveis. Para Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1961), ele desenhou uma mulher gigante dançando numa praia em frente a um garotinho nu, de olhos negros e com uma ereção. Próximo ao braço direito da mulher, Fellini colocou uma foto de jornal do Papa. O personagem chaplinesco de Gelsomina (esboço acima, criado pelo próprio Fellini), em A Estrada (La Strada, 1954), surge do desenho de um palhacinho que espicha a cabeça para fora de uma cortina de teatro. Anita Ekberg, que Fellini afetuosamente chamava de Anitona, é Sylvia a loira fatal com seios fartos, em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1959). Anita teve sua personagem parcialmente inspirada por um vestido numa revista Vogue no final dos anos cinqüenta. Era muito chique, mas Fellini achava que parecia uma bolsa cobrindo a mulher. Tal mulher, disse ele, “poderia ser essa criatura arrebatadora, pura e cheia de vida por fora, mas, por dentro ela era um esqueleto de solidão e vício” (3).
Notas:
1. PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003. P. 82.
2. Idem, p. 40.
3. Ibidem, p. 55.