Roberto Rossellini (1)
O Filme que Ninguém Viu
Estamos nas ruas de Bombaim (Mumbai), uma multidão de pessoas em movimento. O narrador enfatiza a densidade populacional da Índia e sua variedade, de raça, religião, classe. Agora passamos para a calma da vida rural, seus campos e rios. Passamos das vilas aos templos e a um elefante todo enfeitado. Entramos na floresta e reencontramos os elefantes, agora trabalhando – derrubando árvores, arrastando toras, colocando-as em caminhões. Então uma elefanta fica grávida e é separada de seu parceiro. A esposa do tratador do elefante também está grávida e parte para sua vila em companhia da mãe. A próxima parada da viagem nos leva ao sopé do Himalaia, na cidade de Benares. Ao longo do rio Ganges, os indianos cremam seus mortos e suas cinzas jogadas no rio. Mas além, a hidrelétrica Hirakud está em fase de acabamento. Acompanhamos um operário que agora deve procurar trabalho em outro lugar, ele conta sua história de refugiado vindo de Bangladesh (então Bengala Ocidental) com a esposa e que agora partem com um filho.
O cinema de Rossellini pretendia mostrar as coisas como elas são, antes delas se
transformarem noutra coisa por conta das tentativas
de interpretação (2)
Então passamos a campos de plantação de arroz, lá um senhor de 80 anos de idade fala de quando vivia na floresta com os animais. Ele gostava especialmente dos tigres. De repente um grupo de mineradores chega e começa a trabalhar, fazendo um grande barulho que assusta a todos, homens e animais. O velho homem encontra traços de sangue que pertencem a um tigre ferido. O ancião sabe que se um animal desses estiver ferido pode ser perigoso para os humanos. Nessa noite, um homem será morto por um tigre. Depois de uma reunião onde fica decidido que o tigre deve ser morto, o velho corre para a floresta e a incendeia. Isso espanta todos os animais, incluindo os tigres. O velho diz que o mundo é grande e que existe lugar ara todos. Na última etapa da viagem, estamos num lugar muito quente. Com abutres sobrevoando suas cabeças, um homem e seu macaco (artistas de feira) atravessam o lugar. O homem morre e o macaco foge e chega numa vila onde existe um circo. O macaco é rejeitado por humanos e por macacos selvagens, até ser adotado por alguém do circo. Depois da apresentação de um macaco trapezista, a platéia se retira. Na saída, ela se mistura com a multidão das ruas de Bombaim.
Documentário e Ficção
“Para Godard,
India ‘é a criação
do mundo” (3)
India ‘é a criação
do mundo” (3)
Em dezembro de 1956 Rossellini foi para a Índia, viajou e filmou por lá durante quase um ano. Realizou dois filmes, o primeiro a ser transmitido pela televisão francesa no começo de 1958 com dez episódios – que se chamou J’ai Fait un Beau Voyage. A versão italiana, L’India Vista da Rossellini, embora conte com um entrevistador italiano as perguntas e as imagens são as mesmas da versão francesa. O segundo filme, que utiliza imagens desse primeiro, se chama India (1957-9), ou India Matri Bhumi (Índia Mãe Terra). Rossellini definiu a distância entre o filme para a televisão francesa e India como a mesma entre um documentário e um trabalho de poesia. O segundo filme transforma o “documentário” em ficção. Rohdie afirma que com India Rossellini inclui o documentário na ficção como uma diferença irreconciliável. Para o cineasta, cinema é um instrumento para criar um confronto com a realidade e observar as conseqüências como num microscópio. A ficção, à qual pertencem todos os personagens de seus filmes, está aberta à história, ao documento, que não pode ser ignorado. Na opinião de Sam Rohdie, o primeiro episódio lembra Francisco, Arauto de Deus (também lançado no Brasil com o título O Santo dos Pobrezinhos; Francesco, Giullare di Dio, 1950), o segundo a Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1953), o quarto Stromboli (Stromboli, Terra di Dio, 1950).
“O cinema,
para Rossellini, é um
instrumento para criar um confronto com a realidade,
aí então observar, como você faria num microscópio,
as conseqüências
desse conflito” (4)
Na opinião de Rohdie, India o realismo cênico dá lugar a uma pluralidade de realidades sem coerência entre si. Mas isso não é uma deficiência do filme, a lição de Rossellini está na forma de nos tornar cientes da realidade. É como se, explica Rohdie, para se tornar ciente da realidade fosse necessário suspender o véu das ilusões que a mascaram. A primeira delas é a convenção de homogeneidade, que se obtém através de uma verosimilitude cênica – e que é a regra nos filmes direcionados ao social do Neo-Realismo italiano. Ou seja, conclui Rohdie, a realidade é uma questão de abordagem, uma forma de filmar, de estruturar, narrativa e visualmente. Seja lá o que Rossellini tenha falado sobre a “realidade”, Rohdie acredita que ele se referia às imagens cinematográficas dela. Em cada um dos quatro episódios separados de India, a realidade não é uma essência a ser definida, mas uma relação entre diferentes níveis e tipos de realidade que necessariamente estão em conflito entre si. Tais níveis não seriam redutíveis aos clichês da ficção e do documentário. Em India, os humanos são comparados aos animais, mas suas similaridades apontariam para suas diferenças – as quais não podem ser evitadas. Para Rossellini, o documentário não é um pano de fundo para a ficção, ele está incluído na ficção como parte dela. Mas como uma diferença que não pode ser reconciliada. É essa diferença, e a força dela, conclui definitivamente Rohdie, que é aberta pela “realidade”.
“A ficção do
ancião e do macaco
esbarram com a realidade,
o que acontecerá quando eles
encararem o vazio? Quando
encontramos esse momento,
o filme deixa de ser apenas
uma representação
da realidade” (5)
Notas:
Leia também:
As Deusas de François Truffaut
Arte do Corpo: A Dança das Trevas
Godard e a Distopia de Alphaville (I), (II), (III), (final)
Buñuel e as Formigas
Este Corpo Não te Pertence: A Mulher Fascista
Grotesco da Vida ou da Mídia?
Ingmar Bergman e Suas Marionetes
Roma de Pasolini
A Chinesa e o Cinema Político de Godard
Ricota de Pasolini
1. ROHDIE, Sam. India. In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (eds.). Roberto Rossellini, magician of the real. London: British Film Institute, 2000. P112.
2. Idem, p. 121.
3. Declaração de Godard no Cahiers du Cinéma, em 1959. Ibidem, p. 124.
4. Ibidem, p. 120.
5. Ibidem, p. 124.
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Ricota de Pasolini
1. ROHDIE, Sam. India. In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (eds.). Roberto Rossellini, magician of the real. London: British Film Institute, 2000. P112.
2. Idem, p. 121.
3. Declaração de Godard no Cahiers du Cinéma, em 1959. Ibidem, p. 124.
4. Ibidem, p. 120.
5. Ibidem, p. 124.