O título de Noites
de Cabíria, realizado
por Federico Fellini,
foi uma homenagem à
Cabiria, realizado por
Pastrone em 1914
Ecos de Um Passado Épico?
No final da primeira década do século 20, o cinema ainda era mudo quando a indústria cinematográfica italiana começou a solicitar aos escritores e intelectuais que condensassem poemas clássicos e trabalhos contemporâneos de sucesso, procurando manter intacto o espírito original das obras. Essa tendência deu origem a um novo tipo de escritor, que era pago para sintetizar e espremer o suco de um poema inteiro ou uma ópera usando apenas algumas frases. Com estas palavras Gian Piero Brunetta indica como o cinema italiano desde cedo não apenas lançou mão de adaptações literárias, como também estimulou a criação de mais um nicho de trabalho para os escritores. Embora o escrito Gabriele D’Annunzio tivesse sido contratado apenas para escrever os intertítulos (a partir de um roteiro já pronto) de Cabiria (direção Giovanni Pastrone, 1914), a ele passou a ser creditada a autoria do texto – embora em seu contrato também constasse o uso de seu nome como o autor do filme; o nome de Pastrone não aparecia em nenhuma propaganda do filme (1). Alguns anos depois o norte-americano D.W. Griffith se inspiraria nos cenários de Cabiria (e também em Les Miserables, direção Albert Capellani, 1912) para criar cenários em Intolerância (1916) – filme cujos cenários seriam homenageados pelos irmãos Taviani em Bom Dia, Babilônia (Good Mourning Babylon, 1987) (2). (imagens, acima e abaixo, à direita, respectivamente, Maciste e Moloch, em Cabiria)
Um dos símbolos de
Bom Dia, Babilônia são
os cenários de D.W. Griffith
em Intolerância. Talvez os
Bom Dia, Babilônia são
os cenários de D.W. Griffith
em Intolerância. Talvez os
irmãos Taviani devessem
homenagear Pastrone
homenagear Pastrone
Como uma jogada de marketing, o endosso do filme através do nome de D’Annunzio foi um procedimento que alterou fundamentalmente o equilíbrio da relação entre cinema e literatura, na Itália e noutros países. Grande parte desses filmes também estimulou a área de trabalho dos cenaristas, dando um impulso ao cinema épico que talvez tenha sido poucas vezes igualado no futuro da sétima arte. Brunetta cita alguns exemplos: sob a direção de Luigi Maggi, Nerone, Il Granatiere Roland e Nozze d’Oro (curtas-metragens realizados em 1909 e 1911); dirigidos por Francesco Bertolini e Adolfo Padovan, l’Inferno (1911); por Giuseppe de Liguoro (assistente e direção no filme anterior), l’Odissea (1911) e Marin Faliero, Dodge di Veneza (1909); por Yambo (Arrigo Frusta?), Othello (1914); além do curta metragem Il Piccolo Garibaldino (1909), lançado pela produtora Cines. Além de outros filmes históricos que constituíram uma era dourada do cinema italiano anterior à Primeira Guerra Mundial (3). (imagem abaixo, à esquerda, a tão conhecida dobradinha "pão e circo", em Últimos Dias de Pompéia, direção Arturo ambrosio e Luigi Maggi, 1908)
Faz tempo que
faustos impérios são
fonte de inspiração no
cinema, isso começou
na terra de Mussolini,
Da Vinci, Berlusconi
e Michelangelo
faustos impérios são
fonte de inspiração no
cinema, isso começou
na terra de Mussolini,
Da Vinci, Berlusconi
e Michelangelo
De acordo com Brunetta, um estudo minucioso das fontes iconográficas revela o desejo dos produtores em atingir a mesma dimensão das grandes tendências da história da pintura. Podemos encontrar influências da pintura renascentista, do neoclassicismo e do simbolismo, além da incorporação de traços da ilustração comercial contemporânea. Enrico Guazzone foi o primeiro cineasta a “orquestrar” grandes elencos, composição de imagens e espaço organizado, criando uma sintaxe narrativa e tirando o máximo dos cenários. A descoberta do potencial das filmagens em espaços abertos mudou a perspectiva dos projetos de produção, libertando os gladiadores e os cristãos para lutarem e morrerem em arenas romanas bem mais realistas do que estúdios decorados com papel machê. Naquele breve momento, as produtoras de cinema em Roma e Turim ganhavam cada vez mais a atenção dos espectadores mundo afora, dominando o mercado antes que Hollywood viesse a dominar o mercado mundial. Curiosamente, os filmes históricos originalmente nasceram de um interesse pedagógico, mas acabaram se tornando inclusive um modelo para o pendor nacionalista de alguns italianos. Através deles se construiu uma imagem do passado glorioso do Império Romano, que se passou a ter como o passado da própria Itália. Como atestará futuramente Cipião, o Africano (Scipione l’Africano, direção Carmine Gallone, 1937), que segundo Stephen Ricci enaltecia e justificava a presença colonialista italiana no norte da África (4). (imagens abaixo, à direita, entrada do templo de Moloch, à esquerda, pilastra de elefantes dentro do templo, em Cabiria)
Gabriele D’Annunzio
recebeu o crédito pelo roteiro
de Cabiria. Entretanto, ele só
escreveu os intertítulos
Gian Piero Brunetta (5)
Os cinco anos entre Nerone e Cabiria marcaram uma era do cinema italiano onde todas as suas ferramentas se combinavam com o surgimento do espírito nacionalista – lembremos que as nuvens de guerra já se avolumavam, e a Itália mal havia acabado de sair de sua unificação em 1860. Brunetta não é o primeiro historiador do cinema italiano a notar que, antes de Mussolini sugerir uma ligação entre a Itália e o Império Romano (em 1922, ele escreveu em Popolo d’Italia: “que o espírito de Roma renasça no Fascismo”), imagens de triunfais paradas romanas, saudações romanas e o fascio (a famosa machadinha, símbolo fascista que, na verdade, originalmente era um símbolo romano) já haviam sido bastante vistos pelos italianos em filme mudos como Quo Vadis?, Cajus Julius Caesar, Marcantonio e Cleopatra (os três direção Enrico Guazzoni), Spartaco, o Rei dos Gladiadores Romanos (Spartacus, direção Giovanni E. Vidali, 1913), Salambò (com duas versões, por Arturo Ambrosio, e Domenico Gaido), Nerone e Agrippina (direção Mario Caserini), In Hoc Signo Vinces (In Questo Segno Vincerai) (direção Nino Oxilia) e Cabiria. Realizados entre 1912 e 1914, eles alicerçaram a legitimação de um passado italiano glorioso, assim como o simbolismo dos rituais políticos fascistas.
Em parte, foi em Cabiria que Griffith se inspirou para criar os
gigantescos elefantes do cenário da Babilônia em Intolerância (6)
gigantescos elefantes do cenário da Babilônia em Intolerância (6)
Na opinião de Brunetta, Nerone, realizado por Luigi Maggi em 1909, pode ser considerado o arquétipo que deu luz a todo o sistema. Inspirado na comédia de Pietro Cossa, o filme também se espelhou nas aquarelas de Bartolomeo Pinelli (1731-1835) e pinturas neoclássicas, que fez dessa obra uma espécie de quadro vivo. Também houve influência do espetáculo de Barnum Circus (1810-1891), Nero, or the Destruction of Rome, 1889. Ainda que os códigos dominantes de Nerone fossem teatrais, Brunetta insiste em afirmar que os espetaculares efeitos especiais do filme inovaram no uso de grandes elencos. Em seguida, marcos são La Caduta di Troia, l’Odissea e l’Inferno (considerado uma adaptação visual fiel das ilustrações de Gustave Doré sobre a Divina Comédia, de Dante Alighieri). Os filmes épicos realizados pelos estúdios de Roma, Milão e Turim entre 1912 e 1914 tinham mais relação visual com a arquitetura do que com cenários e picadeiros e circo, ou de grandes produções teatrais ou apresentações de ópera. Brunetta afirma que foi a necessidade desse gênero de filme mostrar as multidões em movimento que levou os cineastas a abandonar o espaço bidimensional típico da pintura medieval e adotar a tridimensionalidade presente na pintura renascentista. Na década seguinte, épicos já não interessavam às platéias. Talvez pela avidez do público por novidades, talvez porque o mundo depois da Primeira Guerra Mundial era outro. (imagem abaixo, Últimos Dias de Pompéia, 1908)
Feliz do povo que
ainda tem as paredes
de seu passado para
se projetar. Não?
ainda tem as paredes
de seu passado para
se projetar. Não?
Em 1977, o Conselho Cultural de Roma (cuja prefeitura era governada pela esquerda) inaugurou uma série de grandes eventos de verão. Entre outros eventos, a estate romana patrocinou apresentações de cinema ao ar livre. Apelidada de Massenzio em função do imperador romano Maxentius. A utilização da herança cultural de Roma era parte integral do projeto. Até 1984, as atividades eram situadas em torno de estruturas como o Coliseu, a Basílica de Massenzio e no Circus Maximus. A partir de 1985, a nova administração (agora os Democrata-Cristãos) deslocou o projeto para a periferia da cidade, na EUR, o bairro projetado durante os anos de Mussolini. Na opinião de Stephen Ricci, talvez o mais extraordinário entre a cultura popular e os restos do passado romano tenha ocorrido em 1984, na projeção de Ben Hur (1959) no Circus Maximus, realizado pelo norte-americano William Wyler. Quando tropas romanas entram na Judéia, depois do nascimento de Cristo, elas passam em frente da carpintaria de José e um cliente pergunta por que ele não vem olhar. “Já vimos romanos antes”, responde. Neste instante, a platéia da Roma atual irrompe em coro com o grito de guerra do time de futebol da cidade: “Forza Roma! Forza Lupi! So’ finiti i tempi cupi!” (“Força Roma! Força lobos! Os tempos sombrios acabaram!”) (imagens abaixo, respectivamente, Messalina e l'Inferno, 1911)
A corrida de bigas no
Circus Maximus no Ben Hur de Wyler foi inspirada numa cena
de Messalina (1923) realizado
por Enrico Guazzoni (8)
Circus Maximus no Ben Hur de Wyler foi inspirada numa cena
de Messalina (1923) realizado
por Enrico Guazzoni (8)
Concordando com José, o cliente conclui resignado: “Sim, e nós os veremos novamente”. Nesse ponto, a platéia dispara em dialeto romanesco na direção de José: “A Pepi! Stamo tutti quanti qui!” (“Ei, Joe! Estamos todos aqui!”). Durante a seqüência da corrida de bigas a platéia estava a favor de Messala (o representante do Império Romano na Judéia) e francamente contra Ben Hur, isto é, o ator norte-americano Charlton Heston, estrela de Hollywood. A multidão gritava expressões em romanesco que significavam basicamente: “Ianque vá para casa!”. Ricci reparou nesse episódio a evidente referência à postura do cinema de Mussolini, que fez do filme épico retratando o Império Romano um grito nacionalista, mas Ricci não parece ter notado que a sobrevivência do dialeto romanesco vai contra as diretivas do Duce (que era intolerante com aqueles que não falavam o idioma italiano “oficial”). Ricci percebeu que aquela platéia descolou Ben Hur do contexto, fixando-se na nacionalidade do ator. Óbvias referências ao que eles já não são e à nova ordem do onipresente império do Tio Sam.
Griffith ficou
impressionado com
os cenários de Cabiria.
Contudo, em seus próprios filmes, os italianos eram sempre retratados como imigrantes estúpidos
e foras-da-lei (9)
os cenários de Cabiria.
Contudo, em seus próprios filmes, os italianos eram sempre retratados como imigrantes estúpidos
e foras-da-lei (9)
Leia também:
As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
A Nudez no Cinema (VIII)
Arte e Estética da Transgressão
Robert Bresson e Balthazar
O Triângulo Amoroso de Jean Eustache
Notas:
1. RICCI, Steven. Cinema & Fascism. Italian Film and Society, 1922-1943. Berkeley: University of California Press, 2008. P. 39.
2. SIMMON, Scott. The Films of D.W. Griffith. New York: Cambridge University Press, 1993. P. 112.
3. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A guide to Italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton, New Jersey: Priceton University Press, 2009. Pp. 33-8.
4. RICCI, Steven. Op. Cit., pp. 96-104.
5. BRUNETTA, Gian Piero. Op. Cit., p. 37.
6. SIMMON, Scott. Op. Cit., pp. 142-3.
7. RICCI, Steven. Op. Cit., pp. 178-86.
8. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008. P. 6.
9. SIMMONS, Scott. Op. Cit., pp. 49-50, 52.