A Narrativa de O Conformista (2)
A ação acontece na Itália da década de 30 do século 20, o tempo do Fascismo de Benito Mussolini que antecede a Segunda Guerra Mundial. Marcello Clerici, um jovem da classe superior vivendo em Roma, está prestes a se casar com Giulia, uma bela burguesa um tanto superficial. Para Marcello, Giulia não representa amor, mas a estabilidade de uma vida normal depois dos traumas de sua juventude. Quando tinha 13 anos, ele pensou ter matado Lino Semirama, o motorista homossexual de sua família, que tentou seduzir o garoto oferecendo-lhe uma arma.
Com o objetivo de progredir na carreira no Partido Fascista, Marcello visita um Ministro Fascista para propor um plano de contra espionagem. Quem possibilita este encontro é Ítalo, um amigo, ideólogo fascista e radialista cego. O plano consiste em utilizar sua lua-de-mel em Paris para contatar Luca Quadri, ex-professor de filosofia na Universidade de Roma e antifascista. Marcello deverá espionar as atividades de Quadri. Em Ventimiglia, na fronteira entre a França e a Itália Raoul, um oficial fascista, comunica a Marcello que a missão foi modificada: agora o professor deve ser assassinado.
Sempre seguido por Manganiello, um agente fascista, Marcello chega a Paris com a esposa. Ele se apaixona por Anna, a esposa do professor. Bissexual, se apaixona por Giulia (que nada sabe da missão do marido). O professor Quadri decide sair sozinho de férias para a Savóia, enquanto Anna pretende ficar em Paris por alguns dias e depois juntar-se a ele com Giulia e Marcello. O professor Quadri será morto na estrada. Enquanto isso, Anna, cujas tentativas de seduzir Giulia foram repetidamente recusadas, muda de ideia e parte com o marido. São seguidos e emboscados, os dois são mortos em uma estrada no meio de uma floresta.
Após um intervalo de alguns anos, vemos Ítalo passeando com Marcello pelas ruas de Roma durante a queda do regime fascista. Chegando ao Coliseu, Marcello reconhece a voz de Lino, o motorista que havia tentando seduzi-lo aos 13 anos e que ele achava que tinha matado. Percebendo que Lino ainda estava vivo e compreendendo que sua busca pela normalidade - motivada pela falsa crença de que ele era um assassino – havia arruinado sua vida e o levado a cometer mais crimes, Marcello fica histérico.
Aos gritos, ele acusa Lino de ter matado os Quadri e Ítalo de ser um fascista – acusações que naquele momento poderiam ser fatais para ambos. O filme termina com uma cena obscura onde vemos Marcello sozinho sentado de costas para nós. Ele vira o rosto em nossa direção e percebemos para onde ele está olhando, o mesmo jovem garoto de programa que Lino estava tentando seduzir quando sua voz foi reconhecida por Marcello.
O Livro e o Filme
O Confomista é o título de um livro do escritor italiano Alberto Moravia publicado em 1951. Em 1970, Bernardo Bertolucci cria uma adaptação que se afasta bastante do original. Embora Claretta Tonetti acredite que a compreensão do filme será bastante mais aguda se mantivermos uma relação com o texto de Moravia. O livro conta a estória do desenvolvimento psíquico de uma criança, Marcello. Começa com a visão de seus pais tendo relações sexuais, aos 13 anos leva a um encontro homossexual desastroso e resulta em sua busca compulsiva pela normalidade ou conformidade juntando-se ao Partido Fascista (3).
Bertolucci faz uma adaptação muito livre do livro. Enquanto Moravia compõe o quadro psicológico de alguém que é definido pelas circunstâncias e sem capacidade para fazer escolhas em sua vida, Bertolucci acusa Marcello sem deixar claro por que o personagem é como é. O cineasta deixa para o espectador a tarefa de encontrar a razão para o devastador impulso de Marcello (4).
No filme de Bertolucci, os personagens são facilmente identificáveis, Marcello é mau, os Quadri são bons, Giulia é boba (5). Embora o livro de Moravia siga um estilo realista, seus personagens são mais complexos do que em Bertolucci, eles têm todas as características dos seres humanos, dependendo das circunstâncias. Marcello não é apenas mau, o idealista professor Quadri pode também ser ruim, a superficialidade de Giulia pode dar lugar a um profundo senso de sobrevivência. O que cria uma “atmosfera diferente” no filme é a montagem das cenas e a luz.
O livro é estruturado cronologicamente, enquanto Bertolucci constrói o filme através de uma sucessão enigmática de flashbacks dentro de flashbacks. O livro começa com a infância de Marcello e termina com sua morte – o que não acontece no filme. No livro Anna, a esposa do professor Quadri, chama-se Lina, uma clara referência a Lino, o motorista. Moravia está interessado na perda da inocência e no conceito de “normalidade”. Enquanto o Marcello de Moravia sente-se atraído por Lino, o de Bertolucci é atraído para o motorista.
No filme de Bertolucci, a auto descoberta de Marcello é mínima. Apesar da inspiradora sequência do Mito da Caverna, de Platão, Marcello ainda está rodeado pelas sombras da ignorância. Segundo as conclusões de Peter Bondanella, Bertolucci rejeita a narrativa cronológica de Moravia e justapõe sequências de tempo (os flashbacks) em um arranjo ainda mais complicado do que ele realizou em seu filme anterior A Estratégia da Aranha (La Strategia del Ragno, 1970) (6).
No texto de Moravia, a cena principal é aquela onde Marcello assiste uma relação sexual entre seu pai e sua mãe. Para a criança, trata-se de um ato de violência do pai contra a mãe. Parecia que seu pai a estava estrangulando sua mãe. Nesse momento, Marcello experimentou uma sensação de excitação cruel como se pode ter assistindo a uma luta, mas ao mesmo tempo ele sentiu desejo de intervir – embora Moravia não deixe claro se ajudaria ao pai ou a mãe. Mas Bertolucci preferiu o ponto em que Marcello espiona Anna e Giulia. O cineasta admitiu que o significado da cena só fosse percebido por ele durante uma sessão de análise.
Marcello está na penumbra e pode ver o corpo de Giulia através de uma porta entreaberta. Ela está esticada na cama, Anna está ajoelhada no chão entre as pernas dela. Bertolucci disse que todo o seu trabalho está contido nesta cena de uma vaga sedução homossexual atravessada por um choque erótico. Na opinião de Tonetti, a escolha de Bertolucci aponta para a homossexualidade latente de Marcello. A qual, juntamente com sua crueldade e condicionamento fascista, constitui um padrão triangular recorrente por todo o filme. Anna olha em direção a porta entreaberta, sugerindo que ela sabe que ele está bisbilhotando.
A crueldade de Marcello fica patente também na expressão em seu rosto durante o assassinato dos Quadri. Essa expressão chocou as plateias da época. É profundo o contraste entre a frieza em seu rosto e o pânico no rosto de Anna. Mas isso foi em 1970, hoje o espectador quase não percebe nada, devido à banalidade do mal e das perversões que nos acostumamos (?) a ver nas telas. As várias facadas que o professor Quadri leva também causaram espécie e a cena era considerada extremamente violenta (7).
Freud Explica e Classe Média Paga
“O Conformista é uma estória sobre eu e Godard”
O Marcello de Moravia é aparentado com O Homem Lobo, de Sigmund Freud. Um paciente de Freud, que havia presenciado uma relação sexual entre seus pais, acreditava que aquilo fora um ato de agressão. A partir daí, ele começou a praticar atos de crueldade com pequenos animais, arrancava asas de moscas, pisava em besouros e até imaginava-se surrando cavalos. Ao ficar mais velho, assim como Marcello, que é fascinado por revólveres, o paciente de Freud desenvolveu um interesse por questões militares, uniformes, armas. Alimentava-se deles enquanto sonhava acordado.
Repressão e traumas limitaram a vida adulta do “homem lobo”, sua atividade intelectual se mantinha seriamente prejudicada. A repressão de sua homossexualidade empurrou-a para o inconsciente. A descrição que Moravia nos dá de Marcello aos 30 anos segue as pegadas do paciente de Freud. Ele não é mais tímido, seus gostos e atitudes são masculinas, não tem imaginação, é frio e controlado. A esta densidade do texto de Moravia, Bertolucci contrapõe a leveza de alguns flashbacks. Mas Peter Bondanella não considera convincente a articulação que Bertolucci cria entre Fascismo e homossexualidade.
A homossexualidade no cinema italiano surge com Luchino Visconti em Os Deuses Malditos (La Caduta Degli Dei, 1969), Morte em Veneza (Morte a Venezia, 1971) e Ludwig (1972) (os filmes que compõem a Trilogia Alemã), com Teorema (1968), de Pasolini, e O Conformista (Il Conformista, 1970), de Bertolucci. Os Deuses Malditos estabeleceria um padrão frequentemente repetido na década seguinte. Antes disso, Rossellini já havia abordado o assunto em sua Trilogia da Guerra. Aparentemente, a ideia é completamente gratuita e surgiu a partir de uma teoria desacreditada de Wilhelm Reich, discípulo de Freud que contestou o mestre.
Quebrando esta tendência, Ettore Scola apresenta um homossexual antifascista e intelectual em Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare, 1977). Mas para Visconti, essa tendência sexual podia ser tanto metáfora para qualidades negativas (Os Deuses Malditos) quanto empenho positivo intelectual e artístico (Morte em Veneza e Ludwig) (8). Segundo Bondanella, Freud é essencial para O Conformista, mas, assim como Reich em Psicologia de Massas do Fascismo (1933) ou o psicólogo Erich Fromm, com Medo da Liberdade (1941), Bertolucci não cria um mapa coerente para explicar o Fascismo.
“(...) Colocando a origem última da conformidade de Marcello e seu desejo de normalidade no reino do inconsciente (a persistente memória de um ataque homossexual), Bertolucci questiona qualquer explanação Marxista da subida do Fascismo italiano através da luta de classes ou da repressão das classes trabalhadoras pela classe média. Paradoxalmente, embora Bertolucci declare em algumas entrevistas que Marcello incorpora as origens do Fascismo na classe média, não há evidência no filme que suporte esta posição. Pelo contrário, o único meio sempre iluminado em O Conformista, aquele da burguesia decadente, inclui não apenas Marcello e sua família, mas também o casal antifascista Quadri (...) (9).
No que diz respeito ao casal Quadri, Bondanella chama de comportamento burguês decadente ao lesbianismo de Anna e ao voyeurismo do professor, que gosta de bisbilhotar enquanto ela está com outra mulher - como se o comportamento sexual pudesse ser também separado por classes sociais. Com relação ao ponto anterior, parece que Bondanella se esquece de algumas coisas. Temos aquela sequência quando Marcello está com sua mãe e ela reclama que Roma está ficando muito provinciana, “com jovens de classe média casando-se com os de boa família”. Este parece ser justamente o caso de Giulia. É o próprio Marcello que diz ao padre no confessionário: “Vou construir uma vida normal. Vou me casar com uma pequeno-burguesa. Medíocre”. Bertolucci também mostra no filme certa diferença entre os estilos de vida de Marcello e Giulia. Ele morava em um palácio, o que podemos perfeitamente notar na sequência em que Marcello (ainda com 13 anos) e Lino sobem as escadarias em direção ao quarto do motorista. Além disso, acompanhamos o Marcello, agora já adulto, até a casa de sua mãe. Se já não é um palácio, podemos dizer que é um casarão em bairro nobre.
No caso de Giulia, temos oportunidade de ver onde ela mora quando Marcello vai a seu apartamento, onde ela parece ainda viver com sua mãe. Ela tem uma empregada, a sala onde estão é pequena e, na hora da refeição, são eles mesmos que se servem. Bertolucci chega a mostrar a empregada escondida no corredor, ao lado da sala de jantar, bisbilhotando enquanto come o macarrão da mesma travessa na qual suas patroas e o convidado se serviram (aparentemente o cineasta incluiu nesta cena da empregada até algum ruído “típico” de falta de etiqueta quando crianças sugam o macarrão).
Quando Bondanella sugere que Marcello não incorpora as origens de classe média do Fascismo como Bertolucci afirma, uma coisa não fica muito clara. Aparentemente, Bondanella acredita que Marcello só incorporaria caso fosse ele próprio da classe média. Entretanto, o que parece evidente é que Bertolucci quis dizer que Marcello incorpora a ideologia fascista ao casar-se com uma moça de classe média. Portanto, Marcello, que não pertencia à classe média, incorpora seus valores ao juntar-se a ela. Não se discute que a aristocracia italiana da qual provém Marcello seja decadente.
Se a aristocracia só aderiu ao Fascismo em função desse tipo de "contaminação" pela classe média, ou se as duas classes uniram suas tendências fascistas, não é possível definir a partir da adaptação de O Conformista feita por Bertolucci. Uma coisa é certa, Benito Mussolini era de origem humilde. Originalmente jornalista, foi expulso do Partido Socialista e saiu da Primeira Guerra Mundial como sargento. Em 1919 funda o que mais tarde se tornará o Partido Fascista Italiano. Com um discurso pseudo-socialista e uma retórica invejável, consegue a adesão de militares descontentes e grande parte da população (10).
Voltando aos elementos psicanalíticos temos ainda dois exemplos, como uma articulação de imagens entre um corpo que se mostra e outro que se esconde, e que nos levam a uma revelação bombástica de Bertolucci. É Tonetti quem chama atenção para dois detalhes. Primeiro, quando um dos assassinos se abaixa para dar o golpe de misericórdia no professor. Em seguida, a importância que o filme parece dar aos chapéus (11). Para além de uma moda qualquer ou mesmo do frio, todos os homens utilizam o casaco e o chapéu como se fosse um uniforme (já a anti conformista Anna está sempre com uma roupa diferente, Giulia também).
“O Conformista é uma estória sobre eu e Godard. Quando eu dei ao professor Quadri o mesmo número de telefone e endereço de Godard, eu fiz isso de piada. Porém, mais tarde, eu disse para mim mesmo: ‘Bem, talvez tudo isso tenha uma significação... Eu sou Marcello e faço filmes fascistas e quero matar Godard, que é um revolucionário, que faz filmes revolucionários e que foi meu professor”. (12)
Para Ser Igual a Todo Mundo...
Os flashbacks da infância de Marcello são apresentados por Bertolucci na cena da confissão, ela própria um flashback. Antes de se casar com Giulia, ele deve confessar-se com o padre. Marcello vê esta tarefa como a missão de um homem normal. Então ele se lembra de uma vez que seus colegas de escola tentaram tirar sua bermuda. Lino chega com o carro preto luxuoso da família para levá-lo para casa. Ela está situada uma colina de Roma, de onde se pode ver a cidade por cima. Continuando o flashback, vemos Lino e o pequeno Marcello brincando, quando acabam no quarto do motorista. Lino tira o quepe e deixa o garoto ver seu cabelo cumprido que sempre fora escondido.
Lino diz que tem um quimono como o de Madame Butterfly. Perfuma-se e estica-se na cama que tem um crucifixo na parede sobre sua cabeça, então coloca entre as pernas a arma que havia prometido ao jovem Marcello de 13 anos. Marcello sobe pelo homem, acaricia seu cabelo e o beija. É Lino que sugere a Marcello que pegue a arma e o mate. E Marcello o faz – ou pensa que fez, pois saiu correndo sem saber do desfecho de sua ação. Ele coloca a arma na mão de Lino antes de sair. A cena estabelece tanto a homossexualidade quanto a crueldade de Marcello, além de indicar sua futura escolha política.
Voltamos ao casamento de Marcello, através do qual ele pretende estabelecer uma “impressão de normalidade”, conformando-se a um mundo hostil a partir daquilo que ele acha que é correto. Claretta Tonetti nos lembra como Marcello, no confessionário, admite que sua intenção seja casar-se para atingir a normalidade. No começo do filme Ítalo, seu amigo radialista e ideólogo fascista, havia perguntado o que espera do casamento. “A impressão de normalidade”, Marcello responde. “Quando eu olho para mim no espelho”, Marcello comenta, “eu penso que minha imagem é diferente de todo mundo”.
Ao que Ítalo responde, “eu não compreendo você. Todo mundo quer ser diferente, e você quer ser igual a todo mundo” (13). Marcello pergunta a Ítalo o que ele considera um comportamento normal. Um homem normal, responde Ítalo, vira-se para olhar as nádegas de uma mulher bela depois que ela passa, mas o homem não deve ultrapassar esse ponto. Um homem assim, afirma Ítalo, fica contente em estar junto de iguais e desconfia dos diferentes,
gosta de praias lotadas, futebol e dos bares. É um verdadeiro irmão, um verdadeiro cidadão, um verdadeiro patriota. "Um verdadeiro Fascista", completa Marcello.
Essa resposta faz lembrar da atitude dos homens de Roma retratados em Os Italianos se Viram, dirigido por Alberto Lattuada, e parte da coletânea O Amor na Cidade (Gli Italiani si Voltano, Amore in Città, 1953). É o que vemos o tempo todo nessa pequena pérola: as mulheres passam e os homens avaliam o material compulsivamente. Mas de repente, um desses homens começa a encarar uma mulher no ônibus de forma indiscreta demais. Ela salta e ele vai atrás, a mulher se mostra bastante incomodada e visivelmente impotente, pois já não sabe o que fazer. Ela entra em um prédio e só então o homem desiste. Um filme que começa com uma atmosfera leve, ainda que já machista, acaba tomando a direção de um filme digno de Hitchcock (inclusive a trilha musical até acaba).
O comentário de Ítalo talvez tenha servido como um alerta para Marcello, que tem uma tendência a vigiar os outros (daí sua carreira na polícia secreta de Mussolini) e depois virar-se contra eles (como faz com o casal Quadri e com o próprio Ítalo). O que não dá para concluir se chega a ser um ponto positivo para Marcello é o fato de que ele não conseguiu matar os Quadri, limitando-se a assistir execução. Irritado, Manganiello resmunga, "faça-me trabalhar na merda, mas não com um covarde. Se depender de mim, covardes, homossexuais e judeus, são todos a mesma coisa. Se dependesse de mim eu colocaria todos contra o muro. Melhor ainda, eu os eliminaria assim que nascessem".
Pouco antes da sequência do salão de dança, quando Marcello, Giulia e os Quadri estavam no restaurante japonês, o professor deixa claro que sabe que Marcello é fascista. Pergunta a Marcello se é ele o "novo homem italiano" (fascista e sem senso de humor). Marcello responde que não, mas que o Fascismo está construindo esse novo homem. No início da sequência da dança, os dois homens estão sentados. Vemos uma foto de O Gordo e O Magro no vidro, atrás de Marcello. Para Angelo Restivo, essa imagem mostra os dois e suas intrigas políticas meio ridículas, se as comparamos aos jogos sensuais entre Anna e Giulia (14).
As emoções de Marcello vêm à superfície de forma sádica: atormenta seu pai mentalmente doente, dá uma surra no amante de sua mãe através dos punhos de Manganiello. Além disso, quando ainda está no trem para Paris com Giulia e ela confessa que perdeu a virgindade antes do casamento com ele, Marcello vai imitando os toques do tio que a seduziu enquanto ela descreve o que ele fazia. Até mesmo com Anna, que se tornou sua amante, ele é violento. Mas o filme não chega a costurar esses elementos em um todo coerente, Bertolucci deixa ao espectador a tarefa de encontrar o motivo dos impulsos devastadores de Marcello.
A Parceira do Corpo
Marcello é capaz de encontrar referências na poesia, recita para Giulia algumas linhas do poeta italiano Gabriele D’Annunzio (considerado um dos precursores dos ideais fascistas), especificamente A Chuva em Pineto: “A chuva cai de nuvens esparsas... Cai em nossas mãos nuas... Cai na atraente fábula que ontem enganou a mim e hoje engana você, Ermione”. Mas Giulia responde com um bocejo. Ou ela é tão ignorante quanto Marcello imagina, ou não sofre de angústia existencial.
Marcello é diferente, no livro ele não ri, enquanto no filme ele o faz apenas inoportunamente (enquanto vai ao encontro do casal Quadri para matá-los, Marcello cochila e acorda sorridente: sonhou que Anna o amava). No restaurante japonês Anna pergunta a Giulia se ela já viu seu marido rir. Ela responde que não, mas acha normal. No texto de Moravia, como afirma ele mesmo, Marcello está consciente de um sentimento doloroso profundo. Ele é como um fio de alta tensão no qual passa uma carga de eletricidade que independe de sua vontade, e que possui sempre uma placa avisando: “Cuidado: Perigo”.
Mais adiante, os versos em latim que Marcello recita quando está na perseguição de carro para matar os Quadri talvez sejam para Anna, ou, para ele mesmo: “alma que vaga e seduz, visita e parceira do corpo, agora pálida, rígida e nua, você irá vagar no vazio e não será mais engraçada”. Os versos do imperador romano Adriano, e falam da fraqueza de espírito da vida humana e a comunhão vulnerável da alma com o corpo. Porém, o conformista não tem de morrer para que sua alma tenha uma descrição triste, pois seu próprio destino é a melancolia. “Matança e melancolia”, como repetia o pai de Marcello no manicômio.
Marcello não demonstra pena do pai. No que parece ser um anfiteatro, ele e sua mãe tentam falar com o velho, que não para de escrever e repetir aquela frase. Marcello faz perguntas sobre o passado político de seu pai: você torturou? Você matou? Aparentemente cheio de remorso, o velho se afasta e se oferece ao enfermeiro para que lhe vista com a camisa de força (Curiosamente, a camisa de força é preta, a mesma cor do Partido Fascista, cujos correligionários eram conhecidos como "camisas negras") (15). Quando foi com a mãe visitar seu pai para comunicar sobre seu casamento, Marcello pega o papel onde o velho escrevia um texto que termina com as palavras “matança e melancolia”. Então mostra para sua mãe e diz sarcasticamente: “seja, o anuncio do casamento”. Em sua existência, Marcello gira em torno de um desejo de agradar sucessivos pais substitutos, sendo rejeitado por seu pai verdadeiro. Juntamente com isso, a questão do sentimento de fraqueza causado pelo encontro homossexual casual com Lino no passado distante que motiva sua busca pela “normalidade” no presente (16).
Um Mundo Surreal
No filme de Bertolucci, o único momento em que Marcello demonstra algum afeto é com uma prostituta na parada que o trem faz na cidade de Ventimiglia, a caminho da lua-de-mel em Paris. Ele se dirige a um bordel que esconde um quartel general da polícia secreta de Mussolini. Lá Manganiello parece gostar de fazer uma prostituta dizer que “é louca”. Quando ela se levanta do sofá e se aproxima dele, Marcello lhe abraça impulsivamente. Tanto nesta como na cena da visita ao pai no manicômio, tudo é branco. Uma imagem quase surrealista.
Lá no começo de tudo, quando Marcello visitou um Ministro fascista propondo um plano de espionar o professor Quadri, o político estava com uma amante no gabinete. Esta amante e a prostituta no bordel tem o mesmo rosto. Trata-se da mesma atriz que também faz o papel de Anna. Quando Marcello se defronta com aquele rosto pela terceira vez, ao ser apresentado a Anna Quadri, ele tem a sensação de um deja vu que o desconcerta durante todo o resto do filme (17). Bertolucci cria desta forma uma ligação entre os artistas reais e seus personagens de ficção.
No bordel, Marcello encontra pinturas na parede (que Tonetti um tanto apressadamente considerou surrealistas), até que uma velhinha diz que ali não é um museu e que escolha logo uma prostituta. Após abraçar a prostituta com cara de Anna, Marcello encontra Raoul. Ele é o agente da polícia secreta que explicará à Marcello que sua missão não é mais espionar o professor Quadri, mas matá-lo. A mesa de Raoul parece uma colagem surrealista, com muitas nozes (talvez, uma dieta do sexo) espalhadas entre objetos típicos de escritório (imagem abaixo). Fornece um revolver a Marcello, que aponta para ele depois para sua própria cabeça.
O manicômio onde o pai de Marcello está internado, assim como o bordel de Ventimiglia, é apresentado numa luz branca surrealista. O quepe da prostituta, a mesa e a roupa de Raoul, a pose de Marcello com a arma, as pinturas... Tudo coloca o espectador em um nível surrealista de sonho. Este clima é alcançado por Bertolucci com momentos visuais obscuros e por usar a mesma atriz nos papeis de Anna, da amante do político fascista e da prostituta. A própria estrutura do filme, em flashback, mostra o que se tornou uma lembrança (memória) na mente de uma pessoa (Marcello) se recordando de algo: real, irreal, surreal... (18)
Do Mito da Caverna à Queda do Fascismo
Professor: Não poderia ter me trazido melhor presente de Roma do que essas memórias, Clerici. Os prisioneiros acorrentados de Platão.
Marcello: E como se assemelham a nós.
Professor: O que eles veem?
Marcello: O que veem?
Professor: Você, que veio da Itália deveria saber por experiência.
Marcello: Veem apenas as sombras que o fogo produz no fundo da caverna diante deles.
Professor: Sombras. O reflexo das coisas. Como [acontece] com vocês na Itália agora.
Marcello: Se aqueles prisioneiros estivessem livres e pudessem falar, eles não chamariam as sombras que veem de realidade quando eram visões.
Professor: Sim, [...] as sombras da realidade. O Mito da Caverna”. (19)
Segundo Tonetti, a citação do Mito da Caverna não corresponderia à complexidade dos personagens do livro de Moravia. Platão aponta para uma neutralização das ambiguidades, mas os personagens de Moravia são mais ambíguos do que os do filme de Bertolucci. Além disso, insiste Tonetti, todo o livro é mergulhado numa atmosfera de androginia (como com Giulia, que tivera relações sexuais com uma namorada durante a adolescência). O texto de Platão que melhor se encaixa no texto de Moravia é o Convivium.
“(...) Portanto, não é o espírito de A República, [o livro] que contém o Mito da Caverna, fluindo nas páginas de Moravia, mas a poesia de Convivium, onde Platão fala sobre amor, sexo e androginia. No começo dos tempos, o filósofo nos conta, os seres humanos eram um só. Eles eram chamados Amphoteroi. Circular na forma, eles procriavam acasalando com a terra. Cortando pela metade por Zeus, as partes separadas para sempre aspiram reconstruir a unidade original com a ajuda de Eros, o deus amigável e travesso que trata da antiga ferida e faz um de dois. Em certo nível, no Conformista de Moravia a antiga unidade parece ainda existir em cada indivíduo; feminilidade e masculinidade coexistem. Isso é o que Marcello não pode aceitar desde a hora que ele tentou camuflar a delicadeza de suas feições, procurando ser como todo mundo, não sabendo que ‘todo mundo’ é uma categoria abstrata, uma massa indefinida de pessoas com características genéricas, que se tornam secundárias em um indivíduo. Todas essas sutilezas estão ausentes do filme de Bertolucci”. (20)
O comportamento do pai no manicômio parece ecoar o sentimento de culpa de Marcello em relação a Lino. Essa sensação mina sua racionalidade. É isso que faz com que diga ao padre no confessionário: “Eu confesso hoje pelo pecado que cometerei amanhã. Sangue lava sangue. Seja qual for o preço que a sociedade exige de mim, eu pagarei”. Quando Marcello reencontra Lino tudo isso aflora. Na noite da queda do Fascismo, Marcello sai por Roma com Ítalo. Enquanto caminham pelas arcadas do Coliseu, Marcello reconhece a voz de Lino. Aos gritos, acusa-o de pederastia e do assassinato o casal Quadri. Lino corre.
Ainda aos gritos, Marcello acusa Ítalo de ser fascista (o que ele de fato é assim como o próprio Marcello). Um grupo de manifestantes passa por entre eles. Depois disso, o silêncio volta ao Coliseu. Na sequência seguinte, Marcello aparece sentado em um degrau ali mesmo, mas de costas para nós até que ele se vira e olha em nossa direção (uma metáfora?). No fundo do espaço, para onde ele de fato está olhando, um garoto de programa está deitado enquanto parece esperar por Marcello. Então, o filme tem um final aberto.
Tonetti sugere três convergências no filme: escolha política, crueldade e homossexualidade. A falta de reação de Marcello à queda do Fascismo e sua maneira de lembrar a Ítalo de retirar o brasão Fascista do peito, sugere que sua relação com a política é fraca, motivada apenas pelo desejo de ser como todo mundo. A crueldade aflora no final, ao acusar Lino pela morte dos Quadri. A homossexualidade aflora quando Marcello, que concorda com um assassinato para se sentir parte do grupo, e que caça pessoas para não ser caçado pela memória da anormalidade, está prestes a tomar o lugar de Lino ao lado do garoto de programa.
Para Bertolucci, o final de um filme é a parte mais difícil. No caso de O Conformista, o abandono da narrativa tradicional é evidente. A narração sistemática da estória dá lugar a um desafio e um convite ao espectador, que deverá buscar sua própria interpretação (21). Na opinião de Claretta Tonetti, a evocação do Mito da Caverna encontra certo eco na cena final no Coliseu. As sombras dos manifestantes comemorando o fim da ditadura e carregando bandeiras são projetadas nas paredes daquele corredor do Coliseu, que é apresentado como um lugar onde as pessoas estão “acorrentadas” a seus vícios e comércios.
Nem chegamos a perceber que estamos no Coliseu, pois a câmera só olha para os lugares escondidos com fogueiras e grades que sugerem uma prisão. No filme de Bertolucci, a autodescoberta de Marcello é mínima, ele ainda está rodeado por sombras refletidas na parede no fundo da caverna que se transformou sua vida (22).
Para Tonetti, o Mito da Caverna traduz melhor as novas técnicas de edição que Bertolucci descobriu através de seu montador, Franco Arcalli, que mostrou que a montagem não é apenas um trabalho analítico, mas também um trabalho de descoberta dos segredos contidos na “barriga do filme”. No mito descrito por Platão, a iluminação vem quando saímos da caverna e vemos a realidade através da luz do sol, retornando então para compartilhar o conhecimento com aqueles que ainda estão acorrentados. No processo de edição de um filme, as sequências de imagens podem ser recombinadas e adquirir novo significado.
Bertolucci faz extensivo uso de flashbacks na edição de O Conformista, explodindo a cronologia. Foi neste sentido que o conteúdo e a estrutura do filme foram descritas como oníricas e implicitamente cinematográficas. “Bernardo Bertolucci também chamou esta nova forma de edição uma ‘nova escritura do filme. Alguém pode editar um filme mesmo contra a forma em que ele foi filmado, contra aquilo que foi filmado’” (23). Encontramos também a própria dualidade contida nos Amphoteroi: as sequências são divididas e recompostas pela edição produzida na “caverna cinemática”.
“(...) [A] filosofia platônica não é apenas parte do conteúdo de O Conformista (a aula de Quadri e a cena final no Coliseu), mas é [também] parte da técnica cinemática. A forma do filme (seus momentos de incoerência e seus ousados flashbacks colocados juntos no processo de edição) é um marco, precisamente porque não é [apenas] um veículo para a exibição vazia de tecnologia. [A forma de O Conformista] se evidencia por ideias inovadoras relacionadas de forma sedutora a teorias antigas que sempre provocam o pensamento”. (24)
Bertolucci e a Psicanálise do Fascista foi originalmente publicado em Cinema Italiano em duas partes, com o título Bertolucci e a Psicanálise: O Conformista (I) e (final), em novembro de 2008. Realizadas algumas correções ortográficas no texto original que não chegam a modificar o conteúdo.
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Notas:
2. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., pp. 99-100.
3. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 301.
4. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., pp. 97 e 104.
5. Idem, p. 116.
6. BONDANELLA, Peter. Op. Cit.
7. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., pp. 100-1 e 106.
8. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., pp. 204-5.
9. Idem, p. 304.
10. Benito Mussolini. Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Benito_Mussolini Acessado em: 11/11/2008.
11. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., pp. 106-7.
12. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., p. 304.
13. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., pp. 103-4.
14. RESTIVO, Angelo. The Cinema of Economic Miracles. Visuality and Modernization in the Italian Art Film. Durham & London: Duke University Press, 2002. P. 183n20.
15. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., p. 109.
16. BONDANELLA, Peter. Op. Cit., p. 303.
17. Idem, p. 303.
18. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., p. 111.
19. Aqui utilizo o texto das legendas do dvd do filme, lançado no Brasil pela Lume Filmes, 2008. Salvo nos momentos que julguei necessária uma correção da tradução.
20. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., p. 118.
21. Idem, p. 114.
22. Ibidem, p. 117.
23. Ibidem, p. 119.
24. Ibidem, p. 120.