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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

14 de abr. de 2008

Bernardo Bertolucci e o Parceiro Ideal (I)


Partner é o grito de alguém que está sendo esfolado vivo, 
um filme esquizofrênico sobre esquizofrenia,  assim como
anos   atrás,   mas   com   menos   infelicidade,    [Antes   da
Revolução]  foi um filme ambíguo  sobre  ambigüidade”  (1)

Bernardo Bertolucci

Jacob:"A vida é bela é uma frase idiota!" 
Duplo:"Eu quebro a sua cara"


A Narrativa

Jacob é um jovem francês que vive em Roma, onde ensina representação. Após uma cena sem explicação onde ele mata um amigo pianista, Jacob chega sem ser convidado na casa de um professor onde o aniversário de Clara, uma mulher que Jacob ama, está sendo celebrado. O professor não quer vê-lo (a razão nunca será revelada), e Jacob é rejeitado duas vezes: primeiro quando a empregada bate a porta na sua cara e novamente quando os convidados literalmente o carregam para fora da casa. O trauma da humilhação, diria Claretta Tonetti, produz uma personalidade partida (imagem abaixo, duplo acima, Jacob abaixo). Deste ponto em diante, haverá “dois” Jacobs. A próxima cena mostra Jacob diante do espelho sendo abordado por seu duplo:


Duplo: Jacob. Jacob. Não fique tão tenso, Jacob!
Jacob: Eu não estou tenso.

Duplo: Sim, Jacob. Sente o sangue que corre nas veias?
Jacob: Nas veias?
Duplo: Nos braços, Jacob.
Jacob: Nos braços?
Duplo: Como bate nas têmporas?
Jacob: Nas têmporas?

Duplo: Jacob, você não sente que está quase desmaiando? Está quase desmaiando, não é?
Jacob: Não!

Duplo: Ah Jacob. Jacob olhe para mim!
Jacob: Sim.

Duplo: Seus olhos estão se fechando sozinhos! Você está em minhas mãos, Jacob. Volte à casa do professor. Entre pela porta de serviço, atravesse o jardim, depois a sala de jogo, depois o salão de baile. Vá, Jacob, vá!
Jacob: Mas eu estou com medo.
Duplo: Você é um covarde, um verdadeiro covarde!

Jacob: Não tenho culpa por ter medo.
Duplo: Jacob estará lá dentro com a Clara. Você quer dançar com ela, não é? Dançar com ela e apertá-la em seus braços?

Jacob: Sim...
Duplo: Então vá!

Jacob: Sim... Já vou.
Duplo: Então tchau.

Na rua, após a segunda expulsão, vemos Jacob sozinho gritando e dando socos no ar. Ele acredita estar rodeado por cinqüenta atacantes, mas ele vence a luta. Apenas para que, descendo a rua, seja perseguido por uma sombra gigante, que chuta seu traseiro. No dia seguinte ele vai para a sala de aula, seus alunos da turma de representação o esperam. 

Com ações que se tornam cada vez mais enigmáticas – uma vez que não existe seqüência lógica e uma vez que é muitas vezes impossível distinguir “um” Jacob do “outro” – ele mata: primeiramente enforca Clara no ônibus e depois uma jovem que vende detergentes de porta em porta. Ele também prepara seus estudantes para derrubar a sociedade com uma “revolução/espetáculo”, chamado “o poder à imaginação”. Entretanto, nunca chega a acontecer porque nenhum dos atores comparece. O filme termina com os dois Jacobs saindo por uma janela, aparentemente para cometer suicídio.

O Duplo

O filme é baseado em O Duplo, novela de Fyodor Dostoyevski. A divisão da personalidade no duplo de Dostoyevski começa depois que o protagonista se olha no espelho. Golyadkin é um homem angustiado e solitário, cuja paranóia e possível esquizofrenia faz com que veja um duplo de si mesmo. No começo, o duplo é gentil; posteriormente, aos olhos de Golyadkin, o duplo torna-se seu torturador. No final, Golyadkin parece perder a cabe ça completamente, sendo levado para uma instituição mental. Jacob mora com um velho que possui o mesmo nome do servo de Golyadkin. Entretanto, em Partner, ficamos sabendo que o servo Petruska é o verdadeiro dono do apartamento onde mora Jacob. 



"Quanto maiores são as sombras, melhores serão os filmes"
 
(Bertolucci citando uma frase típica do expressionismo alemão)


Bertolucci enfatiza a dualidade desde os créditos iniciais do filme. Os créditos iniciais aparecem numa tela dividida em duas faixas horizontais, uma vermelha e outra azul. A trilha sonora alterna dois estilos musicais diferentes. Quanto a musica, descobriremos que irão alternar-se durante todo o filme. Na primeira seqüência, vemos Jacob sentado no bar, ele está com protetores de ouvido e folheando um roteiro de Nosferatu (o filme mudo dirigi
do por Murnau em 1922). Alguém cola um cartaz na árvore em frente que dizia “Vietnã libero”, então descobrimos que o azul e branco se refere à bandeira do Vietnã do Norte – que então lutava contra os norte-americanos.

Numa série de momentos, a figura de Nosferatu é evocada nas posturas de Jacob enquanto ele folheia o livro sobre este filme – posteriormente Jacob, já tendo uma relação com seu duplo, coloca-se na frente de seus alunos assumindo uma das posturas típicas de Nosferatu (23min:30sec) - é com uma arma que Jacob encontrou no livro que matará seu amigo (talvez amante) pianista (2). Após algumas cenas na escola de teatro, onde Jacob vê seu duplo roubar um livro na biblioteca, vai para um urinol de rua em Roma. Ele pretende se suicidar, mas seu duplo faz com que desista.  


Bertolucci também faz um elogio ao teatro, na figura de O Teatro e Seu Duplo, de Antonin Artaud, que Jacob recita enquanto espera sua calça ser aprontada por seu mordomo. “O palco é a vida e a vida é o duplo do teatro”, “Eliminar o palco e o auditório. Substitua-os por um único espaço”. Um elogio ao teatro e sua superioridade em relação ao cinema. Lembrar de Artaud é apontar para um teatro não tradicional, que rompe com o discurso lógico, com o teatro tradicional e com a vida racional (3). Como nota Claretta Tonetti, o cinema parece ser criticado e amado ao mesmo tempo. Quando o duplo pergunta a Jacob como será o espetáculo, ele enumera os temas que serão tratados: as o conflito de gerações, pessoas que pensam ser imortais.

Duplo: Como ele começa?
Jacob: Teatro.
Duplo: Como ele termina?
Jacob: Teatro.

Jacob repete a palavra “teatro” mais de dez vezes, seguida pela repetição também pelo duplo. No final da seqüência, uma voz sussurra: “Cinema”. Na opinião de Claretta, Jacob representa o teatro, enquanto seu duplo representa o cinema. (4) Bertolucci afirmou que esse tipo de cena tem a ver com a influencia que o tema do duplo teve pelo menos na primeira parte de sua obra: “Estava fazendo um filme, mas que não era sobre cinema, mas sobre teatro. 


E, portanto, junto teatro e o cinema. Ou coloco-os em conflito mútuo” (5). Desta forma, dizer uma coisa para em seguida contradizer-se. Comentando sobre o tema de seu filme numa entrevista durante as filmagens em 1968, Bertolucci assim resume a estória:

“Em minha opinião, um intelectual europeu neste momento é incapaz de produzir uma ação revolucionária. O personagem de meu filme é um intelectual europeu que encontra seu duplo, isto é, seu sósia. E é exatamente este encontro que resolve a situação de impotência, de impasse, em que se encontrava. Ou seja, o seu sósia realiza tudo que ele nunca conseguiu fazer. O protagonista do filme, isto é, o sósia do protagonista, leva os alunos de teatro a saírem da escola para a rua. É um teatro ideológico, um teatro político”. (6)

A Natureza Não é Natural

Enquanto isso, Jacob está construindo alguma coisa de madeira – descobriremos tratar-se de uma guilhotina. Quando Jacob tenta se suicidar num urinol das ruas de Roma, seu duplo aparece e faz pouco caso dessa tentativa. O duplo critica a falta de criatividade de Jacob quanto à escolha do local. Nesse momento (aos 27 minutos) temos um longo
diálogo entre os dois:

Duplo: Não faça bobagem.
Jacob: O que está fazendo aí?
Duplo: O que se faz num urinol?
Jacob: Quero Morrer.
Duplo: Mentira... Sei de suicídios em trens, em poços, em aviões, nas catacumbas, mas num urinol nunca tinha ouvido.

Jacob: Deixe-me em paz.
Duplo: Aliás, agora me lembro, houve um padre. Deixou um bilhete escrito: “Botões demais para abotoar e desabotoar. Eu vou me matar”.
Jacob: Por que todos me perseguem?
Duplo: Por favor, levante-se!
Jacob: Só se eu quiser. [após alguma hesitação ele se levanta].

Duplo: Agora abotoe o pulso da camisa. Vamos.
Jacob: Não... Só farei isso se eu quiser. [Após alguma hesitação ele abotoa].
Duplo: Olhe ao redor. Veja a natureza.
Jacob: A natureza não é natural.
Duplo: As árvores, o rio.
Jacob: Não, não, não... Você e eu tomamos rumos diferentes. É matematicamente certo que seguimos rumos diferentes.

[na próxima seqüência, ao chegarem à casa de Jacob...].

Jacob: Está é a câmara escura. Pelo menos eu a chamo assim.

Duplo: Não me parece tão escura. Não gosto. Cheira a mofo.
Jacob: Talvez porque está desarrumada. Como devo tratar você? Desculpe, o senhor?
Duplo: Jacob.
Jacob: “Ja” e “Cob”. Junior e sênior. Criminal e diabólico.
Duplo: Eu sou o Jacob.
Jacob: Então, quem sou eu? Desculpe-me, gostaria de tratá-lo informalmente. Jacob gostaria de saber a que devo a honra...
Duplo: São coisas que acontecem. A vida é bela.
Jacob: A vida é bela é uma frase idiota! [rindo]

Duplo: E eu quebro a sua cara. [momento da imagem no início do artigo]
Jacob: Desculpe, não queria ofendê-lo. Só queria lhe ensinar que “A vida é bela” é um lugar comum. Bem...
Duplo: Eu lhe ensino a não ensinar.
Jacob: E então? A que devo a honra?
Duplo: Tenho fome.
Jacob: O que você quer comer?
Duplo: Ovos fritos.
Jacob: Eu também gosto muito! Estou indo.

Duplo: Jacob.
Jacob: Sim?
Duplo: Você se parece comigo, mas gosto de você.
Jacob: Só falta decidir se sou eu que pareço com você, ou vice-versa.

Momentos depois, enquanto um Jacob come, o outro oferece o armário (cuja porta possui um grande espelho) como quarto. Jacob parece fascinado com a possibilidade de trocar de roupa com seu duplo. Continua falando e falando, até que, quando se vira, Jacob está dormindo. Começam a discutir ao perceber que a porta do quarto não está trancada. Portanto, nenhum dos dois sabe se o outro saiu durante a noite. Anteriormente vimos o que parecia ser o duplo de Jacob saindo para se encontrar com Clara no lugar de Jacob e transar com ela. Outra seqüência no quarto mostra o duplo amedrontado com os trovões de uma tempestade. Ele fica pedindo para que Jacob se proteja.  



O intelectual europeu é incapaz de produzir uma ação revolucionária

Bertolucci, 1968


Quando Jacob afirma “a natureza não é natural”, ele chama atenção para o equívoco da interpretação que remete ao bem fundamental: na verdade, a natureza é cruel e amoral. É curioso que essa idéia de uma natureza bela e inofensiva exista numa cultura que destrói sistematicamente o mundo natural – a ponto de se definir o ser humano a partir do domínio que passou a exercer sobre a natureza. O duplo diz, veja a natureza ao redor... Na verdade, as árvores que se vê estão confinadas ao espaço definido pelo jardim, que é limitado pelo cimento da calçada. Da mesma forma, o rio que é mostrado está canalizado, suas margens limitadas por cimento e tijolos. 

Por outro lado, sugere Claretta Tonetti, se aceitamos a parte não-natural da natureza (aquela parte que produz o cruel, o ilógico, o indesejado) que construímos como algo sem crueldade e belo, então aquilo que tememos (a natureza não-natural) torna-se arte. Desta forma, aos olhos de Jacob, a não-naturalidade da natureza torna-se uma força positiva. Aos olhos de Jacob, a natureza produziu um duplo perfeito, um aliado contra a sociedade hostil. Jacob e seu duplo são, em suas palavras, como dois vermes vivendo de e no corpo morto que é essa sociedade hostil. E não existe mais diferença entre heróis e monstros: a monstruosidade da sociedade morta é habitada pela monstruosidade de um “homem duplo” que deseja ser o vencedor (7). 


Leia também:



Notas: 
 
1. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The cinema of ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995. P. 49.
2. Idem, p. 53.
3. Ibidem, p. 54.
4. Ibidem, p. 69 e 71.
5. Da entrevista de Bertolucci (2003) que consta dos extras do dvd de Partner, lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo em 2008.
6. Idem.
7. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci... Op. Cit., p. 61. 

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