“(...) Vi 30 vezes
Os Deuses Malditos,
de Visconti”
Rainer Werner
Fassbinder (1)
A Família Monstro e os Podres Poderes
Stefano Roncoroni questionou Visconti quanto à tendência de identificar o nazismo como perversão sexual. Seria tendencioso e simplista, afirmou Roncoroni. Visconti se defendeu dizendo que não era possível abordar todos os lados do nazismo, caso contrário estaria a fazer uma história do Terceiro Reich. Concentrou-se numa família e nela localizou os instintos mais baixos. “Trata-se de um exemplo”, esclareceu Visconti, “não significa que o nazismo esteja todo ali” (2). É assim que Aschenbach e Martin conseguem trazer para o Partido Nazista um Gunther, chocado com o assassinado do pai. No texto do roteiro, a fala de Aschenbach para Gunther é mais direta do que no filme: “Você possui uma coisa extraordinária que é esse ódio novo que traz dentro de si, mas é um luxo que você o utilize apenas para satisfazer uma vingança pessoal. Nós sabemos como industrializá-lo. Venha conosco e você será um de nós, parte de nós, será um nazista” (3). (As três primeiras imagens do artigo são da cena do incesto, entre Martin e Sofia)
A tarefa do nazismo,
de acordo com Aschenbach: industrializar o ódio
Numa época em que o cinema italiano estava em crise e o cinema alemão era subsidiado pelo governo (mas onde só a pornografia dava lucro nas telas), Visconti entendia a contribuição contida em Os Deuses Malditos como algo que está para além de apenas mais um filme cheio de clichês contra o nazismo. Pier Paolo Pasolini já havia abordado o assunto em Pocilga (Porcile, 1969) e voltaria a ele em Salò, Ou os 120 Dias de Sodoma (Salò o le 120 Giornate di Sodoma, 1975). Visconti definia Os Deuses Malditos como algo mais do que um filme histórico:
“(...) Não se trata de um filme sobre a história do surgimento do nazismo, mas de um filme ambientado naquele momento exatamente para provocar choques (...). Pessoalmente, estou muito satisfeito com o que fiz e creio que o filme pode vir a ter ressonância, dar um grande impulso numa direção ideologicamente engajada, no momento em que o cinema dedica-se a histórias de alcova, a simples histórias de relações sexuais ou até mesmo à pornografia. Acredito que meu filme possa chamar à ordem e dizer: ‘Caros senhores, existem temas sérios que podem ser tratados’. Além disso, acredito que, com exceção de um episódio muito simbólico sobre o nazismo e, ao que parece, sobre as relações entre o homem e o nazismo, que se encontra em Pocilga, de Pasolini, esta é a primeira vez que tal tema vem tratado num filme” (4)
Pasolini, Visconti e os Porcos
Pasolini, Visconti e os Porcos
Se viver sob qualquer
dos estilos de totalitarismo
fosse comparável a pocilgas onde se confinam os porcos,
compreenderíamos melhor
o desespero que nos induz
a comer uns aos outros
dos estilos de totalitarismo
fosse comparável a pocilgas onde se confinam os porcos,
compreenderíamos melhor
o desespero que nos induz
a comer uns aos outros
Em Pocilga, Pasolini realmente não apresentaria ninguém fantasiado com o uniforme nazista. Entretanto, a divisão em dois episódios paralelos, sendo um deles explicitamente metafórico (o episódio dos canibais), talvez neutralize a outra estória – para aqueles dentre nós que não conhecem a vida dos porcos. No outro episódio, industriais-ex-nazistas conversam e se deliciam com sua boa vida de ontem e de hoje (Pasolini era obcecado em denunciar o “novo fascismo”). Enquanto isso, o filho de Klotz transava com porcos, até que foi comido por eles – o detalhe que une os dois episódios pode ser o fato de que, em cativeiro, os porcos podem se tornar canibais. Durante a conversa entre os nazistas, em certo momento o industrial Klotz tira melodias de uma arpa. A música que ouvimos durante todo este episódio é uma versão do hino das SA: A Canção de Horst Wessel (Horst Wessel Lied) (5). Wessel foi um comandante das SA numa região de Berlim. A mesma música é cantada pelos SA em Os Deuses Malditos, durante a orgia homossexual, pouco antes de a Gestapo abrir fogo.
Em 1933, Hitler a declarou símbolo nacional. No final de outro filme, O Triunfo da Vontade (1935), dirigido por Leni Riefenstahl, a cineasta preferida de Hitler, oficiais nazistas podem ser vistos cantando a mesma música. O incêndio do Parlamento alemão, supostamente por um comunista, deixa evidente a tendência anticomunista do Partido Nazista. Tendência que Hitler tentou torcer a seu favor no final da guerra, sabendo que a aliança entre os aliados ocidentais e a ex-União soviética era puramente estratégica – apenas para destruir o Reich. Depois da morte de Wessel, teoricamente assassinado por um comunista em 1930, o Ministro da Propaganda, Josef Goebbels, fez dele um mártir - a letra recebeu adendos em sua honra, mas eles nunca seriam incorporados à letra oficial.
Pasolini achou Os Deuses Malditos repleto de clichês,
até mesmo “silenciando”
a criatividade de Visconti
Comentando sobre o filme de Visconti, Pasolini fez referência a certo excesso de clichês na segunda parte – o episódio da Noite das Longas Facas (6). Pasolini chega a dizer que, na cena do massacre, a inspiração de Visconti “silencia”. O massacre, afirmou Pasolini, foi muito “cinematográfico”, “sem mistério”, “com litros de colorante vermelho sobre os corpos dos figurantes”. Aschenbach passa de “personagem crível a um herói de folhetim”. Pasolini refere-se também a uma possível confusão quanto a viver através do filme o que não se pode viver na realidade objetiva porque não estávamos lá – talvez uma referência ao fato de que Visconti disse que esteve na Alemanha durante essa noite fatídica para a SA (7). (imagem acima, à direita, cena do casamento entre Sofia e Frederick; sob o manto da suástica nazista os padres eram induzidos ou obrigados a perguntar se os noivos eram alemães legítimos e se tinham doenças hereditárias. A relação do Partido Nazista com as religiões é um capítulo à parte, do qual pouco se fala)
Com relação ao elemento homossexual presente no filme de Visconti, é Pino Bertelli quem evidencia uma distância em relação a Pasolini. Enquanto parte de um movimento em direção a um cinema que liberte a sexualidade (que Bertelli parece confundir um pouco com “liberação sexual”), Bertelli afirma que enquanto “(...) a idéia da liberação sexual, que em Pasolini (Carmelo Bene ou Rainer W. Fassbinder) agita as boas razões das instituições, em [Franco] Zeffirelli, Visconti ou [Stanley] Kubrick tornam-se transgressões (revestida, ambígua ou finamente tecnológica) boas para o mercado cinematográfico” (8).
Operação Mãos Limpas
Acabaram-se todas as
ilusões da hesitante
República de Weimar
Era opinião de Visconti que Martin e Gunther são o tipo de gente que conduzirá o nazismo ao seu completo desenvolvimento: a guerra, a solução final do “problema dos judeus”, a tomada de Berlim pelos soviéticos, o suicídio de Hitler. Friedrich, Herbert e o velho Joachim, que representam a República de Weimar, serão destruídos. Visconti admitiu que em alguns de seus filmes tudo acontecesse depois da morte de um pai. Em Os Deuses Malditos, o assassinato de Joachim representa o fim dos homens livres da Alemanha. Aschenbach, o fanático nazista, faz um comentário em virtude do incêndio da Chancelaria do Reich, supostamente incendiado por um comunista: “Antes que as chamas do Reichstag estejam extintas, os homens da velha Alemanha estarão, nesta noite, reduzidos a cinzas”. Ou seja, explicou Visconti, todos os liberais, todos os que tinham idéias livres, que ainda estavam ligados à República de Weimar e que não eram nazistas... “É a partir do incêndio do Reichstag que o nazismo começa a colocar sua mão de ferro sobre o país” (9). (imagem acima, à esquerda, Sofia e Frederick, após a cerimônia de casamento foram levados por Martin ao local reservado onde cometeriam suicídio com o veneno fornecido pelo próprio Martin; abaixo, à direita, Martin e Sofia, ela quase não se contém com o filho, mesmo em público; na última imagem do artigo, Martin, já com o uniforme SS, sob o reflexo amarelo sangue das fornalhas da siderúrgica)
Alguém
podia fazer um
filme para explicar
quem vendia o minério
de ferro que a Krupp transformou em
canhões
É curioso como cumplicidades afloram entre os capitalistas quando um regime autoritário qualquer toma o poder. Já sabemos que sem o aço não se podia fazer uma guerra durante o século 20. Curiosa é também a facilidade com que Hitler conseguiu o aço de que precisava – não foi necessário ameaçar fuzilar a família Essenbeck-Krupp para que ela colaborasse. Mas Krupp-Essenbeck não podia fazer aço sem matéria-prima. Portanto, o minério de ferro era ainda mais importante para Hitler do que as siderúrgicas que o transformavam em aço. Onde estava a fonte mais próxima de matéria prima que negociou com Hitler? Na Suécia. Sim, aquele país militarmente neutro que não combateu e não se alinhou, e nem foi ocupado durante a Segunda Guerra Mundial. A Suécia foi responsável por 60% do minério de ferro que entrou na Alemanha de Hitler durante a guerra. Curioso!
Leia também:
Os Malditos de Visconti (I), (II)
As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (V)
Yasujiro Ozu e a Dissolução da Família
Bertolucci e a Psicanálise: O Conformista (I), (final)
Fellini: Infantilismo e Fascismo na Sociedade Italiana
O Cinema e o Passado: O Caso do III Reich (I), (II), (final)
As Mulheres de Rainer Werner Fassbinder (VII)
O Porteiro da Noite e a Cumplicidade da Vítima
Berlin Alexanderplatz (I), (II), (final)
Notas:
1. TÖTEBERG, Michael (org.). Rainer Werner Fassbinder. A Anarquia da Fantasia. Tradução Sonia Baldessarini e Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. P. 131.
2. VISCONTI, Luchino. Os Deuses Malditos. Tradução Joel Silveira. Rio de Janeiro: Civilização brasileira S.A., 1970. P. 14.
3. Idem, p. 9.
4. Ibidem p. 12.
5. BERTELLI, Pino. Pier Paolo Pasolini. Il Cinema in Corpo. Atti Impuri di un Eretico. Roma: Edizioni Libreria Croce, 2001. P221.
6. JOUBERT-LAURENCIN, Hervé. Pier Paolo Pasolini. Écrits sur le Cinéma. Petits Dialogues Avec les Films (1957-1974). Paris/Lyon: Cahiers du Cinéma/Presses Univ. de Lyon et Institut Lumière, 2000. Pp. 145-50.
7. VISCONTI, Luchino. Op. Cit., p. 6.
8. BERTELLI, Pino. Op. Cit., p. 253.
9. VISCONTI, Luchino. Op. Cit., p. 11.
10. DAVIS, Mike. Holocaustos Coloniais. Clima, Fome e Imperialismo na Formação do Terceiro Mundo. Tradução Alda Porto. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Record, 2002. P. 203.